Controladoria-Geral afirma que aumento é consequência de mudanças nas políticas de incentivo a denúncias e estímulo à formalização das queixas
Denúncias de assédio nas repartições do Paraná aumentaram significativamente na gestão de Ratinho Jr. (PSD), mostram dados da Controladoria-Geral do Estado (CGE). Para explicar o cenário, servidores alegam mais investidas de constrangimento e pressão; o governo, no entanto, afirma ser resultado de uma política de incentivo à comunicação formal dos casos, base de um programa de integridade colocado em prática em 2019.
Somente no primeiro semestre de 2022, considerando dados repassados em 18 de julho, foram encaminhadas à CGE 297 manifestações de servidores. É o equivalente a dez denúncias por semana e cerca de 27% a mais do que de janeiro a dezembro do ano passado; 219% superior a ano de 2020 e 275% superior a 2021 por completo.
O levantamento mostra ainda um crescimento paralelo de acusações relacionadas às duas práticas. De janeiro até julho de agora, já foram encaminhados 150 relatos de assédio sexual e 147 de assédio moral nas repartições do estado.
Embora os números de 2022 ainda sejam parciais, o que significa que pode haver mudanças substanciais até o fim do ano, é a primeira vez que as queixas de cunho sexual chegam a patamares tão elevados a ponto de se equipararem, em volume, às de assédio moral.
Neste contexto, a Secretaria de Estado da Educação e Esporte (Seed) vê disparar o volume de acusações verbalizadas e concentra 147 das 150 das denúncias de assédio sexual submetidas para análise da CGE desde janeiro até meados de julho. Portanto, 98% do total. A secretaria é responsável pelas escolas estaduais.
A denúncia é a primeira etapa do fluxo do processo de apuração, e, isoladamente, não significa uma investigação em curso nem, portanto, um caso comprovado. Como parte da interpretação dos dados, a Educação ressalva ser a secretaria com o maior número de pessoas agregadas, ter sido pioneira no combate aos casos de assédio tanto sexual quanto moral e ter uma “política de tolerância zero com casos de assédio”, o que, segundo a secretaria, impossibilita a comparação dos dados entre os anos.
Na trajetória em ascensão mostrada pela Controladoria, o total de denúncias de assédio sexual na Educação acumulado nesta primeira parte do ano ultrapassa o montante somado nos últimos sete anos. Entre 2015 e 2021, foram 140 denúncias de assédio deste tipo na Educação: 71 em 2015; 27 em 2016; 2 em 2017 e em 2018, e nenhuma em 2019.
Em 2020, ano letivo com menos de dois meses dentro das escolas – a pandemia virtualizou as aulas –, foram 13 queixas. Em 2021, 25 pedidos de investigação de assédio sexual partiram de dentro da secretaria entre janeiro e dezembro, período em que só houve aulas totalmente presenciais no último trimestre.
O que dizem os números
Os dados levantados pela Controladoria a pedido do Plural mostram que além da equivalência à proporção de servidores, há um certo padrão por modalidade.
Nos últimos anos, inclusive na pré-pandemia, a Saúde vinha concentrando a maioria das queixas de assédio moral, e a Educação, sexual. Há uma quebra neste ano, por ora, com a pasta comandada por Renato Feder com o maior acúmulo de denúncias nas duas frentes.
Somadas, denúncias de assédio sexual e moral já passam em quase 27% as protocoladas em 2021 inteiro e 79% as submetidas em 2019, um ano antes da pandemia.
A CGE atribui aumento das denúncias a estímulos internos, como a aplicação do Programa de Integridade e Compliance, implementado por lei e decreto em 2019 para coibir práticas de desvios éticos e de condutas dentro do governo. Na primeira fase da ferramenta, explica a Controladoria, os servidores foram entrevistados sobre riscos e vulnerabilidades ao bom andamento do serviço, e situações passíveis de denúncia foram orientadas a serem registras na Ouvidoria.
O governo cita também campanhas de sensibilização para o tema desenvolvidas ao longo de 2020 e 2021 que desencadearam denúncias que antes não saíam da gaveta. Para os servidores, contudo, há outros fundamentos por trás dos números.
Saúde e Educação
“Por que na Saúde e na Educação? Primeiro porque são ocupadas majoritariamente por mulheres. Na educação básica, 89% do total de professores e servidores são mulheres e este universo aumenta para 93% quando a gente fala só de funcionários”, diz Nádia Brixner, da coordenação do Fórum de Entidades Sindicais do Paraná (FES).
