Ensino à distância desconsidera realidade dos estudantes matriculados na educação de jovens e alunos, dificultando permanência
A EJA (educação de jovens e adultos), de acordo com a Lei nº 13.632 de 2018, deve ser destinada a todas as pessoas que não tiveram acesso, independentemente do motivo, ao ensino regular na idade indicada. Também aos que não tiveram possibilidade de concluir os ensinos fundamental ou médio.
No Brasil, falar da história da EJA é falar de Paulo Freire, educador pernambucano, patrono da educação brasileira e um dos pensadores mais reconhecidos no mundo. No início da década de 1960, o professor construiu método de alfabetização, responsável por atender 380 trabalhadores no Rio Grande do Norte. Repercutindo em todo o país, o modelo previa que a aprendizagem ocorreria mediante discussões das experiências trazidas pelos estudantes para sala de aula, ou seja, partindo da própria realidade em que estavam inseridos. O projeto foi sufocado pela ditadura civil-militar (1964-1985).
Mas, conforme alerta um dos coordenadores do Fórum Paranaense de Educação de Jovens e Adultos, na região de Londrina, Ivo Ayres, as tentativas de desmantelamento da modalidade de ensino não cessaram após os anos de chumbo. Ele conta que desde o governo de Beto Richa (PSDB), o desmonte da EJA tem sido intensificado no estado. Uma das principais mudanças é que, anteriormente, o estudante poderia se matricular apenas nas disciplinas que tivesse disponibilidade para cursar. Atualmente, a oferta é semestral, condicionando a progressão à aprovação em todas as disciplinas.
“Criou-se uma situação em que a EJA ficou engessada e cada vez mais são postas dificuldades para que os estudantes permanecessem na escola. A pressão do estado é no sentido de que, o aluno tivesse um número de aprovações maiores, independentemente de como eram dadas as aulas, ocorrendo aprovação compulsória, porque o que interessava ao governo são números que indiquem que a educação no Paraná é a melhor de todas”, afirma.
No último dia 14 de junho, a Secretaria Estadual de Educação (SEED), sob a gerência de Ratinho Júnior (PSD) anunciou mais uma ofensiva. A pasta informou, a abertura de matrículas para EJA com oferta à distância a partir do segundo semestre de 2023. A determinação indica mais uma parceria da gestão de Ratinho Júnior com a iniciativa privada e, portanto, novo ataque à educação pública.
“A gente acha o mais absurdo dos absurdos. Como o perfil destes estudantes é muito diverso, não tem como estes estudantes serem atendidos à distância, aliás, a educação básica como um todo, não pode ser à distância. Educação deve ser presencial, olho no olho, estudante em diálogo com o professor para tirar dúvidas. Além disso, os alunos aprendem também quando estabelecessem entre si, relações afetivas, de amizade e incentivo, porque é muito difícil voltar a estudar depois de um tempo, mas agora o governo dá mais este golpe que é a EJA à distância”, adverte.
O educador ressalta que o Fórum Paranaense de Educação de Jovens e Adultos repudia a medida, pois compreende que configura mais uma “prática de precarização dos estudos e aligeiramento de certificações” (acompanhe manifesto emitido pelo coletivo na íntegra, disponível aqui).
“Estamos nos manifestando contra no sentido de que os nossos professores, pedagogos, próprios estudantes defendam a matrícula na EJA presencial. Não aceitar a matrícula na EJA à distância porque isso significa uma precarização dos estudos e de certa forma vai favorecer um aligeiramento de certificações vazias, sem conteúdo. Tudo que o governo está fazendo vai na contramão do que a gente acredita que seja uma EJA de qualidade, mas apesar do governo, a gente tem existido e resistido graças ao trabalho dos profissionais, professores, pedagogos que lutam, apesar de todos estes ataques para manter a qualidade da oferta da EJA”, observa.
Desconhecimento dos poderes públicos
Para o professor, os ataques demonstram desconhecimento das últimas gestões que tiveram a frente do Palácio do Iguaçu sobre o que é a EJA, já que tentam reproduzir o modelo voltado a crianças e adolescentes, ou seja, o ensino regular, desconsiderando as especificidades do alunado. “Nas escolas da EJA, encontramos trabalhadores com diferentes trajetórias escolares, faixas etárias, expectativas. Um público bastante diverso. Quando se discutiu uma EJA de qualidade, anos atrás, se formatou um sistema próprio que é diferente do que é organizado para crianças e adolescentes. Sistema da EJA deve ser flexível, para garantir presença dos estudantes de acordo com a possibilidade que possuem”, afirma.
Ayres explica que, no início dos semestres, ao fazer as chamadas públicas para as novas turmas, há uma grande procura pela oferta da educação de jovens e adultos, mas com o decorrer do período letivo, as salas de aula vão esvaziando.
