Atividade chama atenção para a incompatibilidade entre a lógica empresarial e o direito à educação gratuita
Diversas ações têm integrado a luta contra o programa “Parceiro da Escola”, que permite privatizar a gestão de 177 escolas estaduais no Paraná. Entre elas, professores e funcionários, que atuam em colégios de Londrina e cidades vizinhas, produziram a peça teatral “Deixa com a gente”.
Na encenação, docentes e estudantes estão em sala de aula, e discutem as diferenças entre empresa pública e privada, também os impactos da venda das escolas estaduais que, segundo o coletivo, tem entre seus reflexos o desacordo entre a busca pelo lucro e o direito constitucional que determina como responsabilidade do estado, a oferta de uma educação gratuita, universal e de qualidade.
A peça é uma idealização do grupo de teatro ConTra ReGra, formado por artistas pesquisadores que seguem o Teatro do Oprimido, perspectiva que procura instigar a reflexão sobre diferentes opressões, visando a transformação social.
A produção foi apresentada em escolas selecionadas para integrar o programa, incluindo, o Colégio Estadual Dom Geraldo Fernandes em Cambé, região metropolitana de Londrina. A peça integrou a programação de reunião promovida pela APP-Sindicato (Sindicato dos Professores e Funcionários de Escola do Paraná) a fim de discutir os impactos do projeto (saiba mais aqui).
Marco Paccola, docente na instituição, avalia que o encontro atendeu as expectativas. Ele destaca o comparecimento significativo de pais e demais responsáveis que compartilharam suas preocupações como a fiscalização das empresas.
“A gente conversou com um número expressivo de pais e responsáveis, eles se demonstraram bastante interessados em entender, de fato, o que que é esse projeto, do que se trata, e também demonstraram uma preocupação muito grande com relação a ele, porque entenderam que há ali um conjunto de riscos, o acesso à uma educação pública gratuita de qualidade”, diz.
O professor também evidencia a oportunidade de dialogar com a comunidade. “Foi um primeiro momento de colocar esse debate de forma franca e aberta, foi o primeiro momento que a gente teve, de fato, para poder debater”, ressalta.
Conforme anunciado pelo Portal Verdade, a divulgação do programa pela SEED (Secretaria Estadual de Educação) e NRE (Núcleo Regional de Educação) foi marcada por uma série de arbitrariedades, incluindo, a proibição da participação de dirigentes sindicais, lideranças comunitárias e estudantes, negação do direito ao contraditório e uso da fala nas reuniões, ausência de transparência e publicidade sobre o dia e pauta das reuniões (saiba mais).
Em setembro, professores foram proibidos de entrar no Colégio Estadual Dom Geraldo Fernandes para participar de reunião com a SEED sobre programa “Parceiro da Escola” (relembre aqui).
Autonomia pedagógica
Ainda, Paccola chama a atenção para a precarização do trabalho docente. O programa “Parceiro da Escola” permite a contratação de professores via regime celetista, ou seja, sem a realização de concursos públicos.
Esta possibilidade tem sido criticada pela categoria que a compreende como a extinção da carreira nos quadros do funcionalismo público. Além disso, a modalidade CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) deixa os trabalhadores em situação de maior vulnerabilidade, já que diferentemente dos estatuários, não possuem nenhuma estabilidade.
“São várias alterações que o projeto prevê, mas em essência, a principal consequência vai ser a precarização do trabalho, uma vez que o vínculo que vai se estabelecer deixa de ser um vínculo entre o estado e o professor, ou seja, esse professor não vai ser contratado pelo estado, não vai ter um processo seletivo, vai ser uma contratação direta, um vínculo celetista, um vínculo de trabalho formal com a empresa e esse vínculo gera uma instabilidade muito maior, além do que ele traz uma série de situações que podem influenciar no trabalho e no dia a dia desse professor”, avalia.
Outro ponto mencionado pelo docente refere-se ao cerceamento da autonomia pedagógica. Ele reforça que, assim como os demais trabalhos condicionados aos interesses privados, o lucro da empresa tende a sobressair às preocupações com o ensino aprendizagem.
“A partir do momento que o professor passa a responder como um funcionário de empresa, que gere a escola, ele vai estar exposto a uma das características do emprego formal, a submissão em relação ao empregador. Então, é claro que isso também proporciona uma interferência na questão pedagógica”, assinala.
