Acordo coletivo previa que trabalhadores não receberiam por tempo em deslocamento; TST foi contra, mas STF manteve
Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 2 de junho, abriu espaço para discussões no meio jurídico sobre os rumos dos direitos dos trabalhadores após a “reforma” implementada em 2017, ainda durante o governo de Michel Temer (MDB).
O Supremo confirmou uma cláusula de acordo coletivo que suprime direitos previstos na legislação trabalhista, em votação do colegiado do STF, que deu ganho de causa à Mineração Serra Grande S/A, de Goiás, em recurso contra decisão tomada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).
O acordo coletivo assinado previa que a empresa forneceria transporte para os trabalhadores entre o centro urbano da cidade de Crixás e a sede da mineradora, mas sem pagamento pelas horas gastas em deslocamento. O TST anulou essa cláusula do acordo – e foi essa decisão que foi derrubada pelo STF.
Centrais criticam a decisão
Em nota em seu site oficial, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) lamentou a derrubada, e lembrou que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Justiça do Trabalho geralmente autorizavam que “o negociado prevalecesse sobre o legislado”, desde que não implicasse em retirada de direitos. Desde as mudanças na legislação trabalhista, porém, a pedido dos patrões, o critério passou a poder ser aplicado de sinal trocado: a Justiça passou a ter a prerrogativa de retirar direitos.
O advogado José Eymard Loguércio, que representou a CUT Nacional na votação no Supremo, afirmou que a negociação coletiva deve ser valorizada, mas o Judiciário não pode naturalizar a retirada de direitos. A entidade foi convidada a participar, mesmo não sendo parte diretamente envolvida, como representante dos trabalhadores em geral, que têm interesse direto no processo.
“Quando se faz uma naturalização da regressão de direitos para a construção da autonomia coletiva, começamos a desproteger novamente, porque não há princípio de equivalência entre as partes”, disse, durante o primeiro dia do julgamento no Supremo (quarta, dia 1º).
O secretário-geral da Intersindical, Edson Índio, destacou que a supressão do direito de pagamento pelas horas em deslocamento não teve nenhum tipo de contrapartida. Ele disse que a decisão do Supremo acompanha a posição das entidades patronais, que há muito tempo pressionavam para poder retirar direitos, o que culminou com a “reforma” de Temer.
“Foi um retrocesso, mas não esperávamos coisa diferente, já que as decisões de matérias que chegam ao STF geralmente têm sido ruins para os trabalhadores. Esse debate, inclusive, sobre pagamentos de horas gastas em itinerários a locais de difícil acesso, aconteceu durante a tramitação da reforma, isso já era previsto”, lamentou.
Índio disse, ainda, que a decisão do Supremo é perigosa em pontos menos específicos. Por exemplo, quando é citado que os direitos trabalhistas podem ser negociados abaixo do que preveem as legislações, desde que um “patamar mínimo” de direitos seja respeitado.
“Só pode haver negociação para melhorar o que já está conquistado. Negociar pra reduzir é que não pode. Não vamos, centrais e sindicatos, negociar abaixo do patamar que já temos. Isso inclusive vai contra o princípio constitucional do não retrocesso social”, alertou.
Alerta para os trabalhadores
Para a juíza do trabalho, Valdete Souto Severo, que também é professora de direito do trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o caso deve ser observado com atenção pelas entidades de classe. Ela lembra que a discussão nas instâncias superiores da Justiça só existiu por que o acordo coletivo previu que os trabalhadores não receberiam pelas horas que passam no transporte fornecido pela empresa.
“Nesse caso específico, a discussão não se relaciona com a questão do ‘pactuado sobre o legislado’. O STF está tirando um direito previsto em lei, mas retirado em acordo. O que o Supremo está dizendo é que é possível um acordo coletivo retirar um direito previsto em lei”, alerta.
A juíza chama atenção para o fato de que a legislação em vigor prevê requisitos mínimos para as relações de trabalho, e isso inclui, por exemplo, o tempo máximo de jornada de trabalho, a necessidade de salário mínimo e o oferecimento de condições de segurança. E alerta: cabe aos sindicatos negociarem para conquista de melhores condições para as categorias que representam – e não piores.
“Essa decisão é muito importante para ser refletida e discutida, pois mostra como o STF está se comportando perante alguns direitos que são reconhecidos como fundamentais. O problema é quando convenções e acordos retiram direitos, e cada vez retiram mais. O sindicato assinou um acordo”, destaca.
Espaços em disputa
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o jurista Jorge Souto Maior vai na mesma linha, e afirma que a classe trabalhadora não deve aceitar argumentos econômicos de que “se a empresa não reduzir direitos, ela não vai conseguir se manter”, em ambientes de negociação e reforça que as categorias devem se recusar a aceitar propostas que retirem conquistas anteriores.
A decisão do STF no caso da mineradora goiana, segundo Souto Maior, não “faz terra arrasada” nos direitos trabalhistas. O caso é muito específico e ainda há muitos espaços de disputa. “Não é uma situação simples, mas é absolutamente necessário que os sindicatos, as centrais sindicais e o movimento trabalhista como um todo deem uma resposta em outro sentido: não negociar nada que envolva redução de direitos. Essa contraposição política é que pode estabelecer mudanças positivas”, pondera.
A mineradora goiana pertence ao grupo sul-africano AngloGold Ashanti, um dos maiores da área no mundo. A decisão tomada beneficia a gigante, e, por ser uma decisão específica, não tem impacto favorável a outras empresas, deste e de outro setor.
“Nesse caso é um benefício para esta empresa em detrimento de outras, que não conseguem o mesmo patamar de redução de benefícios. Quando os trabalhadores assinam um acordo de retirada de direitos, eles favorecem o grande capital”, destaca Souto Maior.
“Só vai ser possível reverter esse cenário com uma atuação da classe trabalhadora como classe. O que interfere na vida dos petroleiros deve dizer respeito também aos metroviários. O que interessa aos metalúrgicos, interessa também aos bancários. Sempre que houver esse tipo de ameaça a uma categoria, as demais devem estar solidárias”, completa.
Fonte: Felipe Mendes | Brasil de Fato