Soberania alimentar na Amazônia: o que é preciso reconstruir e onde é possível avançar? Especialistas respondem
No governo de Jair Bolsonaro (PL) a fome ganhou espaço na Amazônia. No Norte brasileiro, a insegurança alimentar grave e moderada está em 54,6% dos lares de agricultores familiares, segundo a Rede Penssan, índice maior do que em qualquer outra macrorregião do país.
Lula na presidência abre perspectivas de reversão do desmonte bolsonarista das políticas de soberania alimentar na Amazônia. O novo momento político do país guarda possibilidades de avanço e limites objetivos, diante da frente ampla que deve governar o país.
O Brasil de Fato ouviu um experiente time de acadêmicos, ativistas e gestores para obter um diagnóstico aprofundado do momento – de onde viemos e para onde vamos em termos de política alimentar na Amazônia.
Os balanços e as perspectivas estão disponíveis na íntegra mais abaixo.
Todos são unânimes em afirmar que a recuperação de programas de incentivo à agricultura familiar, desmontados por Bolsonaro, é uma das primeiras soluções à vista. E que é preciso estender a pequenos produtores os incentivos dados ao agronegócio.
Desfazer a hegemonia do agronegócio no campo, porém, dependerá mais da luta popular do que governo, que é comprometido a combater a fome, mas permeável aos interesses do agronegócio, setor que representa um entrave à conquista da soberania alimentar.
A promoção pelo Estado da segurança e soberania alimentar dos povos amazônicos deve respeitar as diversidades regionais das populações que habitam uma floresta com proporções continentais.
Além da fome, um problema grave é a introdução de ultraprocessados nas dietas de comunidades indígenas e ribeirinhas. A solução passa necessariamente pelo incentivo à agroecologia e ao resgate dos modos tradicionais de alimentação, mais saudáveis e ambientalmente sustentáveis.
Outro ponto que une os três nomes ouvidos pela reportagem é que não é possível combater o desmatamento e a insegurança climática que assola o planeta sem garantir comida no prato dos povos da floresta.
Para tanto, é preciso proteger e regularizar territórios tradicionais, já que o aumento das invasões em áreas protegidas desorganiza as cadeias produtivas e coloca em risco as vidas dos responsáveis pela produção de alimentos.
Como Bolsonaro levou fome à Amazônia e o que Lula deve fazer para reverter o quadro? Veja o que diz cada um dos entrevistados.
Simy Corrêa: educadora popular, geógrafa e jurista
Quem é | Sou coordenadora-executiva do Fundo Dema, um fundo de justiça socioambiental e climática que vai completar 20 anos de atuação em 2023.
Balanço | A insegurança alimentar, especialmente para povos e comunidades tradicionais na Amazônia, passa pelo processo de destruição da natureza totalmente protagonizado pelo governo.
Este governo que está finalizando começou com uma lei que eliminava os espaços de diálogo, especialmente o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que organizava a política de segurança alimentar e nutricional no país.
O processo só foi agravado com a pandemia, mas ela não foi a causa desse quadro. Não dá pra se esconder atrás dela em relação à segurança alimentar do país.
Muitas famílias foram ameaçadas e consequentemente deixaram de produzir alimentos
O governo desconstruiu de forma proposital as políticas dos órgãos ambientais. Isso criou uma fragilidade dentro do território, uma fragilidade da segurança e de circulação das pessoas, dentro do seus fazeres e viveres. Isso por si só já gera insegurança alimentar.
As ameaças à vida estão totalmente associadas à ameaça ao território. Quando a gente o deixa completamente desprotegido de uma invasão garimpeira ou madeireira, a destruição da natureza faz com que não tenha caça, peixe suficiente, nem frutos suficientes.
Perspectivas | O “revogaço” proposto por Lula é um indicativo de que haverá uma construção juridico-politica de retomada de direitos. E de forma até inovadora com o Ministerio dos Povos Originários, com todas as contradições e complexidades envolvidas.
Mas a resistência está nos territórios. E a agroecologia hoje é um modelo social que o governo precisa fomentar. Ela tem esse nome, agroecologia, que é dado tecnicamente, mas os territórios já fazem isso milenarmente. Que esse modelo de sociedade seja tocado para frente com toda a sua potência.
A agroecologia é um modelo social que o governo precisa fomentar
As políticas de fomento à agricultura familiar e tradicional que não utilizam veneno precisam existir. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de aquisição de alimentos estão vinculadas a esse modelo. Não é simplesmente dizer “vamos comprar da agricultura familiar”. E sim perguntar “quais as condições a agricultura familiar tem hoje para produzir alimentos saudáveis?”
Esse setor precisa de acesso a técnicas e equipamentos que deem condição a uma produção menos sofrida, mais qualitativa e sem veneno. Esse é um tipo de fomento que envolve formação, troca de conhecimento e transmissão de tecnologia.
Outro prioridade é a regularização fundiária. O acesso a terra é à condição de existência dessas populações. Existe existe uma intencionalidade do capital que é de não alimentar todas as pessoas. Não é por acaso que o alimento processado é mais barato. É porque todas as condições são dadas ao agronegócio.
Mariana Inglez: bióloga, mestre em Biologia e doutoranda no Instituto de Biociências da USP
Quem é | Eu estudo o processo de transição dietética em comunidades tradicionais da Amazônia a partir de uma abordagem bioantropológica.
