No primeiro semestre de 2023, uma menina ou mulher foi estuprada a cada 8 minutos no Brasil
Neste mês, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgou novo levantamento, no qual traça um panorama sobre as múltiplas violências cometidas contra meninas e mulheres no país. Os dados abrangem o primeiro semestre de 2023. Conforme demonstrou o Portal Verdade, neste ano, os casos de feminicídio aumentaram 2,6% quando comparados ao mesmo período de 2022. No total, 722 mulheres foram assassinadas de janeiro a junho.
Ainda, de acordo com o mapeamento, neste primeiro semestre de 2023, os crimes de feminicídio cresceram 30% em comparação a 2022 no Paraná. Neste ano, já foram 39 ocorrências face a 30 no mesmo período do ano passado. O índice coloca o território paranaense na liderança, com o maior número de casos na região Sul (saiba mais aqui).
Também segundo a pesquisa, o Brasil registrou 34 mil casos de estupro e estupro de vulnerável no primeiro semestre deste ano, crescimento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano passado. Isso significa que a cada 8 minutos uma menina ou mulher foi estuprada entre janeiro e junho no país, maior número da série iniciada em 2019.
As informações são coletadas a partir de registros de boletins de ocorrência em delegacias de Polícia Civil de todo o país e, portanto, podem ser ainda maiores dada a subnotificação de casos de violência sexual, conforme alertam os pesquisadores.
Relatório nomeado “Elucidando a prevalência de estupro no Brasil a partir de diferentes bases de dados”, desenvolvido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2019, estimou que apenas 8,5% dos estupros que ocorrem no país são registrados pelas polícias e 4,2% pelos sistemas de saúde.
Em relação a tipificação assumida nos boletins de ocorrência, 74,5% dos casos registrados no primeiro semestre deste ano foram de estupro de vulnerável. Isso significa que as vítimas tinham menos de 14 anos ou eram incapazes de consentir seja por enfermidade, deficiência ou qualquer outra causa que as impediam de oferecer resistência.
Todas as regiões apresentaram crescimento nos casos de estupro e estupro de vulnerável no 1º semestre de 2023 quando comparado com o mesmo período do ano anterior. A maior variação se deu na região Sul, com crescimento de 32,4%, seguida da região Norte, com crescimento de 25%, e da região Nordeste, cujo crescimento foi de 13,2%. No Centro-oeste o aumento foi de 9,7% e no Sudeste a alta foi de 4,8%.
A maior variação entre os primeiros semestres de 2022 e 2023 se deu em Santa Catarina, com aumento de 103,9% dos casos, passando de 1.024 vítimas para 2.088 em 2023. Já a maior queda se deu no Mato Grosso, estado que apresentou redução de 25%, passando de 885 casos para 664.
Meninas negras são as vítimas mais frequentes
Com base na última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em agosto último, a maioria das vítimas de estupro no país tem no máximo 13 anos (61,4%), são meninas (88,7%) e negras (56,8%). Predominantemente os abusos são cometidos por conhecidos das vítimas (82,7%), sendo que entre estes, a maior parte são familiares (64,4%).
Em relação ao local em que ocorreu o crime, a residência aparece com mais frequência (71,6%). Ainda, segundo a pesquisa, a maior parte dos estupros contra menores ocorreu ao longo do dia, entre 6h e 11h59min (32,5%) ou entre 12h e 17h59min (32,6%), período em os responsáveis em geral estão fora de casa, na maioria das vezes, trabalhando.
Paraná
No Paraná, os crimes de estupro e estupro vulnerável saltaram de 2.699 no primeiro semestre de 2022 para 3.229 em igual período deste ano. Isto equivale a um aumento de 19,6% nas ocorrências.
Para Martha Ramírez-Gálvez, professora do Departamento de Ciências Sociais da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e membra do Néias – Observatório de Feminicídios de Londrina, nós ainda estamos “colhendo os cacos” do desmonte das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero e diversidade sexual.
Ela lembra da discussão em torno da “ideologia de gênero”. O argumento foi utilizado por segmentos conservadores para tentar barrar a educação sexual nas escolas, influenciando, inclusive, a construção de documentos pedagógicos como o Plano Nacional de Educação em 2014. Assembleias estaduais e câmaras municipais de diversas regiões do país também foram ocupadas por grupos que defendiam a exclusão das questões de gênero dos currículos. É importante destacar que o termo não possui validade científica.
“Esta famigerada ‘ideologia de gênero’ temos que considerar que foi um empreendimento ideológico que surge na Igreja Católica em reação as Conferências de Cairo e Beijing, quando ainda Ratzinger [Bento XVI] não era nem sequer Papa. O que está em disputa, na minha perspectiva, é que quando se começa a falar nestas conferencias internacionais sobre gênero como uma construção social, ela rebate o mito de origem do cristianismo, de que homem e mulher são criações divinas. Por outro lado, as teorias de gênero, feministas vão falar que o gênero é construído socialmente, então, ser homem ou ser mulher é produto de uma série de fenômenos culturais, educativos, performativos”, explica.
A docente ressalta que, embora tenha raízes religiosas, o debate também foi empregado por uma quantidade grande de políticos que alavancaram as suas campanhas nesta bandeira. Estes passaram a reivindicar a “defesa da família tradicional” e da “moral e bons costumes”, contribuindo, assim, para a reprodução de pânicos morais, isto é, situações forjadas em que grande parte da sociedade é alimentada por preocupações irracionais, sem lastro na realidade.
“Quando se fala de gênero e sexualidade, traz também para o centro do debate questões de ordem familiar, o lugar da mulher na sociedade, autodeterminação reprodutiva, significados de masculinidade e tudo isso está também dentro de um sistema de um ordenamento político, de arranjos da sociedade para os quais, seria necessário que a mulher tivesse no lugar doméstico, criando filhos, cuidando do marido e, especialmente, como estas tarefas foram instrumentalizadas para o retorno do trabalho de cuidado das mulheres em estados que estavam sob o impacto do neoliberalismo que reduziram as políticas de proteção social”, observa.
Segundo a estudiosa, a educação sexual é instrumento fundamental para a conscientização das violências. “Se falava de uma erotização das crianças nas escolas quando o que se procura com a educação sexual é justamente que as crianças consigam identificar que tem partes do seu corpo e comportamentos que não devem ser aceitados e elas precisam denunciar”, assinala.
Ainda, ela argumenta sobre a importância de um plano nacional de direitos humanos que oriente a formulação de políticas públicas bem como a garantia de recursos para implementação.
“Grupos conservadores começaram a falar ‘nos meus filhos, mando eu’, mas o estado é responsável por manter a paz social, pela convivência entre diferentes e enquanto ele não recupera isso para sua alçada, como um espaço de governabilidade, vamos continuar enfrentando este problema que está colocado atualmente, que gera todas as violências, feminicídios, violações de direitos humanos em geral, não só de mulheres, crianças, como também elas se intersecionam com outras questões como a sexualidade, pertencimento racial destes corpos que importam menos dos que outros”, acrescenta.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.