Consea-SP não convocou conferência para atualizar a política de segurança alimentar e nutricional no estado
Em uma audiência pública sobre combate à fome, realizada em março na Câmara dos Deputados, João Dornellas se apresentou assim: “Eu também sou presidente do Conselho de Segurança Alimentar do estado de São Paulo [Consea-SP], mas hoje estou falando em nome da indústria de alimentos do Brasil”.
É que Dornellas, além do Conselho, preside a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) – um evidente conflito de interesses, como apontou O Joio e o Trigo no momento de sua eleição, em 2021.
Na época, o colegiado nacional de presidentes dos 27 conselhos estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável se manifestou contra a presidência do Consea-SP ser ocupada por representantes da indústria de ultraprocessados. Movimentos, coletivos e entidades também reagiram e realizaram um tuitaço com a hashtag #AbiaNoConseaNão. Em um momento em que a fome avançava no país, especialistas apontaram a gravidade de entregar o Conselho, uma ferramenta de controle social e de garantia do direito à alimentação, a representantes de interesses privados, no que chamaram de “captura corporativa“.
Durante a gestão de Dornellas, que se encerra em dezembro deste ano, o conselho viveu um período de estagnação e de perda de protagonismo. André Luzzi, integrante do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo e do Fórum Paulista de Segurança Alimentar considera que o conselho estadual perdeu a oportunidade de ser uma voz ativa e de se articular com as demais instâncias públicas para dar respostas “às múltiplas crises que estamos vivenciando”.
Segundo ele, pautado pelos interesses da indústria, o conselho “acaba servindo para aparência de participação social”, enquanto a definição das políticas “acontece no cafezinho e nos hotéis e almoços de negócios”.
Por decreto, o Conselho precisa realizar e coordenar a Conferência Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, pelo menos uma vez a cada quatro anos, bem como definir seus parâmetros de organização e funcionamento. A última conferência estadual foi realizada em 2015, no momento em que o Brasil havia reduzido de forma expressiva a insegurança alimentar a ponto de deixar o Mapa da Fome da ONU em 2014. Ou seja, uma nova conferência deveria ter sido realizada em 2019 e já estava atrasada quando Dornellas assumiu o cargo. Apesar disso, durante a sua gestão, o tema pouco avançou.
A Conferência é importante para estabelecer as bases e revisar os planos de Segurança Alimentar e Nutricional, que são a principal ferramenta para a implementação das políticas de combate à fome no estado. Ela constitui um amplo processo de diálogo social entre o governo e a sociedade civil sobre os programas de segurança alimentar e nutricional.
O plano atual foi apresentado em 2018, elaborado com base nas deliberações da última conferência estadual, de 2015. Ele tem vigência de quatro anos, ou seja, vai de 2019 a 2023. Apesar de estar próximo do fim da sua vigência, o plano não chegou a ser implementado em sua totalidade e carece de mecanismos de monitoramento e avaliação.
Justamente por isso é ainda mais urgente a convocação da Conferência estadual, para realizar o processo de revisão do documento. Só então o novo Plano pode ser elaborado e passar pela validação do Consea-SP e da sociedade civil organizada por meio de consulta pública.
“O ano que vem seria o período que o novo governo teria para elaborar um novo plano. Chegamos a conversar na Secretaria da Agricultura e foi considerado pelo Consea uma reavaliação, mas depois isso se diluiu e acabaram não colocando mais em pauta”, aponta Maria Rita, representante da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no Consea-SP.
A revisão do plano chegou a ser proposta pela gestão de Dornellas, mas sem a convocação da conferência estadual. “Consta em ata que, quando esta revisão acontecer, deverá ser feita por todo o colegiado, mas, na verdade, revisões de plano devem acontecer em momentos de conferências regionais e estadual”, ressalta Mônica Jorge, suplente da Universidade de São Paulo (USP) no colegiado.
Defesa dos ultraprocessados
Na audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada em março, Dornellas abordou o período de pandemia e festejou o fato de “não ter faltado alimento no mercado brasileiro para o consumidor”. Ele encerrou a fala dizendo para o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PSD-AM), contar com a Abia e com a Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes) para “tratar de buscar, dentro das políticas públicas bem elaboradas, uma maneira mais viável de fazer esse alimento chegar onde ele precisa chegar.” Na ocasião, o presidente da Abir, Alexandre Horta, estava sentado ao lado de Dornellas.
