Encontro foi possibilitado pelo Clube da Leitura dos Censes, que debateu o livro “Encarceradas: Quando a estrela de Natal não brilha”
“Tenho 14 anos, sou casada também. Estou aqui por um erro que meu namorado cometeu e acabou me puxando junto”, diz uma adolescente interna em um Centro de Socioeducação (Cense) do Paraná a Maria*, detenta da Cadeia Pública de Londrina, que se casou aos 12 anos e entrou na criminalidade pelas mãos do marido. “Muito legal ouvir que você leu minha história e se identificou”, responde a mulher. E aconselha:
“Se for continuar com seu namorado pensa em outro tipo de sobreviver, arrasta ele pra outro lado, não deixa ele te arrastar não”. O encontro virtual entre Maria e a adolescente foi possibilitado pelo Clube da Leitura dos Cense, que debateu, no dia 27 de outubro, o livro Encarceradas: Quando a estrela de Natal não brilha, escrito por detentas e publicado pela editora CRV (adquira aqui).
O Clube da Leitura é um projeto criado no Cense 2 de Londrina que se estendeu para todo o Paraná. Os encontros virtuais reúnem adolescentes de todas as unidades do Estado. Já foram debatidas diversas obras entre autores e adolescentes privados de liberdade, mas esta é a primeira escrita por mulheres presas. A Lume acompnhou o encontro virtual.
Apoiadora e entusiasta do projeto, Cláudia Catafesta, juíza da 2ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca, classifica o Clube como “um projeto revolucionário a partir de algo tão simples, que é o acesso à cultura”.
A diretora da Cadeia Pública Feminina, Soraya Ursi, destaca a relevância do projeto e como surgiu a ideia do livro. “Às vezes a gente quebra a cabeça querendo fazer alguma coisa grande e, de repente, a gente percebeu que temos ali 170 pessoas que têm histórias dentro delas, a gente não precisa procurar fora, tem tudo ali”.
Assistente social do Cense 2 de Londrina e uma das idealizadoras do Clube, Andressa Candido dedicou o encontro às detentas. “É um grupo de leitura para empoderar vocês, para falar sobre mulheres, sobre o cárcere”.
Dentre as mulheres que participaram da escrita do livro – que relata histórias pessoais – apenas duas continuam na Cadeia, Maria e Teresa*. As duas estavam presentes no encontro do Clube.
“Não imaginava nunca na vida acontecer tudo isso, foi uma emoção muito grande. Colocar tudo que a gente pensa, tudo que aconteceu… Eu cheguei aqui (ré) primária, achando que ia embora no outro dia. Fui presa dentro do mercado, junto com a minha filha, fazendo compra, sem celular, sem arma, sem droga, não entendia porque estava sendo presa naquele momento, apesar de saber que já tinha feito muita coisa”, relata Teresa.
“Quando cheguei na unidade achei que ia embora no outro dia. Dormi uma noite, fui levada para a triagem. Lá encontrei algumas meninas que eu conhecia. Um dia antes foi preso meu irmão, que era caminhoneiro, nunca tinha roubado uma bala. Depois de uns 4, 5 dias que estava aqui soube que fui presa numa escuta telefônica, eu e mais 140 pessoas, porque eu era casada com uma pessoa que tinha envolvimento com uma facção. Até então eu achava que ia embora, porque nunca tinha sido presa e não tinha flagrante. Passou 1 ano 4 meses, que foi quando escrevi o livro”, relembra ela.
Naquele momento Teresa ainda não tinha condenação. Mãe de dois filhos, de 6 e 12 anos na época, ela imaginava que seria liberada. “Mais nove meses esperando vir o retorno (da audiência). Minha mãe estava lá fora, cuidando dos meus filhos. Depois disso veio minha sentença: peguei 25 anos. Faz 3 anos e 3 meses que estou aqui. Meu irmão caminhoneiro pegou 17 anos e meu irmão que já estava preso pegou 108 anos de cadeia”, conta.
Teresa lamenta não ter entendido as consequências de seus atos. “Hoje eu vejo que cuidei muito de todo mundo e, tentando acertar, eu errei. Foi um erro grande, achava que não ia dar nada. Hoje meu filho já tem 9 anos, é o quarto Natal que estou passando aqui, a saudade só aumenta. Os amigos sumiram, os parceiros, o marido… Quem ficou foi talvez as pessoas que dei menos valor, como minha mãe e meus filhos”.
