Mauro Bertoli (União Brasil) está respondendo criminalmente pelo armazenamento e compartilhamento de conteúdo ilícito enquanto segue vice-presidente da Casa e líder do prefeito
Denunciado pelo Ministério Público, por meio da 6ª Promotoria de Justiça de Apucarana, por armazenamento e compartilhamento de pornografia infantil, o vereador Mauro Bertoli (União Brasil), vice-presidente da Câmara de Vereadores e líder do prefeito na Casa, segue no cargo sem qualquer investigação interna. A denúncia do MP data de fevereiro de 2022, mas o conteúdo ilícito foi enviado à Câmara ainda no ano passado, quando o vereador era alvo de uma investigação por abuso de poder econômico durante as últimas eleições municipais.
Bertoli chegou a ter o mandato cassado pela Justiça Eleitoral de Apucarana nesse processo, mas teve recurso acatado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PR) em 25 de julho deste ano e, com isso, manteve seus direitos políticos. O conteúdo ilícito envolvendo menores foi encontrado pela 4ª Promotoria em um dos celulares do vereador durante a investigação eleitoral. O material circulou em um grupo de WhatsApp do qual Bertoli participava.
Após a descoberta, o MP encaminhou o conteúdo à Promotoria Criminal e à Câmara. Um ano depois – e descartada a hipótese de que Bertoli não havia interagido com o conteúdo – houve a denúncia e o processo segue sob segredo de justiça por envolver menores de idade. Durante esse período, o vereador Marcos da Vila Reis (PSD) foi designado pela Câmara para acompanhar as investigações junto ao MP, mas nenhuma medida interna foi tomada. A Casa não tem uma comissão de ética.
O caso realmente ganhou repercussão em maio deste ano, quando a ativista Renata Borges, presidente do diretório municipal do PDT, protocolou na Câmara pedido de abertura de comissão para investigar a conduta de Bertoli. Não houve resposta. Em 12 de julho o Portal 38 News divulgou áudio em que o prefeito, Júnior da Femac (PSD), solicita ao vereador Marcos que não abra a comissão.
“(…) quando você puder chama o Mauro, fala ‘Mauro, fique tranquilo’, por favor, não crie comissão, tá bom. Eu peço isso pra você. Eu queria te passar esse contorno político, tá. Porque que tão mexendo nisso. (…) eu acho que no final das contas você vai perceber, deve ter lá uma situação para o Mauro, mas por ele ter deixado o conteúdo no celular dele. Eu duvido que o Mauro tenha produzido um conteúdo desse, pago para alguém produzir, de forma alguma. Nós somos uma base de líderes né, e nós precisamos nos ajudar. Me ajude nisso tá, é um pedido meu“, diz o prefeito em trecho da conversa.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não prevê como crime apenas produzir conteúdo pornográfico dessa natureza, mas também o armazenamento e posse desses materiais, conforme artigo 241-B: “Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.“
À Lume, Marcos da Vila Reis diz que tem acompanhado as investigações com assistência da assessoria jurídica da Câmara. “Tudo que foi chegando pra mim eu fui passando para o presidente e ele foi pedindo para que o jurídico desse alguma assistência. Tem que ter todo cuidado para não expor demais a pessoa, até porque corre em segredo de justiça, vai que ele é inocentado lá na frente, como fica?”, pondera.
Para o vereador, alguma atitude interna em relação ao colega dependerá da decisão da justiça. Segundo ele, esse entendimento não tem relação com o pedido feito pelo prefeito. “A Câmara em si, na questão criminal, não pode fazer nada. Do lado político podia fazer algum barulho, mas não é muito do meu feitio. Prefiro esperar a justiça. Pode ser que lá na frente aconteça alguma coisa com esse vereador”.
Sobre o material encontrado no celular de Bertoli e enviado à Câmara, o vereador afirma não ter visto. “Ainda não assisti. Acredito que uma pessoa normal, imediatamente não faria mais parte desse grupo. Isso é abominável”, declara.
‘A gente fica de mãos atadas’
Apucarana tem 11 vereadores, dos quais apenas dois, Lucas Leugi (PP) e Moisés Tavares (Cidadania), se declaram de oposição. Após a divulgação dos áudios do prefeito, Moisés entrou com pedido de investigação sobre suposta interferência do Executivo no Legislativo. No dia 8 de agosto, o Departamento Jurídico da Câmara deu parecer negativo tanto ao pedido do vereador quanto à solicitação de criação de CPI feita meses antes por Renata Borges.
“A Câmara poderia de ter instaurado um processo interno para investigar a quebra de decoro do vereador, tal processo poderia culminar na cassação do mandato, a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro, com o ex-vereador Gabriel Monteiro. Ocorre que não há obrigação da Câmara em instaurar o procedimento, essa é uma decisão totalmente política“, explica a advogada e colunista da Lume Paula Vicente, da Advocacia Humanista.