A entidade confirma mais denúncias estimuladas, mas afirma que não pode ser desconsiderada uma intensificação de casos. Acusações de assédio sexual estariam mais concentradas entre alunas e, com destaque, nas escolas cívico-militares, viabilizadas no Paraná por um programa federal e que se tornou uma das maiores apostas do governo Ratinho Jr. para a Educação. O modelo incorpora na equipe policiais e bombeiros militares aposentados, responsáveis pelos conteúdos de disciplina ministrado aos alunos.
O Núcleo da Infância e da Juventude da Defensoria Pública do Paraná (NIJ-DPPR) acompanha hoje quatro episódios denunciados de dentro das escolas cívico-militares. São, entretanto, apenas um recorte das ocorrências, já que nem todos os relatos que passam a ser investigados chegam ao órgão.
A reportagem ainda aguarda da Seed um levantamento dos casos registrados em escolas cívico-militares. A secretaria pediu mais tempo para organizar os dados.
Militarismo
O defensor público Fernando Redede, coordenador do NIJ, explica que, dos episódios em acompanhamento pelo Núcleo, apenas em um deles fica nítida a manifestação da postura militar dentro das escolas. “Vemos uma dificuldade de tratar com a diferença. Uma aluna que precisa adequar a jornada de trabalho dela porque é mãe e teve essa dificuldade. Tem a ver com essa questão de hierarquia, disciplina. Eu imagino que nem era algo pessoalizado, mas mais por conta da estrutura de organização militar mesmo”, relata. “Os outros casos são situações que poderiam ocorrer em outras escolas”.
Mas para a coordenadora da FES, denúncias de ocorrências dentro dos modelos militarizados vêm ganhando espaço. Segundo ela, consequência de colocar em sala de aula profissionais não habilitados pedagogicamente e sem preparação para lidar com adolescentes.
Já os docentes estariam sob condição de pressão moral muito mais rigorosa, com planos de aula cada vez mais sujeitos aos programas próprios do governo – um problema de liberdade de cátedra, diz ela – e comportamentos cada vez mais “fiscalizados” por chefias designadas.
“Não é ser contra esses sistemas adotados pela Seed, mas eles inverteram a lógica da Educação. O certo é usá-los como ferramenta pedagógica, como uma possibilidade a mais para o professor. Mas da forma como é colocado, o professor vira uma simples ferramenta para alcançar as metas a serem atingidas e isso vira uma cadeia de pressão”.
Pressão forte
A Saúde também fala em aumento na pressão moral contra servidores. A chegada da pandemia, diz Olga Pereira, coordenadora-geral do SindSaúde, exigiu escalas mais severas e sujeitou funcionários da pasta a rotinas que chegaram a desencadear exaustão extrema, sem acompanhamento adequado pelo governo.
Entre 2017 e 2021, a Sesa liderou o total de denúncias encaminhadas à CGE, somados os dois enquadramentos (sexual e moral). A disparada de relatos de assédio moral coincide com a pandemia. Em 2020, com aulas paradas e a dispersão em larga escala do vírus da Covid-19, a Secretaria da Saúde acumulou 56 denúncias de pressão moral contra servidores, 64% a mais que no ano anterior. Em 2021, foram 98 casos.
“Notamos que os problemas vêm dos chamados das chefias de cargos comissionados e de função gratificada e isso foi levado ao estado. Agora, estamos em conversa para organizar esse fluxo”, afirma Pereira. “O que a gente fez, como sindicato, foi contratar uma equipe de médico e psicólogo para acolher e encaminhar as questões de assédio sexual e moral. Mas esperávamos, pelo menos, uma gestão de trabalho mais humanizada com esses profissionais. [Chamá-los de heróis] foi hipocrisia”.
Recorde no país
A formalização das denúncias no estado cresce em paralelo às do âmbito federal. Levantamento do jornal O Globo publicado em 1º de julho mostra que as queixas acumuladas na Controladoria-Geral da União (CGU) chegaram a uma proporção recorde em relação aos últimos sete anos, com média de um caso por dia.
Apesar de ainda muito velados, casos de assédio sexual levaram à queda do então presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, em junho deste ano. Diversos relatos de servidoras do banco teceram a teia do escândalo, que envolveu cenas como convites constrangedores e assédio físico – Guimarães, que alega inocência, teria apalpado parte do corpo de algumas delas.
O número 2 da Caixa, Celso Barbosa, também deixou o cargo após repercussão de que teria acobertado os crimes denunciados contra Guimarães.
Desfechos
No Paraná, há uma falha no fluxo das investigações que limita o acesso aos desfechos das denúncias. Não é possível saber, assim, quantas queixas de assédio realmente foram confirmadas pelas apurações internas.
O panorama da CGE mostra que das 333 denúncias acumuladas de assédio sexual desde 2015, 235 se tornaram caso de investigação, 56 foram consideradas improcedente antes mesmo do início das apurações e 29 com informações insuficientes para qualquer providência. No âmbito das denúncias de assédio moral, menos são levadas adiante – os próprios servidores dizem que é difícil a coleta de provas. No período do levantamento, 587 das 991 denúncias entraram para investigação.