Reencontro com a mãe
Maria escreveu a quinta história do livro “Encarceradas”. Ela contou aos e às adolescentes sobre o início de seu envolvimento com as drogas e a criminalidade. “Me casei com 12 anos, arrumei um marido não muito gente boa, eu também não era uma pessoa muito com os neurônios no lugar, acabei me juntando com ele e seguindo a vida do crime. Fiquei com esse cara por 12 anos, único marido que tive. Acabou que aconteceu com a gente. Fizemos o bagulho ficar louco mesmo, viemos preso com um monte de droga”, relembra.
“Quando vim presa achei que era só a droga que estava na minha casa. Achei que ia ficar uns dois anos. Aí foi chegando operação, estou presa em cinco operações. No meio de isso tudo a pior parte é ver minha mãe chegando na cadeia presa também. Teve uma época dessa vida que eu andei falando umas coisas pra ela e ela acabou sendo presa. Como eu tinha casado com 12 anos, não tinha vivido nada com a minha mãe, não tinha passado a adolescência, nada, aí vim viver com ela aqui”.
Presa há 4 anos, Maria foi condenada a 57 anos e sua mãe a 15. “Agora minha mãe mora comigo na mesma cela, graças a Deus a gente se dá bem. Porque o marido acabou se separando por carta. No meio de toda essa turbulência percebi que a única pessoa do meu lado é a minha mãe. Passei a respeitar ela”, conta.
Convivência difícil
Adolescentes que participavam do Clube quiseram saber como é a convivência das mulheres no X, nome dado à cela. “Nesse lugar tem dia que a gente acorda e não quer olhar pra cara de ninguém. No X onde estou tem 20 mulher numa cela, imagina! Num dia estão dez de TPM, no outro cinco de mau humor. A situação é bem complicada. Eu que tenho mais 14 anos pra tirar de cadeia (antes do semiaberto) tem que ter uma paciência, parar pra ouvir a situação, o problema das outras meninas”, diz Maria.
Ela conta que ficou detida aos 15 anos, ainda adolescente, e compara os dois períodos . “Fiquei 27 dias na celinha feminina, em 2010. É bem diferente. Lembro que tinha sobremesa, atendimento médico toda hora que precisava. Fiz 18 anos, vim presa, já não é mais a mesma coisa. Na minha história também conto um pouco do arrependimento, perdi minha juventude, acabei trazendo minha mãe pra cadeia, meus irmãos ainda estão presos. Tem vez que minha mãe sai pra galeria pra ver meu padrastro, ele passa e nem pode conversar comigo. Minha irmã não pode vir me ver mais, também foi sentenciada na operação, aí não tenho visita”, lamenta.
Teresa conta que na cela dela duas presas dividem uma jega (nome dado às camas). “Onde eu durmo a gente tira valete, dorme de duas em duas. Duas mulher dormindo, uma de bunda virada pra outra. Nem sempre você gosta da sua valete, nem sempre ela está com estômago bom… São 12 mulheres e um banheiro, então imagina!”, explica. “Não pense em chorar, nunca”, aconselha. “Não pode ficar reclamando, por mais que esteja doendo, guarda pra você, fala só com Deus”.
“A briga é inevitável. Você começa a brigar de manhã por causa de um chinelo, vai até de noite, vira uma situação seríssima. É muita mulher, é muita confusão. Nos momentos que a gente se dá bem tem aquele negócio que a gente divide tudo com todo mundo. Natal ainda dá uma dançadinha, inventa um bolo de cadeia. Chega virada do ano vai dormir porque a cadeia ‘pega’. O mais difícil é ver as pessoas indo e vindo e você nunca saindo”.
Maria completa: “Tem horas que é bom. No meu X a gente faz um batidão, açúcar com café. Imagina 20 mulheres comendo açúcar o dia inteiro? Chega a noite é uma contação de história. E quando começa a cantoria, nunca mais acaba, pega o balde pra fazer pandeiro. Querendo ou não, eu que já vou fazer 4 anos, a gente vira quase uma família, acaba sabendo quando está de mau humor, quando não quer conversa”.
Livro como projeto de remição
Maria e Teresa viviam no mesmo X quando escreveram o livro. “Foi escrito maior parte do tempo na madrugada”, conta a primeira. “Toda vez que leio, choro e repenso um pouco nessa situação da vida do crime. Menor passa uns dias e está na rua; maior (de idade) é tempo perdido que não volta mais. A gente só aprende depois que vive na pele mesmo. O baguio é louco”.
