Pesquisadora ressalta a influência da “ideologia de gênero” no combate às violências
Levantamento divulgado pelo 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública indica que em 2022, o país registrou os maiores números de estupro e estupro de vulnerável na história, com 74.930 vítimas. Isto equivale, a 6.244 casos por mês ou 205 crimes por dia. O dado representa crescimento de 8,2% em relação a 2021, quando foram contabilizadas 68.885 ocorrências.
A pesquisa também analisou dados de tentativas de estupro. De 2021 para 2022, o contingente aumentou 3%, saltando de 4.482 para 4.639 ameaças. No entanto, como reforça o relatório, estes números correspondem aos casos que foram notificados à polícia e, portanto, representa apenas uma fração de modo que a quantidade de abusos pode ser ainda maior.
Desmonte de políticas de enfrentamento
Martha Ramírez-Gálvez, professora do Departamento de Ciências Sociais da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e membra do Néias – Observatório de Feminicídios de Londrina pontua que o aumento de todas as formas de violência contra a mulher é decorrente de fatores como o desmonte de políticas públicas voltados à prevenção e acolhimento, fortalecimento de grupos ultraconservadores contrários às agendas da igualdade de gênero e diversidade sexual.
“Nós estamos observando o resultado de retrocessos políticos no Brasil depois de 2016, quando nós tivemos um governo golpista, ultraliberal, marcado pelo desmonte de políticas protecionistas não só para as mulheres, mas para os trabalhadores e trabalhadoras no geral. E começamos a perceber em todo este processo que foi o golpe contra Dilma [Rousseff], uma intensificação de reações misóginas, muito fortes, a reação da presença de mulheres na política e na esfera pública de maneira geral”, diz.
A docente recorda da violência política sofrida pela ex-presidenta e a associa ao empoderamento de movimentos de extrema-direita durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). “Vale lembrar como Dilma foi retratada em charges a colocando como estuprada, isto é uma violência enorme que parece que abriu a porteira para uma série de expressões que se consolidaram com a ascensão de um governo ultraconservador através da eleição de Bolsonaro”, analisa.
Estudo realizado pela Câmara dos Deputados, a pedido da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, mostra que apenas R$ 5,6 milhões de um total de R$ 126,4 milhões previstos na Lei Orçamentária de 2020 foram efetivamente gastos com as políticas públicas para mulheres. Em 2022, o então Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob a gestão de Damares Alves (Republicanos) reservou o menor orçamento para medidas de enfrentamento à violência contra a mulher (R$ 5,1 milhões).
“Nós tivemos durante estes quatro anos horrorosos para o país, um corte brusco no financiamento de políticas para as mulheres. Parece que a política foi a desmantelar qualquer tipo de política pública com um explícito posicionamento contra os direitos humanos, sexuais e reprodutivos”, reforça.
Vítimas têm até 13 anos
Ainda de acordo com a investigação, o crescimento dos crimes sexuais foi liderado por estupros de vulneráveis. Em 2021, foram 52.057 abusos. Já em 2022, o índice atingiu 56.829 ocorrências (+8,6%). Isto quer dizer, que no último ano, oito em cada dez vítimas de violência sexual eram menores de idade.
De acordo com o artigo 217 do Código Penal, estupro de vulnerável corresponde à violência sexual ou ato libidinoso com menores de 14 anos, pessoas com deficiência ou quaisquer situações em que a vítima, por qualquer razão, não é capaz, de oferecer resistência.
A maioria das vítimas tem no máximo 13 anos (61,4%), são meninas (88,7%) e negras (56,8%). Predominantemente os abusos são cometidos por conhecidos das vítimas (82,7%), sendo que entre estes, a maior parte são familiares (64,4%).
Em relação ao local em que ocorreu o crime, a residência aparece com mais frequência (71,6%). Ainda, segundo a pesquisa, a maior parte dos estupros contra menores ocorreu ao longo do dia, entre 6h e 11h59min (32,5%) ou entre 12h e 17h59min (32,6%), período em os responsáveis em geral estão fora de casa, trabalhando.
