Fortes explosões nas ruas e protestos dos trabalhadores ocorrem, ao longo de junho e julho, no Panamá e no Equador. Enquanto a intensificação dos conflitos sociais estoura no Haiti. Já na Argentina, a troca do ministro da economia do governo Fernandez desencadeou manifestações, no 9 de julho, puxadas pelas organizações de esquerda e, ao mesmo tempo, por segmentos conservadores.
Um motivo comum para essas explosões? O desemprego, o alto preço dos combustíveis, a inflação e a carestia de vida. Em suma, os países da América Latina não se recuperam e não recompõe os níveis de retomada de emprego, em meio à crise econômica intensificada com a crise sanitária da covid-19.
No Panamá, as lutas ocorrem com o movimento sindical à frente, a partir de convocatórias de greves, que envolvem segmentos da construção civil, trabalhadores do Canal do Panamá, até então sem tradição de organização, entre outros setores, conformando a “Aliança Pueblo Unido por la Vida”, que apresenta 32 pontos de pauta a um desnorteado governo panamenho de Laurentino Cortizo.
País dependente, o Panamá foi invadido pelos EUA em 1989, ainda não possui autonomia plena sobre o Canal do Panamá, sob controle do governo desde 1999, com cláusula de intervenção de Washington, e tem a economia dolarizada.
As paralisações abrangem a capital, Ciudad Panamá, e as cidades de Santiago de Veraguas, Chiriquí e Colón. A pauta denuncia os altos preços dos combustíveis, da cesta básica, exige melhores salários e redução do custo da tarifa elétrica. O movimento também apresenta a demanda de 6% do Produto Interno Bruto (PIB) destinado para investimentos em educação.
O governo panamenho, de acordo com informações da Telesur, reage da pior forma possível, fincando o pé no discurso de austeridade e ausência de investimentos por parte do Estado. Um exemplo disso está na presidenta da Câmara de Comércio, Indústrias e Agricultura de Panamá (Cciap), por exemplo, defendendo que “é inaceitável contrair mais dívida pública para financiar o gasto do funcionamento do Estado”.
O governo ainda ajusta a dose do remédio para matar o paciente, oferecendo desligamento de servidores do setor público e redução de dez por cento dos gastos do Estado.
Para ilustrar o descrédito das análises das instituições financeiras internacionais, artigo do Fundo Monetário Internacional, publicado no jornal Valor Econômico, em 2019, anunciava que o Panamá “tem uma boa chance de se tornar a primeira economia avançada da América Latina nos próximos anos”.
Equador e a experiência da organização popular
Já no Equador, outro país igualmente dolarizado, desde o ano 2000, impactado pelo programa neoliberal e governado hoje pelo banqueiro Guilherme Lasso, a onda de mobilizações, semelhante àquela iniciada em 2019, teve novo fôlego agora e gerou uma paralisação de 18 dias em todo o país.
Conduzido pela Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (Conaie), de acordo com analistas, o movimento tem demonstrado o resultado do acúmulo de experiência organizativa de mais de 30 anos, colocando um programa de dez medidas na mesa de negociação com o governo banqueiro, entre as quais:
Congelamento do preço dos combustíveis; subsídios e preços justos para a agricultura camponesa; medidas de investimento contra a precarização do trabalho; moratória não ao despejo de moradias e redução da taxa de juros; impedir a ampliação da área de mineração; impedir as privatizações de setores estratégicos; controle de preços dos itens básicos; investimentos em saúde e educação; além do controle contra a violência que se alastra nos países;
Como já ocorreu em outros momentos da luta de classes nos países andinos, a mobilização novamente apresenta estruturada uma agenda nítida com 10 pontos de luta. Após um certo ocaso, devido à participação no governo do militar de Lucio Gutiérrez, derrubado em 2005, por ter traído o discurso nacionalista e se alinhado ao governo de Washington, o movimento indígena retoma protagonismo político no país.
O governo, até o momento, em que pese a forte mobilização popular baseada no fechamento de estradas e na paralisação do país, resiste e também segue se agarrando no ajuste fiscal.
Como aponta o economista equatoriano Pablo Dávalos, as atuais respostas do governo Lasso devem fazer com que o governo siga sem capacidade de realizar investimentos em saúde e educação. Por decisão própria. Afinal, Dávalos aponta que, no ramo petrolífero, o país teve entradas de U$ 3.5 bilhões no primeiro trimestre de 2022, mas só gastou U$ 26 milhões em investimentos públicos, em que pese o discurso da crise.
Em 2016, Dávalos já apontava que “a arquitetura institucional que baliza o gasto público do país, acordada com organismos multilaterais, impede que as exportações financiem programas sociais (BARBOSA DOS SANTOS, 2022).
Faca no pescoço da Argentina e Equador
A Argentina, assim como o Equador, é um país que vive sob a faca no pescoço do Fundo Monetário Internacional (FMI).