A CGE justifica o “vácuo” nos desfechos porque, confirmada a existência de informação suficiente para se investigação, o caso é remetido à unidade de onde se originou a denúncia e, até então, “cabia somente aos responsáveis pela corregedoria de cada órgão a avaliação para se aprofundar a investigação, instaurar algum procedimento de correição”.
Mas há uma mudança em processo, diz a Corregedoria. Resolução publicada em maio deste ano obriga já na abertura das denúncias, quando se tratar de assédio, a indicação dos campos “assédio moral” ou “assédio moral de chefia” ou “assédio sexual” ou “assédio sexual de chefia”.
Hoje, o Estatuto dos Servidores do Paraná, editado em 1970, não estabelece assédio entre os motivos passíveis de punição, geralmente os casos são atrelados a temas mais genéricos, o que também dificulta o filtro de sanções aplicadas.
Saúde e Educação falam em rigor
Sobre os casos relatados por servidores, a Secretaria de Estado da Saúde afirma a adoção de medidas constantes para preservar a integridade dos funcionários e cita como exemplo o programa Compliance da CGE e a promoção de campanhas internas contra qualquer tipo de assédio.
Segundo a pasta, há também uma estrutura de controle interno, em parceria com a Controladoria, estabelecida para verificar procedimentos que possam ser considerados abusivos, além de possuir Ouvidoria para reforçar e garantir a atuação dos servidores de maneira ética.
“Os procedimentos também são verificados por sindicância e, havendo indícios concretos de autoria e materialidade, seguem para a apuração em Processo Administrativo Disciplinar. Constatada qualquer ilegalidade na conduta, as medidas administrativas são adotadas, com a devida responsabilização nas diferentes esferas”, diz a pasta.
Já a Seed coloca que é preciso considerar os dados da CGE “à luz de alguns fatores”, como ser a maior secretaria em número de funcionários – atendendo diariamente a 1 milhão de estudantes em 2,1 mil instituições de ensino, distribuídas em 32 núcleos regionais de educação –, o pioneirismo no combate aos casos de assédio tanto sexual quanto moral, e uma política de tolerância zero com casos de assédio. “Uma vez comprovado problema, a orientação da secretaria é pela exoneração ou demissão de quem cometeu o assédio”, respondeu, em nota.
No texto encaminhado à reportagem, a Educação defende que a “comparação de dados nos anos recentes é impossível por conta dos fatores listados acima. A reportagem se colocou à disposição para uma entrevista, mas o retorno não foi dado a tempo.
“Com um ano e meio de escolas fechadas por conta da pandemia, uma nova política contra o assédio e campanhas para incentivar as denúncias, o cenário é completamente diferente do passado. Queremos que as nossas escolas sejam ambientes livres de qualquer tipo de violência”, afirma a secretaria, que ainda diz se solidarizar com as vítimas e agradecer ao voto de confiança dado por alunos e servidores públicos. “É um sinal inequívoco de que as pessoas confiam no compromisso que assumimos com toda a comunidade escolar. Só denuncia quem acredita que sua voz pode ser um instrumento de mudança”.
Por último, a pasta ressalta que ainda estão à disposição os cartazes da campanha “Assédio, Não!”. “O material esclarece as formas de assédio e de como fazer uma denúncia, tem um QR Code com mais informações, site e o 0800 da ouvidoria. A pasta também fez um vídeo orientador com o título “Abuso sexual: Escola atenta e como proceder aos sinais” na semana do Dia Nacional de Combate ao Abuso e a Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes”.
Uma professora de uma escola da rede estadual de onde recentemente partiu uma denúncia de assédio sexual, de professor contra aluna, disse à reportagem, sob condição de anonimato, que a campanha é um avanço, mas que, da forma como foi proposta, ainda está muito mais atrelada a um perfil protocolar.
“Não houve um debate, uma preparação intensa nas escolas. Na minha, eles passaram um vídeo que está no YouTube, e os alunos trabalharam nuns cartazes. Mas não é disso que os alunos precisam, é preciso ter mais noção do que é trabalhar esse tema numa escola, ainda mais com adolescentes”, relata a docente.
A FES também reconhece os passos que vêm sendo dados no combate a casos de assédio. No entanto, pondera a entidade, é preciso mais garantias para levar os relatos adiante.
“O que a gente não vê ainda, efetivamente, é uma política de acompanhamento para os assediados. Porque não basta denunciar, precisa de acompanhamento, de proteção, sobretudo, e esse é o grande problema hoje em dia”, finaliza Nádia Brixner.
Fonte: Jornal Plural