Mesmo com aumento da pobreza, Paraná reservou inicialmente só R$ 65 milhões para programa
O aporte na política pública de entrega leite a crianças carentes do Paraná caiu a seus menores níveis desde 2006 – mesmo sem considerar a correção dos valores. O impacto da inflação no produto e o aumento da fome no país obrigaram o governo a rever os repasses inicialmente previstos. Mesmo com o recente aumento, porém, o número de beneficiados pelo programa passa longe do que havia em governos anteriores.
Se levada em conta a variação inflacionária registrada pelo IPCA, índice oficial do governo federal, o potencial do programa começou a se desvalorizar abruptamente de 2017 para cá, acelerado ainda mais com a pressão nos preços acumulada nos últimos cinco anos. Entre 2013 e 2022, o número de atendidos pela política encolheu em um terço, caindo de 160 mil para 105 mil.
A gestão de Ratinho Jr. (PSD) atrela a redução de beneficiados à queda no índice de natalidade. “De acordo com o Portal da Transparência do Registro Civil a natalidade está em queda há pelo menos seis anos e teve esse movimento intensificado durante a pandemia de Covid-19 e segue em declínio em 2022”, informou, em nota, a Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento (Seab).
Criado em 2003 na esteira de iniciativas semelhantes a outros estados do país, o programa Leite das Crianças (PLC) é uma importante medida de combate à desnutrição infantil. Especialistas alertam que a distribuição do alimento continua sendo uma política imprescindível, sobretudo no momento em que a insegurança alimentar cresce e empurra de volta o Brasil ao mapa da fome.
Levantamento feito pelo Plural, no entanto, mostra que o aporte no PLC tem se movimentado em direção contrária à situação da fome no país.
Diminuição
As comparações foram feitas com base nos cadernos de segurança alimentar divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para os anos de 2004, 2009, 2013 e 2017-2018, sendo os três primeiros ainda um suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).
Como o estudo não foi mais desenvolvido, observaram-se os indicadores do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) em 2021 e 2022. Os dois estudos usam a mesma metodologia – a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) – e, por isso, de acordo com a própria Rede Penssan, é possível a comparação do cenário mostrado pelas duas frentes.
Em 2022, a situação da fome no país disparou e atingiu 33 milhões de pessoas – 14 milhões a mais que em 2021. O número de pessoas em situação de miséria, no entanto, já vinha ascendendo desde 2013, afirmam as pesquisas, justamente quando começou a cair o número de crianças atendidas pelo programa no Paraná.
As verbas destinadas ao programa estadual, carimbadas nos documentos da Lei Orçamentária Anual (LOA), começaram a cair mais acentuadamente em 2020. Naquele ano, Ratinho destinou R$ 70 milhões à política, R$ 25 milhões a menos que em 2019. Em 2021, já com a insegurança alimentar sob sinal vermelho como uma das mais graves consequências imediatas da pandemia, o Paraná destinou apenas R$ 35 milhões. Foi a menor cifra do programa desde seu lançamento.
O montante irrisório obrigou o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca) a aprovar repasse de R$ 30 milhões do Fundo para a Infância e Adolescência (FIA) ao programa – caso contrário, poderia haver interrupção nas entregas. Apesar de a Seab negar a intervenção, a transferência consta em balancete público do conselho. Extraoficialmente, a reportagem apurou que, durante a aprovação da verba pelos conselheiros, a pasta foi informada de que seria uma medida em caráter extraordinário.
Por isso, este ano, a secretaria mais que dobrou as cifras do Leite das Crianças. Foram previstos R$ 65 milhões – ainda assim, número 32% menor do que os R$ 95,6 destinados em 2019, ano pré-pandemia. O valor inicial destinado ao caixa do programa em 2022 se equipara ao de 2007, quando foram previstos na LOA R$ 66,1 milhões para atender os cadastrados. Entretanto, se aplicada a variação da inflação pelo IPCA no período, o montante, para ser realmente comparável, teria de ser R$ 131, 16 milhões.
Em nota de resposta a questionamentos feitos para esta reportagem, a Seab informou um reajuste na verba do Programa Leite das Crianças. Até final do ano, afirma a pasta, será empregado o total de R$ 160 milhões na compra e entrega do item às famílias atendidas.
“A previsão orçamentária é feita com base no número de crianças atendidas, considerando-se o perfil especificado no programa. Para 2022 a previsão era de investimento de R$ 65 milhões, valor que atenderia a demanda. Porém, com a volatilidade no preço do leite e o aumento expressivo no valor do produto, a previsão é de aporte de recursos, por meio do tesouro estadual, chegando a R$ 160 milhões até o final do ano”, explica a nota, assinada pelo secretário Norberto Ortigara.
Em junho, a variação acumulada no ano do leite pasteurizado chegou a 47,58% em Curitiba, de acordo com o IPCA, medido pelo IBGE, sendo um dos itens de maior peso da cesta básica por ora.
Para atender as crianças cadastradas no programa, o governo do Paraná mantém relação contratual com pequenos produtores do estado. Também é objetivo da política incentivar o desenvolvimento das cadeias produtivas locais e regionais do leite – em 2020, a Pesquisa Pecuária Municipal, divulgada pelo IBGE no ano passado, colocava o Paraná como o segundo maior ator da cadeia leiteira do país.