Violências também crescem no Paraná
No Paraná, as violações sexuais contra mulheres e crianças também cresceram no último ano, totalizando 5.867 casos. Em 2021, foram identificados 1.287 estupros no estado. Em 2022, o contingente subiu para 1.383 denúncias, aumento de 6,6%. Já os estupros de vulneráveis passaram de 4.217 casos em 2021 para 4.484 em 2022, acréscimo de 5,5%.
“Colhendo cacos”
Para a pesquisadora, nós ainda estamos “colhendo os cacos” da discussão acerca da “ideologia de gênero”. O argumento foi utilizado por segmentos conservadores para tentar barrar a educação sexual nas escolas, influenciando, inclusive, a construção de documentos pedagógicos como o Plano Nacional de Educação em 2014. Assembleias estaduais e câmaras municipais de diversas regiões do país também foram ocupadas por grupos que defendiam a exclusão das questões de gênero dos currículos. É importante destacar que o termo não possui validade científica.
“Esta famigerada ‘ideologia de gênero’ temos que considerar que foi um empreendimento ideológico que surge na Igreja Católica em reação as Conferências de Cairo e Beijing, quando ainda Ratzinger [Bento XVI] não era nem sequer Papa. O que está em disputa, na minha perspectiva, é que quando se começa a falar nestas conferencias internacionais sobre gênero como uma construção social, ela rebate o mito de origem do cristianismo, de que homem e mulher são criações divinas. Por outro lado, as teorias de gênero, feministas vão falar que o gênero é construído socialmente, então, ser homem ou ser mulher é produto de uma serie de fenômenos culturais, educativos, performativos”, explica.
A docente ressalta que, embora tenha raízes religiosas, o debate também foi empregado por uma quantidade grande de políticos que alavancaram as suas campanhas nesta bandeira. Estes passaram a reivindicar a “defesa da família tradicional” e da “moral e bons costumes”, contribuindo, assim, para a reprodução de pânicos morais, isto é, situações forjadas em que grande parte da sociedade é alimentada por preocupações irracionais, sem lastro na realidade.
“Quando se fala de gênero e sexualidade, traz também para o centro do debate questões de ordem familiar, o lugar da mulher na sociedade, autodeterminação reprodutiva, significados de masculinidade e tudo isso está também dentro de um sistema de um ordenamento político, de arranjos da sociedade para os quais, seria necessário que a mulher tivesse no lugar doméstico, criando filhos, cuidando do marido e, especialmente, como estas tarefas foram instrumentalizadas para o retorno do trabalho de cuidado das mulheres em estados que estavam sob o impacto do neoliberalismo que reduziram as políticas de proteção social”, observa.
Em julho, o Ministério da Saúde informou a retomada do Programa Saúde na Escola (PSE), política iniciada em 2007, que prevê a oferta de educação sexual e reprodutiva. A expectativa da pasta é atender mais de 25 milhões de crianças e adolescentes. Segundo o órgão, 99% dos municípios aderiram à iniciativa e receberão recursos para materiais e equipes.
Segundo a estudiosa, a educação sexual é instrumento fundamental para a conscientização das violências. “Se falava de uma erotização das crianças nas escolas quando o que se procura com a educação sexual é justamente que as crianças consigam identificar que tem partes do seu corpo e comportamentos que não devem ser aceitados e elas precisam denunciar”, assinala.
Ainda, ela argumenta sobre a importância de um plano nacional de direitos humanos que oriente a formulação de políticas públicas bem como a garantia de recursos para implementação.
“Grupos conservadores começaram a falar ‘nos meus filhos, mando eu’, mas o estado é responsável por manter a paz social, pela convivência entre diferentes e enquanto ele não recupera isso para sua alçada, como um espaço de governabilidade, vamos continuar enfrentando este problema que está colocado atualmente, que gera todas as violências, feminicídios, violações de direitos humanos em geral, não só de mulheres, crianças, como também elas se intersecionam com outras questões como a sexualidade, pertencimento racial destes corpos que importam menos dos que outros”, acrescenta.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.