Diante da falta de fiscalização institucional e o incentivo estatal ao garimpo, indígenas protegem suas terras por conta
Ouça o áudio:
A fumaça preta subiu no meio da paisagem verde, em Roraima. E se deslocou pelo Rio Maú, à medida em que a balsa de garimpo incendiada na Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol seguiu o curso das mesmas águas contaminadas pela atividade ilegal para a qual ela era usada.
O vídeo divulgado nesta segunda-feira (13) pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) mostra parte da ação de indígenas em defesa de seu território, que fica na fronteira com a Venezuela.
A ação aconteceu na região das serras, no município de Uiramutã (RR) neste mês de junho. Por questões de segurança, as fontes não quiseram informar o dia exato, mas confirmaram que além da queima da balsa, foram apreendidos centenas de materiais de extração ilegal de ouro e minérios.
“Atividades de garimpo são proibidas em terras indígenas. Já passou do tempo de ficar olhando de braços cruzados, denunciando e não ter respostas”, explicou Edinho Batista, do povo Macuxi da TI Raposa Serra do Sol e coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR) ao Brasil de Fato.
“A justiça não age, nossa água e nossos peixes contaminados, nossa floresta sendo derrubada, as lideranças assassinadas. A gente não vai ficar assistindo nosso povo morrer, se temos condição de fazer algo. E vamos fazer ainda muito mais”, frisa.
O grupo que organizou essa e outras ações para combater invasões na TI Raposa Serra do Sol – onde vivem os povos Wapichana, Patamona, Macuxi, Taurepang e Ingarikó – é encabeçado por lideranças indígenas da região e composto por mulheres, homens e jovens.
“É uma organização que cada dia vai crescendo, incluindo mais pessoas. Com esse olhar de que se não somos nós, ninguém vai fazer por nós”, explica Edinho Macuxi. Ações como essa estão sendo organizadas há aproximadamente dois anos. É a partir desse período que, segundo o CIR, se intensificaram as atividades extrativistas na região, dobrando de dois para quatro mil garimpeiros entre 2019 e 2020.
O apoio estatal a invasões de territórios indígenas
A situação piorou desde que, em 2021, o incentivo estatal à invasão de terras indígenas em Roraima ganhou novos contornos com a Lei Estadual nº 1.453 que legalizava o garimpo com uso de mercúrio, sancionada pelo governador Antônio Denarium (PP). Apesar de ter sido derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sete meses depois, aparentemente, representou um aval.
No ano passado o CIR encaminhou dois ofícios ao Ibama, ao Ministério Público Federal (MPF) e à Polícia Federal (PF) denunciando o crescimento do garimpo na região.
Mas se para alguém o aval do Estado estava dúbio, o presidente Jair Bolsonaro (PL) deixou evidente. Em outubro de 2021 visitou uma área de garimpo ilegal dentro da TI Raposa Serra do Sol e, com um cocar na cabeça, discursou em defesa do Projeto de Lei 191/2020. O texto, que está em tramitação no Congresso Nacional, autoriza a mineração e exploração de recursos hidrológicos em territórios indígenas.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), pouco mais de 100 indígenas morreram direta ou indiretamente por causa da mineração ilegal no Brasil só em 2021.
Juntas, a TI Raposa Serra do Sol e a TI Yanomami (a primeiro ao nordeste e a segunda ao norte do estado de Roraima), possuem cerca de 11 mil hectares. São os territórios indígenas mais afetados pela escalada do garimpo ilegal.
O relatório “Yanomami sob ataque”, divulgado pela associação Hutukara em abril, alerta para a maior invasão garimpeira da história do território. Entre 2016 e 2021, ela saltou 3.350%.
“Os ataques na TI Yanomami, terras de outros parentes em outras partes do Brasil que estão sendo invadidas e destruídas, agora o desaparecimento dos nossos amigos indigenista e jornalista no Vale do Javari…”, lista Edinho Macuxi: “Tudo isso nos motiva a de fato fazer ações como essa para dar uma resposta dura também para o Estado”.
Autodefesa indígena
O coordenador do CIR faz menção a Bruno Pereira e Dom Phillips, que desde 5 de junho desapareceram no Vale do Javari, na região amazônica. O jornalista inglês estava escrevendo um livro com o título Como salvar a Amazônia.
E Pereira atuava junto com indígenas da região – de povos como os Mayuruna, Matis, Marubo, Kulina Pano, Kanamari, entre outros – justamente na organização de um grupo autônomo de vigilância contra as invasões de pescadores, caçadores, garimpeiros e madeireiros na TI Vale do Javari.
É esse grupo que, desde a primeira semana de junho, parou de fazer suas atividades cotidianas para concentrar todos os esforços na busca dos dois desaparecidos.
A vigilância indígena da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que Bruno Pereira ajudou a organizar, ganhou corpo em setembro de 2021 e fazia o registro e a produção de provas das atividades ilegais no território. Quando sumiu, Bruno Pereira (servidor da Funai exonerado durante o governo Bolsonaro), levava materiais produzidos pelo monitoramento indígena para a Polícia Federal (PF).
Para Edinho Macuxi, as iniciativas autônomas de luta pela preservação dos territórios indígenas precisam ser encorajadas. “É de fato necessário. Para defender nosso território, nossa liberdade e nossa dignidade.”
Fonte: Gabriela Moncau | Brasil de Fato