Hoje, segundo a Seab, são 37 usinas fornecedoras do alimento, que recebem um preço diferente do que clientes comuns pagam aos supermercados. Mesmo assim, o preço do litro pelo Conseleite, a associação dos representantes de produtores rurais de leite e indústrias de laticínios do Paraná, também reagiu à inflação que atinge o setor. Em janeiro, o preço pago era de R$ 3,3648 e, no mês passado, foi para R$ 4,2448. Em 2019, o valor médio anual foi de R$ 2,413.
Mas a Seab garante que a revisão financeira deverá ser suficiente para finalizar 2022 sem surpresas. Apesar de os contratos com as usinas fornecedoras de leite estarem vigentes até 30 de setembro, o governo disse que um “novo credenciamento está em tramitação e deverá ocorrer ainda neste ano, de forma a manter a continuidade do fornecimento”. “Também não há previsão de aporte de nenhum recurso do conselho para o programa neste ano de 2022”, acrescenta a nota.
Único alimento de muitas famílias
O Programa Leite das Crianças distribui, sem custo e diariamente, um litro de leite pasteurizado integral enriquecido a crianças entre seis meses 3 anos e mães gestantes, usando como critério de famílias com renda per capita mensal de até meio salário-mínimo regional. A previsão orçamentária para 2022 indicava 105 mil atendidos, menos de 70% do total atendido em 2013, quando o universo de beneficiados começou a ser apontado na LOA.
O leite é considerado um alimento essencial para nutrição infantil e, por extensão, para a família. A edição 2019 do Guia Alimentar para Crianças de até 2 anos, do Ministério da Saúde, não recomenda leite de vaca para crianças menores de 8 meses, mas especialistas ressalvam paradoxos que não podem ser desconsiderados na discussão de políticas públicas alimentares.
“A gente está falando de um programa destinado a crianças na primeira fase da vida, mas, sem dúvida, que acaba se estendendo também à família porque a criança acaba consumindo, mas também os irmãos mais velhos, e até os pais”, diz Cilene Gomes Ribeiro, presidente do Conselho Regional de Nutricionistas do Paraná (8ª Região). “A própria OMS [Organização Mundial da Saúde] e o Guia falam que o aleitamento materno deveria acontecer até os seis meses. Mas se a gente for analisar, existem outras políticas dentro dessa mesma política. Quando a gente pensa que a licença maternidade não é garantida até os seis meses, isso não contribui para que esse aleitamento materno ocorra até os seis meses. A própria questão desnutrição da maior pare das mães que não tem alimentação inadequada inevitavelmente faz com que ela não tenha também como produzir leite para amamentar”.
O CRN afirmou que não acompanha a trajetória dos investimentos no programa paranaense porque não é uma das finalidades do conselho. Contudo, defende o objetivo da política como uma garantia de direito.
“Não há dúvidas de que, na condição que o Brasil está, de uma insegurança alimentar extremamente grave, a gente tem que realmente garantir aporte de alimento para as pessoas que estão em condições vulneráveis, e que é realmente uma grande parte da população, tanto no ambiente rural como urbano”, acrescenta Ribeiro.
Flavia Aulere, coordenadora do curso de Nutrição da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), também ressalta que a oferta e o consumo do leite não podem ser dissociados do contexto social das crianças. Muitas vezes, ela observa, trata-se do único acesso a um ingrediente alimentar de qualidade em famílias que vivem em situação de fome, inclusive no Paraná – onde a fome também aumentou.
Miséria
A quantidade de famílias no estado que vive com dinheiro para apenas uma cesta básica por mês passou de 1,13 milhão, indica levantamento feito a partir dos dados mais atualizados do Cadastro Único (CadÚnico), sistema do governo Federal utilizado como porta de entrada para programa sociais, e do preço do pacote essencial de produtos alimentícios.
“Esse leite destinado à população carente, às vezes é único alimento com qualidade nutricional desta criança. A gente não pode restringir em um momento em que 33 milhões de pessoas estão passando fome, sendo que muitas dessas famílias têm crianças com menos de 10 anos em casa e que estão passando fome também”, diz a nutricionista da PUC.
Aulere alerta que, apesar de uma área específica da Nutrição hoje associar o consumo do leite a algumas doenças inflamatórias, o aporte calórico e proteico do alimento para as crianças continua sendo essencial e que, por isso, políticas de entrega gratuita do alimento a famílias carentes segue é, por consequência, imprescindível.
“Existem crianças com intolerância à lactose a à proteína do leite, mas são crianças diagnosticadas desde muito cedo e isso perfaz menos de 1% das crianças. Além disso, as crianças em situação de vulnerabilidade são as menos comprometidas porque esse tipo de doença é muito mais preponderante em caucasianos e orientais, e a gente sabe que a maior parte das nossas crianças que vivem na pobreza não têm essas origens”, diz a nutricionista.
Apesar dos cortes, a Seab diz reconhecer a importância do programa neste momento de crise e, consequentemente, aumento da fome, e rechaça descontinuá-lo. Segundo a pasta, “com a oferta regular do leite pasteurizado e enriquecido às crianças em insegurança alimentar, é possível garantir o aporte de nutrientes essenciais ao desenvolvimento e crescimento, manter peso e altura ideal para a idade, melhorar imunidade, prevenir a desnutrição, a anemia, entre outros. Desta forma, a atual gestão não cogita descontinuidade do programa, que será mantido, no padrão atual”.
Fonte: Jornal Plural