No dia 9 de julho, milhares de pessoas ganharam as ruas no país, a maioria no campo da esquerda, contra a manutenção da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o alto custo de vida e a inflação fora de controle.
O ex-ministro da economia de Fernandez manteve o compromisso com a dívida de U$ 47 bilhões com o Fundo, apesar das promessas iniciais do peronismo de romper com o legado neoliberal de Maurício Macri.
O governo Macri havia vencido as eleições em 2015, abrindo as portas para a curta ascensão de governos de direita nos países latino-americanos. Causou desemprego, desalento e fome aos trabalhadores, o que abriu espaço novamente para a vitória do peronismo na sua modalidade mais liberal, com Fernandez à frente e Cristina Kirchner e seu movimento na condição de vice e mais crítica ao neoliberalismo.
A delicadeza atual se deve ao desgaste do governo Fernandez, em mobilizações que envolvem as organizações populares. Mas nesse momento a Argentina também vive a onda de protestos de setores médios, frações do agronegócio e da oposição. A questão é se as organizações dos trabalhadores conseguirão construir uma força própria e autônoma, sem abrir o flanco para uma saída conservadora.
Mundo de cabeça para baixo
No Haiti, país golpeado pelo neoliberalismo e pelo governo dos EUA, marcado pelo golpe contra o presidente progressista Jean Bertrand Aristide, em 2004, passando pelo assassinato recente do presidente Moïse, em 2021, agora vive uma situação de guerra entre grupos criminosos e crise humanitária que atinge 4.5 milhões de pessoas, metade da população, passando fome.
Ao contrário da mídia empresarial brasileira, que segue alardeando o programa liberal e de ajustes como um legado positivo, assistir a canais como o venezuelano Telesur é ver o que o escritor uruguaio Eduardo Galeano chamava de “Mundo al revés”, ou mundo de cabeça para baixo.
As condições de vida geradas pelo neoliberalismo, que retornou com força ao continente desde 2015, na Argentina e Brasil sobretudo, agora empurram reações contra a inflação dos preços dos combustíveis, dos transportes, medicamentos e a reação contra o desemprego que se mantém.
De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 2021, houve aumento de 32% nas exportações da América Latina e a Caribe e as remessas de imigrantes para o subcontinente aumentaram em 32% naquele ano de pandemia. No entanto, esse fluxo de capitais não é revertido para a economia real e para a geração de trabalho na indústria.
A Cepal tem apontado também um mercado de trabalho que não volta aos índices anteriores à crise sanitária da covid-19. O crescimento do trabalho informal tem sido, em média, de 70% em países, caso do Peru, México, Argentina e Paraguai. Soma-se a isso a desvalorização nas moedas locais frente ao dólar, bem como o aumento e o impacto do preço das importações.
Retomada ou encruzilhada?
Tem sido comemorada e agitada por algumas organizações e analistas de esquerda uma nova onda de governos progressistas latino-americanos, desta vez com maior amplitude que no começo dos anos 2000. Agora com a inclusão de México, Peru e Colômbia, países que passaram ao largo da “primavera progressista” dos anos 2000 e enfrentaram, ao menos, quatro décadas da realização de um programa completo neoliberal.
No quadro continental, somam-se então os governos de Argentina, Venezuela, Chile, além de Cuba, Bolívia, Honduras e Nicarágua. Neste sentido, a vitória de Lula no Brasil traria cerca de 530 milhões dos 650 milhões de cidadãos latino-americanos regidos por um governo de esquerda no continente.
Porém, a dimensão da crise atual, a pressão e a consolidação de uma base social de extrema direita, sobretudo nos países do Cone Sul (Uruguai, Argentina, Brasil, Chile), e os retrocessos que os governos enfrentam para a aplicação de um programa popular, caso de Pedro Castillo, no Peru, são fatores que rapidamente nos trazem de volta à realidade.
Os novos governos de esquerda não estão no mesmo cenário anterior. Não se trata apenas de uma retomada. Mas de uma encruzilhada.
Os presidentes, caso de Castilho, no Peru (que deixou o partido de esquerda Peru Livre e migra para aliança conservadora com a oposição), Boric, no Chile, e Fernandez, na Argentina, já enfrentam pressão dos meios de comunicação empresariais e aprovação popular baixa.
A questão colocada para tais governos, diante de novas e possíveis explosões nas ruas de cada país, é: ou se aproximar das massas que estão precarizadas e com péssimas condições de vida, apontando reformas populares, nacionais, democráticas, feministas, antirracistas, antineoliberais e antiimperialistas.
Ou, caso contrário, o discurso, o apoio numa frágil institucionalidade e um vago aceno a uma democracia genérica, podem tornar este ciclo progressista ainda mais breve.
Voltaremos a esta questão no próximo artigo. Por ora, todo apoio às revoltas e à lista de medidas antineoliberais das organizações em luta.
Fonte: Brasil de Fato