Caso serviu de exemplo em denúncia de violação de direitos contra a Bayer na Alemanha
Cerca de quatro mil indígenas Avá-Guarani vivem no extremo oeste do Paraná sob o risco de contaminação pelo glifosato. A substância é o princípio ativo do Rondup, o agrotóxico mais vendido mundialmente para eliminar as ervas daninhas das culturas agrícolas e mesmo de espaços públicos.
Dores de cabeça, tonturas, manchas e coceiras na pele e surgimento de doenças como câncer passaram a fazer parte da rotina dos Avá-Guarani nos últimos anos. “Quando passam o veneno, bastante gente tem dor de cabeça, procuram muito mais o posto de saúde. Toda vez que passam veneno, a gente passa por uma série de coisas. A longo prazo, algumas pessoas já tiveram câncer. A gente nunca teve isso”, afirma Celso Japoty Alves, liderança Avá-Guarani e ex-cacique da aldeia Ocoy, em São Miguel do Iguaçu.
A aldeia é uma das três do povo Avá-Guarani que foi demarcada como território indígena pelo governo federal. Ainda assim, a demarcação não garantiu segurança aos indígenas.
“Estamos sofrendo esse impacto porque não tem proteção de território sobre isso. Não tem área verde. A máquina vêm passando veneno do lado das aldeias e aplicando vários agrotóxicos, atingindo nossas casas e plantações, que a gente não consegue manter. Quando passa o veneno e vem a chuva, passa pelas aldeias”, afirma Alves.
“Todas essas aldeias todas são impactadas pelo veneno, com a plantação de soja, principalmente. São duas safras aqui na região: milho e soja. A gente não tem proteção. São por volta de quatro mil indígenas sob o risco do glifosato, porque na maioria das aldeias a gente não tem proteção. Por exemplo, não tem área verde nem uma distância segura”, reforça a liderança indígena. “Em alguns locais, de um lado estão a casas e do outro as plantações de soja onde passavam veneno.”
Um levantamento de 2023 da Comissão Guarani Yvyrupá (CGY), que reúne coletivos do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra, mostrou que, com exceção de três aldeias localizadas na área urbana, todas as demais aldeias Avá-Guarani estão ao lado dos plantios.
Em alguns casos, a distância entre as plantações e as casas dos indígenas é menor do que dois metros, muito aquém do que determina a Portaria 129/2023 de uma distância mínima de 50 metros de mananciais de captação de água, núcleos populacionais, escolas, entre outros, para aplicação terrestre de agrotóxicos. O levantamento aponta ainda que as aldeias estão com cerca de 60% de seus territórios apropriados pelo agronegócio, estando apenas 1,3% ocupada por roças e moradias indígenas e 12% por áreas florestadas.
Algumas das aldeias Avá-Guarani ficam nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, a cerca de 645 quilômetros de Curitiba, capital do Paraná, e na divisa entre Brasil e Paraguai. De acordo com as organizações peticionárias, 509 dos 661 estabelecimentos agropecuários de Guaíra e 921 dos 1.209 estabelecimentos agropecuários de Terra Roxa usam agrotóxicos, predominantemente nas plantações de soja e milho.
No total, são 28 aldeias do povo Avá-Guarani na região, incluindo as três demarcadas. As outras estão no que as lideranças chamam de processo de retomada, ou seja, retorno para o território de origem. Os indígenas foram expulsos da região na década de 1970 para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, que provocou a inundação de boa parte do território Avá-Guarani.
Denúncia à OCDE
A contaminação dos Avá-Guarani pelo glifosato virou objeto de uma denúncia contra a empresa de bioquímica Bayer na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pelos impactos do agrotóxico no meio ambiente e na saúde humana.
Junto com os Avá-Guarani, outros três casos da América Latina se juntaram à denúncia, que foi feita ao Ponto de Contato Nacional (PCN) da Alemanha, onde está localizada a sede da Bayer. O órgão é responsável por promover as diretrizes da OCDE para empresas multinacionais, bem como tratar de casos a partir de mecanismos de reclamação não judicial.
O pesticida era produzido pela agroquímica Monsanto, desde a década de 1970, comprada pela Bayer por US$ 66 bilhões (o equivalente a R$ 346 bilhões, de acordo com a taxa de câmbio de hoje), em 2018, consolidando a empresa como o maior grupo de agrotóxicos e transgênicos do mundo.
