A Declaração de Filadélfia (1944) completou 80 anos no último 10 de maio. O instrumento foi aprovado, por unanimidade, durante a 20ª sessão da Conferência Internacional do Trabalho, realizada na Filadélfia (EUA) e foi considerado “como documento essencial na promoção da justiça social, dos direitos humanos e da solidariedade, pilares para a manutenção de uma paz duradoura”.
Além disso, deu um “novo impulso ao mandato social da Organização Internacional do Trabalho (OIT)” ao agregar “uma série de princípios fundamentais” [1] que ainda hoje norteiam o trabalho do organismo internacional. Em 1946, a declaração foi anexada à Constituição da OIT e, desde então, tem influenciado outros instrumentos internacionais, entre eles a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948).
Em seu preâmbulo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reafirma o reconhecimento do progresso social e de melhores condições de vida como postulados de uma liberdade mais ampla, considerando a inter-relação entre igualdade, liberdade e trabalho. Nesse sentido, a declaração dispõe sobre o direito ao trabalho, inserindo a livre escolha do emprego, em condições justas e favoráveis, e a proteção em face do desemprego. Prevê, ainda, igual remuneração para igual trabalho, sem distinção (por motivo de sexo, raça ou nacionalidade) e o pagamento de remuneração justa e satisfatória, que assegure ao trabalhador, junto com a sua família, existência compatível com a dignidade humana e a inclusão de outros meios de proteção social (artigo 23) [2].
Trabalho decente
A Declaração de Filadélfia reafirmou o princípio de que a paz permanente só pode estar baseada na justiça social e estabeleceu quatro referenciais fundamentais, que constituem os valores e princípios básicos da Organização Internacional do Trabalho até hoje: que o trabalho deve ser fonte de dignidade; que o trabalho não é mercadoria; que a pobreza, em qualquer lugar, é uma ameaça à prosperidade de todos; e que todos os seres humanos têm o direito de perseguir o seu bem estar material em condições de liberdade e dignidade, segurança econômica e igualdade de oportunidades [3].
Entre os traços fundamentais do “Espírito de Filadélfia”, destaca-se a dignidade humana como inerente a todos os membros da família e base da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Nesse contexto, “o princípio da dignidade obriga a ligar os imperativos da liberdade e da segurança”, não só a segurança física, mas também “a segurança econômica suficiente para liberar os seres humanos do terror e da miséria” [4].
Segundo a OIT, o conceito de trabalho decente [5] ou digno resume as aspirações do ser humano no domínio profissional e abrange vários elementos: oportunidades para realizar um trabalho produtivo com uma remuneração equitativa; segurança no local de trabalho e proteção social para as famílias; melhores perspectivas, desenvolvimento pessoal e integração social; liberdade para expressar as suas preocupações; organização e participação nas decisões que afetam as suas vidas; e igualdade de oportunidades e de tratamento para todas as mulheres e homens [6].
A dignidade no trabalho deve ser considerada como “mínimo ético irredutível”, assim como os direitos humanos internacionalmente reconhecidos [7], a fim de que mais pessoas possam se envolver na permanente (re)construção do mundo do trabalho com menos opressões, exploração e sem colonialismos. Há necessidade de maior engajamento nas lutas pela possibilidade de um mundo em que a acumulação do capital não esteja completamente desconectada do absoluto respeito à dignidade humana.
Conferência
Na abertura da 112ª Conferência Internacional do Trabalho, no último dia 3 de junho, em Genebra, o Diretor-Geral da OIT, Gilbert Hongbo, além de ter feito referência aos 80 anos da Declaração de Filadélfia, falou sobre a necessidade de renovação do “contrato social”, representado, resumidamente, pelo equilíbrio entre responsabilidades individuais e coletivas, para o alcance universal da justiça social, da liberdade, da dignidade, segurança econômica e igualdade de oportunidades. Com tais considerações, Hongbo destacou a relevância da noção consagrada na Declaração de Filadélfia, de que “a pobreza, em qualquer lugar, constitui perigo à prosperidade de todos”, o que eleva a importância da cooperação e da solidariedade internacionais na hora da abordagem da agenda comum.