“Dificuldades do dia a dia, a família, cuidado com filho, mudança de horário de emprego, faz com que muitos parem. A gente chama isso de ausência temporária porque uma hora ele volta, se ele realmente tem o desejo e porque precisa ter certificação de ensino fundamental e médio. Isso faz com que as escolas comecem com turmas maiores e depois gradativamente vai diminuindo, faz parte da EJA, mas o governo não entende por que ele quer números. Ele não quer pagar professor para atender cinco, seis alunos. Ele quer pagar professor, e mal inclusive, para atender 30, 40 alunos em sala de aula, mas na EJA isso não é possível”, assinala.
Para Ayres, a negligência dos poderes públicos acerca dos propósitos da EJA afeta toda população. Ela pode ser percebida através do fechamento de turmas, restringindo o acesso à educação. Segundo ele, em Londrina, o Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos – CEEBJA Herbert de Souza, localizado na Vila Nova, através de parcerias com escolas municipais, estava oferecendo ensino gratuito a jovens e adultos de outras regiões da cidade como o Jardim União da Vitória e Conjunto Habitacional Jamile Dequech, mas a exigência de ter, no mínimo 20 alunos, fez com que os cursos fossem fechados.
Outra consequência do desmonte operado pelo estado contra a EJA, é a intensificação da precarização do trabalho docente. O quadro de professores será drasticamente reduzido, visto a menor quantidade de aulas. “Os professores têm que fazer buscativas. Isso não é obrigação do professor, mas sim preparar aula. Somos pressionados a ficar ligando para os alunos, ‘vem para aula’, ‘vem para escola’. Culpam os professores, ‘você não está fazendo uma aula legal, diferente’. Inventaram as metodologias ativas, que é um nome novo que dá para trabalhos que já estamos cansados de fazer”, adverte.
O educador evidencia que tanto o município como o estado, não possuem informações sobre quantos alunos frequentam a modalidade hoje, ou seja, não se sabe o número de pessoas sem escolarização na cidade, o que dificulta a proposição de políticas públicas que garantam ingresso e permanência na EJA.
Já em cenário nacional, o Censo Escolar da Educação Básica 2022, identificou que, de 2019 para 2020, cerca de 230 mil alunos dos anos finais do ensino fundamental e 160 mil do ensino médio migraram para a EJA. A procura pelo Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) registrou número recorde em 2019: 3 milhões. Nas edições de 2020 e 2022, foram 1,7 milhão e 1,6 milhão de inscritos, respectivamente. Não houve aplicação da prova em 2021 em função da pandemia de Covid-19.
Ampliação das desigualdades
Ainda, segundo Ayres, a oferta da educação de jovens e adultos à distância amplia processos de exclusão de camadas mais empobrecidas da sociedade, alterando o principal propósito da modalidade de ensino que é justamente corroborar para a superação de desigualdades. “A EJA hoje é um espaço de inclusão das pessoas negras. Se nós formos analisar a história da educação brasileira, vamos ver que a maioria daqueles que foram excluídos das escolas são negros. Nós temos na EJA, grande número de pessoas com deficiência, que também foram excluídos das escolas por falta de apoio do estado. Tem uma série de pessoas excluídas que vão para EJA. Temos feito um esforço sobre-humano para que haja este acolhimento da melhor forma e não somos reconhecidos”, desabafa.
Além disso, por constituírem parcelas mais vulneráveis, muitos estudantes não possuem equipamentos adequados (celulares, computadores) para acompanhar às aulas de moto remoto. “São homens e mulheres, trabalhadores empregados e desempregados ou em busca do primeiro emprego; filhos, pais e mães; moradores de periferias urbanas, favelas e vilas, campesinos, povos originários, dentre outros, que necessitam de atendimento escolar especializado, permanente e que respeite suas especificidades”, alerta a entidade.
Conforme informado pelo Portal Verdade, os mais atingidos pela falta de acesso à escolarização no país são negros, idosos e moradores da região Nordeste. No ano passado, negros com 15 anos ou mais que não sabiam ler e escrever atingiram 7,4% da população. A taxa é mais do que o dobro da registrada entre brancos com a mesma idade: 3,4%. No grupo etário de 60 anos ou mais, a taxa de analfabetismo entre brancos alcançou 9,3%, enquanto entre negros chegou a 23,3% (relembre aqui).
Denunciar a dupla violência perpetrada pelo estado contra estes segmentos da população é o próximo passo do Fórum neste momento. “Queremos conversar mais com os professores, estudantes. Pegar depoimentos de alunos que para eles explicarem por que querem aula presencial e começar este processo de mobilização e buscar apoio da comunidade”, acrescenta.
Acompanhe entrevista exclusiva concedida por Ivo Ayres à jornalista e editora-chefe do Portal Verdade, Elsa Caldeira:
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.