Entre as organizações que peticionaram a denúncia, no fim de abril, estão a Centro de Estudios Legales y Sociales, da Argentina; a Terra de Direitos, do Brasil; a Base Investigaciones Sociales, do Paraguai; a Fundación Tierra, da Bolívia; e o European Center for Constitutional and Human Rights (Centro Europeu dos Direitos Constitucionais e Humanos, em português), da Alemanha.
As organizações relatam que “o uso intensivo de agrotóxicos contamina rios, alimentos, animais e povos indígenas. Os pesticidas são usados como arma química para confinar os povos indígenas a uma faixa de terra cada vez menor. Dependentes de rios e nascentes para acesso à água, as aldeias relatam doenças frequentes, como vômitos, dores de cabeça, abortos espontâneos, dificuldade para respirar, entre outras, principalmente entre idosos e crianças”.
Também afirmam que há “o desaparecimento de espécies silvestres de pássaros, abelhas, borboletas, animais de caça e diminuição do número de peixes nos rios e perda da capacidade de produção de alimentos devido às águas e rios contaminados, gerando impactos na soberania alimentar dessas pessoas. Existem áreas fumigadas com agrotóxicos próximas às casas ou estradas indígenas”.
Jaqueline Andrade, advogada da Terra de Direitos, explica que “as aldeias estão cercadas por grandes fazendas, com a monocultura, principalmente, da soja transgênica, com alto uso de agrotóxicos. Então, as aldeias indígenas têm denunciado um processo de confinamento territorial”, disse sobre os Avá-Guarani.
“Pela presença do agronegócio aos arredores dessas aldeias, o nível de contaminação do solo, da água e intoxicação dos indígenas, tanto a intoxicação aguda como crônica, é latente. Somado a isso o fato de que os indígenas denunciam o processo de perda da biodiversidade, perda dos cultivos para subsistência, como mandioca, milho e feijão, porque os agrotóxicos atingem essas plantas, essas plantas murcham, as raízes apodrecem e os frutos não vingam”, afirma.
Nas palavras da advogada, trata-se também de um estado de “insegurança alimentar” somado às questões de saúde latentes. Há “casos relatados de coceira na pele, febre, vômito, dor de cabeça, que são sintomas clássicos da intoxicação aguda, bem como muitos casos de depressão e suicídio. Pelos estudos que a gente já tem aprofundado, os agrotóxicos cumprem um papel relevante na contribuição do adoecimento mental”.
“Há registro de abortos espontâneos justamente por conta da deriva dos agrotóxicos. Há vários estudos que comprovam que a presença de agrotóxicos nessas áreas representa um risco justamente porque há uma influência por doenças endócrinas e cancerígenas, doenças que influenciam a contaminação, inclusive, do leite materno.”
Inclusive, há o registro de proximidade entre as fazendas e as aldeias, chegando em alguns casos a menos de dois metros da residência das lideranças indígenas, o que contraria as normativas brasileiras que estabelecem distâncias mínimas para a aplicação de agrotóxicos, seja por pulverização terrestre, aérea ou com drones. “Esses fazendeiros estão violando as próprias normativas que são criadas por órgãos ambientais ou mesmo pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, que estabelece essas distâncias mínimas.”
Além disso, em algumas situações, afirma Andrade, “os agrotóxicos são utilizados como armas químicas contra as comunidades indígenas” com o objetivo de expulsá-los de territórios em processo de retomada e de luta pela demarcação, que incluem áreas ocupadas por fazendas.
O Brasil de Fato questionou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) sobre a situação dos Avá-Guarani no oeste do Paraná. Até o momento, não houve um retorno. O espaço está aberto para pronunciamentos.
Sobre a denúncia contra a Bayer, a empresa afirmou à reportagem que não tem “conhecimento dos supostos incidentes”. “As aprovações oficiais são regulamentadas por inúmeras leis e diretrizes nacionais e internacionais. Os estudos de segurança apresentados para aprovação de pesticidas são conduzidos de acordo com as rigorosas diretrizes internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Os nossos critérios internos de segurança são ainda mais rigorosos do que os requisitos legais”, disse a multinacional em nota.
Fonte: Brasil de Fato