Se ficou alguma dúvida em relação a qual tipo de alimentos ele estava se referindo, o próprio Dornellas explica, durante um evento da Secretaria de Agricultura paulista em julho deste ano, com o tema Indústria de Alimentos 2030.
“Infelizmente de uns anos pra cá o termo processamento tem sido altamente criticado e se diz que o alimento quanto mais processado é pior. A tecnologia veio para facilitar a nossa vida, a tecnologia faz bem. E porque seria diferente na indústria de alimentos? Usar o bom processamento e a boa tecnologia faz bem pra humanidade”, disse o presidente do Consea-SP em defesa dos alimentos ultraprocessados, principal ativo das empresas que representa.
André Luzzi considera que a atuação da Abia dentro de um colegiado voltado para a participação social, é uma forma de legitimar a atuação empresarial perante a população, sem passar pelos espaços tradicionais de propaganda e dos custos envolvidos no processo da divulgação comercial dos produtos.
“Eles economizam em pesquisa e desenvolvimento, porque as informações chegam até eles. O contato com organizações sociais garante uma grande escuta, e as Comissões Regionais têm esse nível de capilaridade, de chegar no coração da administração pública e na convivência com a sociedade.”
O Joio procurou a Abia, mas a associação não respondeu até a publicação desta reportagem.
Segurança alimentar
O evidente descompasso entre a agenda da indústria de alimentos e a promoção da segurança alimentar e nutricional, porém, não é o principal problema que afeta o Consea-SP, na avaliação das representantes de universidades ouvidas pelo Joio.
Maria Rita considera que, nos moldes como está desenhada essa política em São Paulo, em que o governo consegue indicar boa parte dos membros do Conselho, a presidência do colegiado acaba sendo inexpressiva. “Sinceramente, não interessa qual é o boneco que se coloca lá, porque vai ser um boneco. Não importa se é o cara da Abia ou se é o cara da avicultura, porque é sempre um desses que entram. A Secretaria faz o que ela quer, ela traz uma pauta que coloca em evidência as políticas dela.”
Mônica Jorge considera que, na atual configuração, o Consea-SP se assemelha a um “órgão anexo” da Secretaria de Agricultura. Segundo ela, é como se os papéis estivessem invertidos: ao invés de o Consea aconselhar a secretaria na elaboração de políticas, o conselho é pautado pela pasta. “Essa minha sensação não é de agora, pois eu participei de vários momentos do Consea, desde 2015. Não sei se é a composição do conselho que representa um nó, um entrave para as coisas avançarem em São Paulo, ou se é o vínculo com a Secretaria da Agricultura.”
Na prática, a política de segurança alimentar é elaborada dentro da Secretaria de Agricultura, por meio de estruturas como a Coordenadoria de Desenvolvimento dos Agronegócios (Codeagro) e da Coordenação de Segurança Alimentar e Nutricional – esta última foi criada na gestão de Itamar Borges (PSDB) como chefe da pasta, entre 2021 e 2022.
“Tivemos uma reestruturação muito negativa”, avalia Luzzi sobre a atuação de Borges na secretaria. Eleito deputado estadual, Borges saiu da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para assumir o cargo. “Ele veio para fortalecer o papel do agro, chancelar os nomes do governo para a reeleição e bloqueou o debate sobre segurança alimentar e nutricional no Estado”, afirma Luzzi.
Interrupção dos trabalhos
Em 2019, após a extinção do Consea nacional pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), o Consea-SP entrou em período de vacância e só retomou as atividades em 2021. “Mesmo retomando os trabalhos e realizando reuniões virtuais, considero que o entusiasmo e a disposição não são iguais quando as reuniões eram presenciais”, avalia Mônica Jorge.
Além da tentativa de revisão do Plano que não avançou, a gestão de Dornellas foi marcada pela discussão sobre a reconstrução das Comissões Regionais de Segurança Alimentar e Nutricional (CR-SANS). “Essas vacâncias desmobilizam, porque o Conselho sempre está recomeçando. Então praticamente essa gestão tentou se organizar e fortalecer a atuação da sociedade civil nos territórios”, considera André Luzzi.
