A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) completa nesta segunda-feira, 1º de maio, 80 anos de existência e não garante direitos a pelo menos 58,8 milhões de trabalhadores brasileiros.
O número equivale a 55% da força de trabalho no trimestre encerrado em março de 2023, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e considera informais, desalentados, desempregados e a força de trabalho potencial. Há ainda os empregadores e trabalhadores por conta própria que são considerados formais, mas atuam sob outros modelos.
Criada em um decreto-lei assinado pelo presidente Getúlio Vargas, a CLT reuniu dezenas de leis que vinham sendo editadas desde os anos 1930 e já foi considerada uma das mais avançadas legislações do mundo na proteção dos trabalhadores.
Ela é com frequência apontada como um fator de desestímulo à geração de emprego com seus 922 artigos e nove capítulos. Foi esse o argumento que guiou a mudança mais recente, de 2017. Apresentada inicialmente como uma minirreforma voltada à criação de novos modelos de contrato, como o por tempo parcial e intermitente, ela mexeu em mais de cem artigos do arcabouço original.
As críticas à CLT, lembra o professor José Dari Krein, do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) da Universidade Estadual de Campinas, datam ainda dos anos 1980.
Desde aquela época, os dois modelos colocados em oposição com mais frequência são o americano e o europeu, esse último mais similar ao brasileiro por concentrar na legislação os parâmetros mínimos de proteção a trabalhadores em várias frentes (salário, jornada, licenças, férias etc.).
Para o pesquisador, a tese de que tornar mais flexíveis as regras para as relações entre empresas e funcionários favorece o nível de emprego não se sustenta. “A geração de empregos é muito mais complexa do que isso. Empiricamente, esse argumento não encontra respaldo na realidade.”
Krein defende que mesmo as taxas de desemprego sejam analisadas com ressalvas. O sistema de proteção dos Estados Unidos, por exemplo, é menor do que o dos países da União Europeia. “Sem trabalho, a pessoa logo fica sem renda nenhuma.”
A falta de proteção social faz o trabalhador aceitar empregos com salários menores o que, segundo o pesquisador, levou os Estados Unidos a um maior nível de precarização do trabalho na comparação com países europeus.
Pelo mundo, a diferença fundamental está no quanto o sistema de proteção aos trabalhadores parte da legislação ou depende da negociação coletiva e o Brasil não é o único com muitas regras.
Onde há algum grau de industrialização, há nível de proteção, diz a professora Ana Virgínia Moreira Gomes, que coordena o Núcleo de Estudos em Direito do Trabalho e Seguridade Social na Universidade de Fortaleza (CE).
Segundo a pesquisadora, mesmo nos países em que a opção foi por um sistema mínimo que privilegie acordos entre empregadores e funcionários, há um parâmetro base de proteção, como regras de saúde e segurança, idade mínima permitida e combate à discriminação.
“São estratégias regulatórias diferentes. Você tem na França o Código de Trabalho, o Reino Unido tem uma tradição mais de privilegiar negociações; a Suécia já tem uma legislação mais forte”, diz.
No Reino Unido, há o salário mínimo, que varia por idade, mas outros parâmetros, como jornada, dependem de acordos coletivos ou individuais. Quando fazia parte da União Europeia, o país se destacava dos vizinhos pela legislação mais flexível.
Segundo levantamento dos pesquisadores Carlos Salas e Tomás Rigoletto Pernías, em publicação do projeto de pesquisa Subsídios para a Discussão sobre a Reforma Trabalhista no Brasil, do Cesit, de 2008 a 2017, os autônomos respondiam por quase 50% dos empregos criados entre 2008 e 2017 no Reino Unido, e outros 30% eram os contratos “zero hora”.
Nesse modelo, o trabalhador recebe apenas pelas horas que trabalha, sem diretos sociais ou benefícios e não há indenização por demissão.
Para a advogada Cássia Pizzotti, sócia trabalhista do escritório Demarest, o modelo favorece o emprego de novos tipos de profissional para o qual as regras tradicionais são insuficientes ou criam relações desiguais, como
Ela cita os trabalhos de base tecnológica, de entregadores de aplicativos a programadores, desenvolvedores e cientistas. “Se você contrata alguém hoje, tem que pagar mesmo que não haja trabalho”, afirma a advogada, para quem a CLT se tornou um corpo que precisa de uma roupa nova.
A reforma de 2017 teria sido uma roupa remendada, pois foi feita sem discussão conceitual suficiente, deixando rastro de insegurança jurídica. É o caso dos contratos intermitentes, que até hoje são pouco usados.
“No modelo original [discutido na apresentação da reforma], ele tirava direitos assegurados na Constituição, como férias e 13º”, lembra. Para Cássia, o intermitente, como aprovado na reforma, é inseguro para as empresas.