“Uma vez que o professor torna-se um funcionário da empresa, a empresa pode, e provavelmente isso tende a acontecer, interferir na questão pedagógica. Até a própria escolha dos professores também vai levar em consideração uma série de aspectos. Então, por exemplo, a estabilidade em relação à duração do contrato, questões de afastamento, atestado, abono, uma série de questões trabalhistas propriamente, tendem a ser precarizadas a partir do vínculo direto com a empresa”, ele acrescenta.
Quanto mais precarização, mais recurso
Ainda, Paccola pontua que repasse leva em consideração o número de professores contratados diretamente pelas empresas, ou seja, quanto maior o contingente de docentes admitidos pela iniciativa privada, maior será o recurso que o estado irá disponibilizar.
“Isso significa dizer que para a empresa é uma vantagem você ter o número de professores efetivos diminuto, ou seja, há uma tendência que é o esvaziamento de professores efetivos na escola, o que prejudica também muito a questão pedagógica, porque professores que estão há mais de 20, 10 anos trabalhando na mesma escola, eles já conhecem a realidade do bairro, a realidade escolar, as famílias, os alunos, já criaram um vínculo”, observa.
A alta rotatividade de profissionais também é uma das principais divergências. “Pode ser, inclusive, que não haja mais essa estabilidade, essa manutenção do corpo docente, então, a empresa pode trocar de professor contratado a todo momento em um vínculo de trabalho celetista, pode muito bem no final do ano trocar todo o corpo docente, então, é mais um aspecto que afeta também o desempenho do trabalho e consequentemente a questão pedagógica”, analisa.
“A partir do momento que você tem a precarização do trabalho, isso em qualquer setor, tem vulnerabilidade, instabilidade, pressão. O resultado do trabalho é afetado, então, professores que tem uma jornada de trabalho muito extensa ou tem condições de trabalho precárias, eles vão, infelizmente, sofrer com um desempenho também, aquém daquilo que eles poderiam oferecer se tivessem condições de trabalho mais favoráveis”, complementa.
Educação não é mercadoria
Paccola também sinaliza a mudança na concepção de educação a partir da lógica empresarial.
“Não é da natureza da escola, do ensino público, gerar lucro. A educação não é vista nas escolas públicas como uma mercadoria, só que a partir do momento que você transfere a gestão da escola para uma empresa e a empresa tem na sua essência o objetivo de gerar lucro, porque é para isso que ela existe, você passa a tratar a educação como uma mercadoria e a gestão vai focar nesse objetivo, que é a obtenção de lucro, podendo, inclusive, sobrepor esse objetivo a outros objetivos, como os pedagógicos”, aponta.
Para o docente, a consequência será o desmantelamento de um ensino crítico, voltado à emancipação e autonomia.
“Tratar a educação como uma mercadoria significa que você não vai pensar a educação como uma forma de emancipação humana, como uma forma de desenvolvimento de pensamento crítico, você vai tratar a educação como um meio para obtenção de lucro. Nós estamos transformando, estamos aceitando que esse projeto transfira para empresas privadas a gestão da educação e, obviamente, isso altera toda a lógica da educação pública”, adverte.
Mesmo com suspensão, SEED agenda consulta
Conforme informado pelo Portal Verdade, mesmo após a suspensão de novas contratações do programa “Parceiro da Escola” pelo TCE-PR (Tribunal de Contas do Estado do Paraná), a SEED agendou consulta pública nas 177 escolas selecionadas, distribuídas em 98 municípios paranaenses.
Entre as irregularidades apontadas estão ausência de dotação orçamentária e estudo preliminar técnico, falta de garantia ao fornecimento de alimentação adequada aos alunos, entre outras.
A votação inicia nesta sexta-feira (6), no período das 8h às 20h30. No dia 7, sábado, o horário ficou definido entre 8h e 17h. Já na próxima segunda-feira (9), será possível participar da consulta das 8h às 20h30.
Segundo Decreto nº 7235, publicado pela pasta em setembro, terão direito ao voto “responsáveis legais de estudantes regularmente matriculados nas escolas selecionadas, alunos com 18 anos completos até a data da consulta, docentes e funcionários pertencentes ao quadro de servidores da instituição, exceto terceirizados” (saiba mais aqui).
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.