Marcelo Mazeta, secretário de Assistência Social de Araraquara (SP), que atuou na formação do primeiro Consea-SP em 2006, considera que as vacâncias e rupturas na atuação do Consea são próprias de governos que “não trabalham pautados com o pressuposto de que a sociedade civil organizada precisa estar presente, dialogando e se posicionando diante da construção de uma política pública efetiva”.
“Essa participação precisa ser efetiva e, quando não há, demonstra claramente que o governo não tem prioridade para que a participação social seja um dos pilares. Isso afeta diretamente a construção da política pública, principalmente voltada para aquelas pessoas que mais precisam.”
Nem sempre foi assim
O Consea-SP foi criado em 2006 na gestão de Geraldo Alckmin e foi presidido pelo bispo Dom Mauro Morelli, que participou da reativação do Consea nacional em 2003, durante o governo do ex- presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mazeta participou da implementação do Consea-SP como assessor de Morelli e destaca a atuação do colegiado naquele período.
“Dom Mauro tocou o conselho com bastante autonomia e recurso, estruturado junto à Casa Civil do governo estadual. Isso deu a oportunidade de estar dentro de uma estrutura pública, onde você dialogava diretamente com o gabinete do governador para tratar dessa política”, aponta.
Na gestão de Morelli, foram criadas de 35 Comissões Regionais de Segurança Alimentar e Nutricional (CRSANS) pelo estado, o que permitiu uma grande participação dos municípios menores na discussão das políticas estaduais. Hoje o estado conta com apenas 16 comissões regionais.
“Nós tivemos inúmeros seminários pelo estado todo, de forma regionalizada. Foi um momento ímpar porque, de fato, a sociedade civil, através das organizações, puderam estar compondo, participando dessa construção coletiva. Dali também emergiu essa riqueza e dinâmica regional [da produção de alimentos] que existe no estado de São Paulo.”
Ele considera que a escolha de um nome representativo para a presidência do colegiado tem peso no direcionamento das políticas e na interlocução com os municípios. “As subprefeituras participavam muito ativamente e não foi diferente também nas regiões do estado. Nós tínhamos o apoio efetivo dos prefeitos, independente dos partidos, mas porque, acima de tudo, tinha Dom Mauro à frente da presidência do conselho, que tem um histórico inigualável, juntamente com o próprio Betinho e, àquela época, conseguiu implementar e promover ações.”
Novas eleições
O processo para formar a nova composição do Consea-SP e, em seguida, para eleger o presidente, foi anunciado pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento em setembro – mas boa parte dos membros e o presidente podem ser reeleitos, então é possível que o conselho mantenha seu perfil atual. Em sua reunião no mesmo mês, o Consea-SP nomeou uma comissão eleitoral que será responsável por conduzir o processo, e o regulamento deve ser publicado até o final do mês.
A votação propriamente dita dos representantes da sociedade civil, que acontece em assembleias eleitorais, está prevista para o mês de novembro. No total, o Consea-SP é composto por 36 representantes, sendo 12 indicações do governo estadual e 24 da sociedade civil. Desses 24, entretanto, 8 vagas vão para instituições ou personalidades escolhidas pelo governo. Ou seja, dos 36 representantes, 20 são escolhidos pelo governo, formando a maioria do conselho. Foi dessa forma que a Abia conseguiu assento no Consea.
André Luzzi defende que os assentos por convite do governador devem terminar, de forma a garantir a efetiva participação popular no conselho. “Devemos cobrar da atual gestão e das próximas, que seja organizada essa forma de escolha. Que sejam eleitos representantes dos segmentos afetados pelos sistemas alimentares de forma a evitar que setores das corporações tenham tanta pressão num espaço de participação do Consea.”
A baixa participação da sociedade no processo eleitoral é apontada como a principal razão para que o governo paulista consiga eleger seus candidatos à presidência, como ocorreu no caso de Dornellas. “A gente está correndo um sério risco de ter uma eleição como foi a última, com uma baixa participação. Todas as vezes que eu participei do processo eleitoral de São Paulo, ganhou quem o governo quis”, alerta Maria Rita.
Ela ressalta a importância de que o processo seja realizado de forma participativa e democrática, diferente do ocorrido em 2021, que classifica como “uma coisa descarada”. “Eu recebi contatos de pessoas de governo que tinham sido indicadas para participar do Consea e que estavam recebendo ordens de quem elas deveriam votar.”
Fonte: Redação Brasil de Fato