Ex-presidente falou para dezenas de milhares de pessoas na Boca Maldita, com presença de Dilma, Requião, Manuela Dávila e outras lideranças
Debaixo do estranho sol que estranhamente voltava a Curitiba nesta manhã de sábado, desembarquei na Zacarias: sabia que era o lugar mais perto que não estaria bloqueado por causa do comício. O primeiro susto foi a fila. A revista não estava dando conta de tanta gente, e as pessoas estavam serpenteando na praça numa forma de caracol. Achei que nunca ia chegar na Rua XV até completar todas aquelas voltas.
Tinha decidido que não queria ficar em cercadinho de imprensa. Cobrir política é chato se você quer só ficar perto das autoridades, e esse é um raro momento em que você pode estar do outro lado, do lado de quem vota. Levei meu filho pra ele entender como se faz política (e jornalismo, por que não?) e me enfiei com ele no meio da multidão.
Multidão, nesse caso, passa longe de exagero. A organização do evento fala em 50 mil pessoas, mas não faz sentido. Claro que não tinha tudo isso, nem cabe. Mas eram quadras e quadras de gente socada, como só se vê umas poucas vezes na vida. Para se ter uma ideia: não consegui chegar perto do palanque e quando tentei ficar nas proximidades do primeiro telão (uns cem metros adiante) era quase impossível se mexer – e mesmo assim não se via nada. Recuei para o segundo telão, já na altura do Palácio Avenida, e ali era respirável.
A vida inteira vi comícios, inclusive muitos de Lula. Lembro de um em 2010 no mesmo lugar, quando Dilma era candidata, e minha impressão na época era que tinha mais comissionado e militante de movimento social do que paisanos ali. Dessa vez, não. Era povo de verdade. Sem necessidade de pagar pão com mortadela, para usar a metáfora que tentaram grudar no petismo.
Era pobre e rico, era estudante e velhinho, era mulher e homem, gays e lésbicas e héteros, era criança no ombro, criança no colo. Tinha amigo jornalista, conselheiro tutelar, gente de periferia, gente trabalhando pra candidato. Meu Deus, era um mar de gente muito maior do que em qualquer outro evento político que eu vi desde o impeachment de Collor – e olha que lá se vão 30 anos.
Vi Lula pela última vez num comício na Santos Andrade, em 2018. Na época escrevi, ainda em um outro jornal, que talvez fosse o ato final da carreira pública dele. Sabia-se que em pouco tempo ele devia estar preso. Lula dizia: quando eu estiver sem poder andar, vocês serão minhas pernas; e quando eu não puder mais falar, vocês vão ser minha boca, e a plateia ia no embalo, como sempre vai com ele. Parecia um discurso meio hipnótico, meio bíblico. Meio coisa de profeta – e Lula sempre teve esse lado de líder-quase-guia.
Quatro anos depois, na Boca Maldita cercada por todo lado com grades, com uma segurança forte, parecia que aquela multidão tinha voltado com uma fúria de ver de novo seu líder, finalmente livre e – mais – à beira de desbancar o atual presidente (odiado por todos ali) e de voltar ao Planalto (de onde, para todo mundo que estava ali, nunca devia ter saído).
Bastou o primeiro deputado subir no palanque e a plateia rugiu, urrou. Depois apareceram os nomes mais famosos do petismo local, Requião, Gleisi, e aí anunciaram Dilma Rousseff – a reação foi como se tivessem anunciado que Messi se naturalizou brasileiro para a próxima Copa. Precisa dizer o que aconteceu quando Lula subiu no palanque?
Os organizadores tiveram a bondade de não deixar vereadores, deputados e todo mundo discursar. Começaram com os caciques partidários, e mesmo assim a coisa foi exaustiva. Dilma errou o nome de Manuela Dávila (bem a seu modo), e pediu desculpas de um jeito fofo (igualmente a seu modo). Manuela e Randolfe, aliás, fizeram belos discursos. Gleisi, visivelmente emocionada, foi quem falou melhor na primeira parte.
Requião, anunciado como um homem de 81 anos que nunca deixou suas batalhas, reclamou dizendo que assim parecia que lhe faziam o obituário. Disse que estava ali como candidato mas principalmente como cabo eleitoral número um de Lula no Paraná. “Não vale a pena ser governador do Paraná se Lula não for presidente”. Pediu para todos erguerem as mãos e pareceu Bono Vox num show em um estádio lotado.
Lula foi o último e fez o que se espera dele. Fez graça, brincou com Samek (“um fazendeiro”), fez um belíssimo elogio à coragem de Dilma, conseguiu levar o povo quase à lágrimas ao cantar loas a Requião (“ninguém defende a soberania nacional como ele”; “fiquei feliz quando ele, aos 80 anos, assinou a ficha no PT”) e partiu para sua campanha. Em pequenos voos retóricos, desancou Bolsonaro, prometeu a volta do ProUni e do Fies (“com força”), falou de piso de enfermagem, de pandemia, de seu casamento com uma curitibana (“acham que eu tenho bronca de Curitiba, mas foi aqui que eu conheci a Janja”. Estava pregando para convertidos, claro.
Mas a estrela do comício não foi Lula. Nem foi Janja, que cantou para o presidente e falou emocionada da perda da mãe para a Covid. Nem foi Requião. O impressionante mesmo foi ver a multidão de curitibanos (vejam bem, de curitibanos) com bandeiras vermelhas, adesivos de Lula, se empurrando com estrelas em que se lia o nome de Alckmin, gritando o nome de Lula como se não houvesse amanhã.
Uma imensidão de gente que pareceu ter saído das sombras onde nos últimos anos foi colocada pela Lava Jato, pelo bolsonarismo, pelo clima de ódio a tudo que viesse da esquerda. Foi como se depois de um longo inverno os petistas, os defensores de Lula, os curitibanos que não compactuam com o governo Bolsonaro e que talvez estivessem com medo de dizer isso à luz do sol tivessem tido a coragem de sair de seus lugares e de viver um dia de primavera em pleno centro, desfilando cores e dizeres que pareciam proscritos.
“Curitiba não é uma república”, nunca fio, disse Gleisi, pedindo voto contra Moro. “Vocês não sabem como eu enchi a Gleisi dizendo: eu quero ir na Boca Maldita”, disse Lula. “Falam que é um estado de bolsonaristas. Pois bem, é lá que eu quero ir”, disse Lula. E o povo, que obviamente representa apenas uma fração da cidade, mas que por um dia se sentiu novamente capaz de fazer parte de algo em que acredita, o povo vibrou. Vibrou como há muito não se via vibrar nesta cidade. E se você não tem ódio no coração, independente de cor partidária, dificilmente deixaria de achar aquilo excepcionalmente bonito.
Fonte: Redação Jornal Plural