Os contratos sociais devem ser atualizados permanentemente, a fim de que a justiça social possa se tornar efetiva, com a garantia de trabalho decente para todas e todos, mesmo em tempos de mudanças constantes e desafiadoras. Nesse sentido, o diretor-geral da OIT defendeu que a justiça social e o trabalho decente são circulares para a elaboração de um contrato social eficaz e sustentável em escala nacional e mundial [8].
Objetivamente, a renovação do contrato social é centrada no respeito aos direitos humanos e aos princípios e direitos fundamentais no trabalho. Assim, devem os países reunir esforços para o combate ao trabalho infantil, sobretudo nas piores formas; para o combate ao trabalho escravo ou análogo à escravidão; para coibir todas as formas de violências e assédios no trabalho; prevenir os acidentes e doenças ocupacionais; não permitir discriminações e desigualdades, além de observar a liberdade sindical e o direito de negociação coletiva.
Com a inclusão do meio ambiente de trabalho seguro e saudável como quinto princípio fundamental do trabalho, em 2022, Hongbo considera que houve a renovação de compromissos em torno de todos os princípios fundamentais, o que requer a intensificação de esforços para a ratificação universal de todas as Convenções fundamentais da OIT e contribui para a consolidação do novo contrato social [9].
Há preocupação mundial com os impactos da tecnologia e da inteligência artificial sobre os empregos e empresas e também com a exclusão nos países que não detém infraestrutura adequada, o que prejudica o alcance de iguais oportunidades. O contrato social prevê a garantia de proteção adequada aos trabalhadores, a fim de que a dignidade, inerente a toda pessoa humana, possa ser preservada, mesmo frente a opressões políticas e econômicas, pela proteção mais ampla dos direitos humanos e dos direitos fundamentais no trabalho [10].
CF/88
Todos esses valores e princípios foram completamente incorporados pela Constituição de 1988. Segundo os princípios e regras jurídicas previstas nas normas internacionais e na Constituição de 1988, o Direito do Trabalho deve regular a execução do trabalho digno, considerado como aquele protegido por “patamares civilizatórios mínimos”, de conteúdo “indisponível absoluto”.
Assim, “na dinâmica das relações sociais”, as normas trabalhistas devem garantir que todo trabalho seja executado em condições dignas, afastando o trabalho escravizado, para “a defesa da centralidade do homem enquanto ser humano”, o que requer a proteção do direito fundamental ao trabalho digno e do direito fundamental de não ser escravizado, desconsiderando-se “a flexibilização e a desregulamentação de direitos” [11].
A Constituição de 1988, além de ter como fundamentos a “dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e da livre iniciativa” (artigo 1º, III e IV), prevê como objetivos fundamentais a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” e a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outra forma de discriminação” (artigo 3º, I e IV).
As normas internacionais de direitos humanos também devem ser consideradas de forma concorrente e cumulativa, como complemento à legislação interna, para a aplicação da norma mais favorável à proteção da pessoa, face ao princípio pro homine aplicável no direito internacional.
Agenda 2030
O Brasil é um dos membros fundadores da OIT e deve observar, assim como os demais países-membros que integram a Organização das Nações Unidas- ONU, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que traça ações para a comunidade internacional (governos, setor privado e sociedade civil), divididas em 17 objetivos (ODS) e 169 metas.
Um desses compromissos é o Objetivo 8,: “Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos”. O trabalho decente concretiza várias metas do citado diploma, destacando-se o item “8.8 – Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários” [12].
O trabalho decente está no centro de todas as discussões da OIT e da ONU para o desenvolvimento sustentável. O crescimento econômico deve incluir a criação de postos de trabalho em condições que permitam a respectiva execução com total liberdade, segurança e dignidade. Assim, prosseguem as discussões na 112ª Conferência Internacional do Trabalho, aguardando-se, com muita expectativa, o Fórum inaugural da Coalização Global pela Justiça Social, no próximo dia 13 de junho, que buscará “aumentar a cooperação multilateral e desempenhará um papel crucial na aceleração do progresso rumo à Agenda 2030 da ONU e à Agenda de Trabalho Decente”, sendo o Brasil um dos países signatários [13].
Fonte: CONJUR/ NCSTPR