Um exemplo recente e estadual mostra como casas legislativas se mobilizam quando querem punir algum de seus integrantes por atos que, em tese, violam a ética parlamentar. O vereador Renato Freitas (PT), de Curitiba, foi cassado por promover uma manifestação antirracista dentro de uma igreja. Mesmo com testemunhos dos responsáveis pela igreja a seu favor, foi derrotado. Ele era minoria na Casa. Embora Bertoli ainda não possa ser declarado culpado, uma vez que o processo está em curso, chama a atenção a blindagem por parte da Câmara.
O vereador Lucas Leugi (PP) relata que ser oposição inviabiliza alguns acessos dentro da Casa e dificulta ações inerentes ao próprio mandato. Ele diz, por exemplo, que ainda não teve acesso ao material enviado pelo MP.
“No inicio do ano passado a gente ouviu conversas de bastidores, que teria vindo um oficio do MP e que o presidente teria indicado um vereador para iniciar o procedimento relacionado àquele ofício. Junto com esse ofício também foi dito que veio um CD, com materiais apreendidos no celular dele. A gente nem teve acesso”, afirma ele à Lume.
Sobre a instauração de procedimento interno para investigar a conduta do vereador, Lucas se diz de mãos atadas. Ele conta que já propôs a criação de comissões de investigação em duas oportunidades neste mandato, uma delas sobre a falsa enfermeira presa no município, porém, não obtém o apoio necessário.
“Para que fosse instaurado uma Comissão – eu já tinha tentado por duas vezes, em outras situações – infelizmente a única assinatura que eu tinha era do vereador Moisés. Então a gente fica de mãos atadas. A base é muito unida, muito sólida. O prefeito realmente manda na Câmara”, declara.
O vereador Moisés Tavares considera o assunto “extremamente delicado e muito sério”. E critica o prefeito Júnior da Femac por interferir na Câmara com o objetivo de evitar a abertura de uma comissão para investigar Bertoli.
“A pergunta é: por que motivo o prefeito insiste e se preocupa em não deixar o Poder Legislativo cumprir com sua função?”, questiona ele em entrevista à Lume. Embora ressalte que o Ministério Público está investigando o caso com “todo zelo e cuidado”, Tavares diz que é dever da Câmara também participar da apuração.
“Trata-se de um agente público, que representa o Poder Legislativo. A Câmara tem essa prerrogativa de apurar a conduta dos eleitos e por isso poderia sim contribuir com as investigações, bem como possível instauração de uma comissão de investigação”, alega. Para o vereador, a investigação pelo Legislativo é importante até para dar a “devida publicidade” caso seja comprovada a inocência do colega.
“O assunto é extremamente delicado e pode comprometer totalmente não só a imagem e reputação do agente público envolvido como o Poder Legislativo em si.”
A reportagem fez contato com Bertoli, mas não obteve retorno. O advogado do vereador, João Batista Cardoso, disse que não poderia comentar o caso por estar sob segredo de Justiça.
O prefeito Júnior da Femac, por meio da assessoria do município, declarou que não mais comentaria o caso, “que já está sendo investigado pelo MP e a Justiça Criminal”. Quanto ao áudio vazado, informa que já existe investigação policial instaurada para apurar responsabilidades pela gravação e vazamento.
‘Essas pessoas têm privilégio’
A ativista Renata Borges lamenta que a Câmara de Apucarana não tenha se mobilizado em torno do caso e aponta privilégios comuns a políticos com o perifl do denunciado. “Como a gente está falando de pessoas brancas, heteronormativas, cisgênero, que gozam de um certo privilégio, poder aquisitivo aceitável dentro de uma sociedade capitalista, essas pessoas têm privilégio. Se fosse o recorte de um vereador preto, pobre, com pautas identitárias, talvez esse não fosse o procedimento que a Câmara iria fazer“.
Ela aponta esse comportamento como estrutural dentro da nossa sociedade. “Infelizmente, o que acontece na Câmara de Apucarana é o que acontece em todo o Paraná. Pessoas privilegiadas, com acesso à informação, pessoas que gozam do direito de usurpar, de violar as leis, porque a justiça é lenta. É uma tristeza. Se eu não levasse esse tema tudo seria silencioso, quieto, seria mais um boato na cidade, mesmo com o Ministério Público investigando essa situação”.
Em caso de uma eventual condenação criminal, o vereador automaticamente perde os direitos políticos e, com isso, o mandato. “Independentemente de deliberação da Casa Legislativa, esse é entendimento pacificado do art. 15, inciso III, da Constituição. Nesse caso, ele perde o mandato, não pode concorrer a cargos eletivos, além de não poder votar”, pontua a advogada Paula Vicente.
Fonte: Redação Rede Lume