Nos últimos anos, muitos fizeram, assim como o Brasil, reformas sob o argumento de potencializar a criação de empregos. Salas e Pernías afirmam que o alvo central dessas mudanças é definir regras para as demissões sem justificativa e alterar o poder dos sindicatos.
Reino Unido, Chile, Itália, México, Espanha e Alemanha são alguns dos que mexeram em leis com a promessa de melhorar as condições de empregabilidade.
Segundo Krein, as flexibilizações carregam seis características principais: novas formas de contratação, como intermitentes e tempo parcial; fim de jornadas especiais e criação de jornadas que se adaptam às necessidades da empresa; remuneração variável; restrição à atividade sindical; menos benefícios sociais e acesso mais difícil; e descentralização das negociações, com a valorização dos acordos individuais.
O pesquisador destaca, porém, que muitos desses países precisaram fazer inflexões para conter a piora nas condições de vida da população e adotaram políticas de valorização de salários para melhorar a paridade do poder de compra (o quanto, em cada país, o piso compra). No Reino Unido, os pisos foram reajustados entre 9,7% e 10,9% em 1º de abril.
Krein diz que a maior parte dessas políticas reajustou esses pisos acima da inflação. “Essa reversão vem justamente para tentar conter o avanço da precariedade.”
O mito americano
Para o juiz do trabalho João Renda Leal Fernandes, a percepção de que os trabalhadores nos Estados Unidos não têm direitos parte de certa incompreensão das diferenças entre tradições e culturas jurídicas. Autor de dissertação transformada em livro sobre o assunto (O Mito EUA – Um País Sem Direitos Trabalhistas), Renda diz que a comparação com o país, em geral, parte de parâmetros incompatíveis.
“Temos tradições jurídicas muito distantes. Quem fala dos Estados Unidos tenta ressaltar esses pontos de regulação, mas não é bem assim.”
De fato, não há no país do hemisfério norte uma legislação federal que trate de temas como licenças remuneradas por gestação ou doença ou férias. “Esses são pontos muito valorizados por setores da economia”, diz.
Por outro lado, uma lei federal define que se a jornada for acima de 40 horas semanais, o trabalhador passa a receber uma vez e meia o valor do salário-hora regular. Essa regra vale desde 1940. Outra norma federal prevê que as horas trabalhadas acima das 40 regulares não podem ser compensadas, elas precisam ser pagas.
Ou seja, não há compensação ou banco de horas, algo bem comum por aqui. “No Brasil, o banco de horas é um instrumento que se tornou muito flexível. Esse tipo de comparação a gente tem que contextualizar.”
Vêm dos Estados Unidos também diversas legislações locais anti-discriminação, de combate ao assédio moral e sexual. As indenizações por essas condutas tendem a ser maiores. “Há menos acesso a advogados, que são muito mais caros, mas há agências estatais para reclamações de problemas como o pagamento do salário mínimo, por exemplo.”
Como os Estados Unidos têm legislações regionais, os estados também se dividem entre os que são mais “pró-trabalhador”, como é o caso de Califórnia, Massachusetts e Nova York e outros mais “pró-empresas”, como Alabama, Mississipi e Virgínia.
Em Massachusetts, trabalhadores têm direitos a licenças remuneradas para cuidados com a saúde. Na Califórnia, os condados e municípios podem criar regramentos específicos. Durante a pandemia, alguns condados aprovaram leis obrigando o pagamento de adicional de insalubridade a trabalhadores de serviços essenciais, como farmácias e supermercados.
Suécia e Japão e suas longas licenças parentais
Suécia e Japão têm em comum a duração de suas licenças para pais e mães que tiveram ou adotaram filhos. As semelhanças, porém, param aí.
No Japão, as funcionárias de empresas privadas podem tirar 14 semanas de licença, que pode começar até seis meses antes do parto. A família também tem direito à licença parental suplementar de até um ano e o afastamento pode ser usado por mãe ou pai.
Segundo dados compilados por João Renda, em pesquisa pela UFRJ, e pela professora associada kyio Shimamura, da Universidade Rikkyo, de Tóquio, somente 7,4% dos homens que poderiam usar a licença em 2019 fizeram o pedido.
Em 2020, o anúncio de que o ministro Shinjiro Koizumi, do Meio Ambiente, tiraria duas semanas de licença-paternidade causou comoção, não só por ele ter sido o primeiro integrante do primeiro escalão a usar o direito, mas pela baixa popularidade do afastamento do trabalho.
Na Suécia, a licença parental compartilhada existe desde os anos 1970 e passa de um ano. São, ao todo, 16 meses ou 480 dias. Durante 390 dias, o trabalhador que se afastou recebe 80% de seu salário integral. A regra também prevê que, do período total, ao menos três meses sejam obrigatoriamente usados pelos pais. Em 2017, os pais já usavam mais de 27% do tempo total de licença.
Fonte: Folha de São Paulo