Balanço | O aumento do consumo desses alimentos, associados a um estilo de vida sedentário, está diretamente relacionado a doença cronicas cardiovasculares, diabetes, sobrepeso, que também são de preocupação global, pois são responsáveis por gastos em saúde pública.
No Brasil temos o agravador da insegurança alimentar. Não conseguimos resolver a questão fome, mas já estamos passando pelo processo de transição nutricional, inclusive em áreas rurais.
Recentemente a gente tem visto a insegurança alimentar extrema entre os Yanomami, que vivem uma grande invasão de garimpeiros.
A indústria de alimentos é incompatível com a floresta em pé
A gente tem crianças desnutridas, com estatura e peso abaixo do esperado pra idade, mas ao mesmo tempo observamos sobrepeso e obesidade em comunidades tradicionais, mesmo que associadas à fome, justamente por conta desse consumo de alimentos que não são adequados.
A merenda tem um papel fundamental. A Amazônia tem frutas locais tão ricas. E as escolas recebem sucos industrializados com alto teor de açúcar, biscoitos… É o estímulo ao produto industrializado desde a primeira infância. A indústria de alimentos é incompatível com a floresta em pé e com a biodiversidade.
Perspectivas | É preciso olhar para as características de cada uma das populações da Amazônia. Tentar pensar como a gente precisa olhar para os contextos específicos e adaptar as políticas públicas para esses contextos.
O bolsa família foi e é extremamente importante principalmente para o combate à fome, mas ele precisa de adaptações para cada um desses contextos.
Há comunidades em terra firme e nas várzeas. A dinâmica da agricultura familiar também depende disso. Entender qual a dinâmica das comunidades para centros urbanos, porque o consumo de alimentos está relacionado à distância desses centros urbanos e até com a disponibilidade de tecnologia para armazenar alimentos.
Bolsa Família precisa ser adaptado às diferenças regionais da Amazônia
Se a gente pensar em alimentos industrializados, cheios de conservantes, eles duram muito mais. Isso importa em um contexto em que as famílias não tenham refrigeradores. É preciso valorizar a produção e o escoamento desses alimentos.
Um caminho que deu certo no passado e está sucateado seria a parceria com o governo, os chamados mercados governamentais, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) ou PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Teve ainda o sucateamento da merenda, que contribui para essa transição nutricional.
Outra possibilidade são parcerias robustas incentivadas pelo governo com mercados privados que também acreditem na cadeia de produtos da sociobiodiversidade.
A produção agroecológica de produtos amazônicos é um potencial incrível para gerar renda e garantir segurança alimentar, diminuindo a pressão sobre os recursos naturais.
José Josivaldo, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB)
Quem é | Sou membro da coordenação do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e integrei o grupo de transição do governo federal na área de Desenvolvimento Agrário.
Balanço | Não dá pra olhar o Brasil sem compreender as disputas na geopolítica e o peso da produção do agronegócio para exportação na balança comercial. No período da pandemia constatamos o quanto é expressivo esse setor do capitalismo no campo, apelidado de agronegócio.
A produção industrial no Brasil tem 20 anos de declínio. Em nível global, olhando os aspectos de consumo em massa e produção industrial, todos os dados apontam para uma quase estagnação.
Na pandemia constatamos o quão expressivo é o setor do agronegócio
O que tem crescido na maioria dos países é justamente a inflação, que é o descompasso entre o consumo e a produção e a especulação. E isso afetou profundamente o Brasil.
Perspectivas | Do ponto de vista político estamos em um bom momento da conjuntura nacional e internacional. Na América Latina a gente vem convivendo com uma onda de novas eleições e reeleições de governos progressivas ou de esquerda.
Mas isso não se traduz necessariamente em grandes reformas em favor da classe trabalhadora.
O governo Lula não terá condições objetivas para responsabilizar o agronegócio pelos problemas na economia brasileira. Não dá para fazer o agronegócio parar imediatamente de destruir a natureza. Não dá para dizer “a produção de alimentos será agora orientada pelo estado”.
Acho pouco provável que no governo Lula desbanque o agronegócio, justamente porque pretende equilibrar a balança comercial com o consumo interno.
Diminuir o poder do agronegócio e aumentar o poder da agricultura familiar é uma possibilidade que está aberta
Isso significa dizer que a classe trabalhadora do campo teria que partir para um enfrentamento político frontal contra os setores dominantes que acumulam riqueza? Teria que haver um nível de organização popular mais elevado. Um poder mais organizado através dos movimentos e dos partidos de esquerda e centro esquerda.
Diminuir o poder do agronegócio e aumentar o poder da agricultura familiar é uma possibilidade que está aberta. Mas, sim, nós temos como crescer. O governo pode dar mais subsídios à agricultura familiar.
O Estado precisa aportar recursos e não exigir nada em troca do trabalhador, porque esse trabalhador está numa situação parecida com quando saiu da escravidão de 300 anos.
É preciso subsidiar a energia elétrica aos trabalhadores do campo, para quem está na produção de alimentos. Tem que ter aporte para transporte. Dar condições aos agricultores para que eles se organizem e produzam em grande quantidade e qualidade saudável para alimentar o povo brasileiro.
O agronegócio vai continuar com muito poder, mas temos chance de diminuir o grau de participação e destruição que ele tem sobre a natureza e em especial sobre a Amazônia. Nós trabalhamos com essa expectativa.
Fonte: Redação Brasil de Fato