‘Não é pouca coisa o que o Supremo pode fazer com esse julgamento’, afirma jurista da USP a respeito de impacto do caso
O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia nesta quinta-feira (8) julgamento sobre a existência ou não de vínculo trabalhista entre empresas de aplicativos e seus entregadores. O tema é um dos mais contemporâneos nos debates sobre o mundo do trabalho e chega ao plenário da Corte pela primeira vez. Os ministros vão se debruçar especificamente sobre a Reclamação (RCL) 64.018, ajuizada pela empresa Rappi contra decisões que reconheceram vínculo de emprego entre um motoboy e a empresa de logística.
A companhia questiona entendimentos da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3) e da 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), alegando que o reconhecimento de vínculo trabalhista para o caso fere decisões anteriores do Supremo, que, argumenta, já reconheceu relações de trabalho não necessariamente pautadas pelas regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
O relator do caso no plenário do STF é o ministro Alexandre de Moraes, que será o primeiro a votar no julgamento e já deu sinais de posicionamento contrário ao reconhecimento do vínculo trabalhista. Em novembro de 2023, ele concedeu uma liminar que suspendeu o trâmite do processo no TRT3 e, portanto, o cumprimento da sentença desfavorável à empresa. Nos autos, o ministro disse que o entendimento do tribunal “parece desconsiderar as conclusões do STF, que permitem diversos tipos de contratos distintos da estrutura tradicional do contrato de emprego regido pela CLT”. Moraes citou, por exemplo, a decisão do Supremo que validou a terceirização de atividades-fim.
Nos bastidores do mundo jurídico, o entendimento atual em relação ao julgamento é o de que a Corte tende a favorecer a empresa Rappi, e não os motoboys. Isso porque os ministros têm dado seguidos sinais de alinhamento aos interesses do patronato. “De um modo geral, a jurisprudência do STF tem sido bastante hostil aos direitos trabalhistas. Cito aqui a posição do Supremo validando a terceirização e quarteirização e também as decisões que referendaram a reforma trabalhista, que agregou uma porção de medidas de precarização ao mercado de trabalho brasileiro”, lembra o pesquisador Danilo Morais, doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB) que estuda a jurisprudência do STF no que se refere a direitos sociais.
Também professor da pós-graduação do Ibmec de Brasília, Morais destaca que o julgamento relativo ao caso da Rappi tende a gerar grande impacto no mercado de trabalho. Ele assinala que a Corte pode abrir uma “janela de oportunidade para a precarização”, expondo ainda mais os trabalhadores de aplicativos.
“Na esteira do fenômeno que vem sendo chamado de ‘uberização’, essa decisão pode ser muito mais grave porque, a pretexto de ausência de regulação, pelo simples fato de as relações de trabalho serem mediadas por meio de tecnologias da informação, o Supremo pode admitir essa exceção como sendo suficiente para afastar as mais comezinhas salvaguardas ao trabalhador no mercado de trabalho, de modo que a tecnologia pode aí ser utilizada não para firmar uma nova forma de trabalho e ajustar a legislação a ela, mas simplesmente para demolir as franquias constitucionais e trabalhistas do mercado de trabalho.”
O pesquisador lembra que o julgamento desta quinta tem grande peso inclusive pelo fato de a uberização ter se amplificado para além do trabalho relacionado a aplicativos. Em virtude disso, o entendimento que vier a ser firmado pelo Supremo deve gerar efeitos sistemáticos para toda a economia do trabalho no país, podendo agravar o cenário já dificultoso que se criou para a classe trabalhadora no Brasil nos últimos tempos. “Estamos falando de um processo que não se limita apenas a essas plataformas porque já é algo que alcança pequenos negócios em pequenos bairros na economia local”, ilustra Danilo Morais.
“Impropriedade”
O jurista e professor de direito do trabalho Souto Maior, que leciona na Universidade de São Paulo (USP), chama a atenção para o que considera uma impropriedade da Corte ao se decidir pela avaliação do caso da Rappi. Ele explica que a reclamação constitucional é um mecanismo jurídico utilizado para preservar a autoridade de decisões do Supremo nos casos em que o Poder Judiciário tome alguma decisão que confronte entendimentos já consolidados pelo STF e que comprometa a ordem constitucional.
“Ocorre que o Supremo não tem decisão nenhuma sobre isso que seja precedente para que ele possa utilizar esse mecanismo para apreciar essa questão sobre o trabalho prestado por entregadores e motoristas a empresas de plataformas digitais. Então, o STF está se adiantando e vai se manifestar sobre isso em mecanismo processual completamente impróprio,” afirma o professor.
Souto Maior pontua que o rito normal de um caso do tipo seria por meio de outros recursos. “O TST decide e, depois disso, há mecanismos de recursos no âmbito do próprio TST. Depois, há mecanismos de recursos extraordinários para o STF, lembrando que um recurso extraordinário requer a demonstração de que a matéria seria constitucional e envolveria necessariamente a apreciação do Supremo para a garantia da ordem constitucional. Mas o que temos nesse caso é algo que não se encaixa nisso em hipótese alguma.”
O jurista frisa que o processo judicial da Rappi trata eminentemente de aspectos do direito do trabalho. “Se trabalhadores que prestam serviço ao Uber ou ao iFood são empregados ou não, essa é uma questão fática, que envolve a aplicação da CLT, direitos trabalhistas, enfim, mas não é uma questão constitucional. O Supremo está usando essa reclamação constitucional passando por cima do que seria o procedimento adequado. E, em um procedimento realmente adequado, essa questão sequer chegaria ao Supremo”, esquadrinha.
Questionado se vê nessa atitude um STF mais político do que jurídico, o professor diz enxergar no caso uma Corte inclinada à cartilha dos segmentos econômicos. “Vejo nisso um Supremo muito econômico, no sentido de estar voltado para entender os interesses das grandes empresas, mas não só dessas empresas específicas, e sim do poder econômico como um todo porque a tendência é que o Supremo diga que nesse tipo de trabalho não há relação de emprego. Ao fazer isso, ele vai afastar a aplicação do direito do trabalho em uma relação que é, sim, tipicamente uma relação de emprego. O risco de isso se alastrar pra outras relações é muito grande. Não é pouca coisa o que o Supremo pode fazer nesta quinta.”
Fonte: Brasil de Fato