Em resposta a um adolescente do Cense de Curitiba, Teresa diz que, no início, se interessou em escrever o livro para conseguir os 40 dias de remição. “Quando falaram a gente pensou: ‘Ai meu Deus, será que a gente escreve? Será que é o juiz querendo condenar nós? Primeiramente a gente queria só os 40 dias de remição, mas acabou se divertindo. Era muita gente escrevendo, mas nunca, em nenhum momento, passou pela cabeça que iria chegar até onde chegou. A gente achou que estava só contando a história para conseguir remição”, diz.
Teresa participa de todas as possibilidades de remição possíveis; Maria também, inclusive concluiu os estudos na cadeia e foi aprovada em três vestibulares.
“Quando casei eu era estudante do ensino médio e parei de estudar. Na cadeia estudei bastante e acabei passando no vestibular. Não pude ir por causa da sentença. Penso que o juiz acha que vou e não vou voltar”, brinca. “Enquanto isso vou cumprindo minha pena. Vai chegar uma hora que ele vai falar ‘manda essa menina pra universidade’”, acredita.
Planos para o futuro
As mulheres detentas foram convidadas a deixar mensagens para os e as adolescentes e também a dividirem seus planos para o futuro depois da cadeia.
“A maioria das mulheres presas é por causa do namorinho, da troca de mensagens, acaba se envolvendo e muitas vezes é um relacionamento abusivo. Eu fiquei presa quando tinha 15 anos, fui presa com droga. Acho que a maioria deve pensar ‘é poucos dias, daqui a pouco estou na rua’ e acaba continuando na mesma vida. Só que depois que fica maior de idade e entra pelo portão da cadeia, pra continuar nessa vida tem que querer acabar com tudo mesmo. Tenho certeza que as meninas novas têm sonho de estudar, ter filho…eu queria ser veterinária. Quando você entra aqui, senta na jega e vê que não vai sair…Quem aí puxa 1 ano, 1 ano e meio já dá pra saber que cadeia não é coisa boa não”, diz Maria.
“Mulher presa não tem marido. Marido que está preso vai arrumar uma mulher solta que pode levar coisas pra ele na cadeia. O que resta para elas sempre é só a família”, complementa a diretora Soraya Ursi.
Teresa mandou um recado para os meninos: “Meu irmão era muito legal, ele é um cara muito bonito, muito inteligente, caiu no tráfico, o dinheiro não rende, vem hoje e amanhã acabou. Ele tem 28 anos hoje, perdeu toda a juventude dele. Aquela inteligência que ele tem para computador foi desperdiçada em minutos. E junto veio o irmão trabalhador. Só usou o telefone da pessoa errada, pegou 17 anos, vai sair dali não consegue ser caminhoneiro mais porque não pega uma carga. Ele não conhece nem os netos. Então vem uma carga muito pesada também”.
Teresa sente medo de não encontrar a mãe, de 71 anos, viva quando sair em regime semiaberto. “Penso em sair daqui para poder cuidar dela e para ser um exemplo para meus filhos. Hoje é muito difícil falar o que eles podem ou não, porque eu não sou exemplo. Minha mãe faz muito bolo, doces, penso em talvez, quem sabe, investir na minha mãe”, planeja.
Maria aprendeu o ofício de costureira na cadeia e espera ter a oportunidade de executar aqui fora. “Penso em arrumar emprego no setor da costura, para adquirir um dinheiro que eu possa não correr atrás do tráfico. Porque é que nem a gente fala: ‘tráfico não pede curriculo’. Se sair fazendo faculdade vou continuar, vou morar com a mãe. Depois ver o que Deus prepara, para eu casar e ter filhos. Para eu ter minha família. Mas voltar aqui, não”, assegura.
Uma adolescente do Cense de Curitiba mostrou, com sua fala, a sintonia que prevaleceu entre os participantes do encontro: “As histórias são todas muito comoventes, não tem como não chorar. Como vocês, nós estamos todos privados da liberdade. Eu, graças a Deus, não vou passar mais um Natal presa, porque já passei um e sei que é bem difícil. Mas é isso aí, levanta a cabeça. Obrigada e tamo junto”, finaliza.
*Os nomes são fictícios para preservar as identidades das detentas
Fonte: Redação Rede Lume