Entre os dias 4 e 8 de novembro, evento promoveu diversas atividades artísticas, de fomento à renda, doações de alimentos em todas as regiões da cidade
Emoção foi a tônica da cerimônia de entrega do Troféu Luiz Gama na noite da última terça-feira (7). Integrando pela primeira vez a programação da Semana da Favela, o evento reuniu dezenas de pessoas no Salão Social do SESC (Serviço Social do Comércio) no centro de Londrina.
Ao todo, foram selecionados 20 homenageados distribuídos nas seguintes categorias: tradições e ancestralidade; dignidade e coletividade; arte para todos; estética e empoderamento; políticas públicas; olhar humano; esporte, cultura e transformação; heróis sem capa: anônimos que movimentam a justiça social.
A intenção do prêmio é valorizar ações emancipatórias desenvolvidas nas periferias da cidade por colaboradores e entidades, conforme explica conforme explica Lua Gomes, coordenadora regional da CUFA (Central Única das Favelas) no Paraná e fundadora do Conexões Londrina, coletivo que organiza a Semana da Favela Londrina 2023 juntamente com o aplicativo londrinense corre.social.
“O objetivo do Troféu Luiz Gama é que a gente consiga reconhecer e identificar iniciativas, pessoas, sonhos e construções reais que são emancipadoras. E quando a gente fala sobre emancipar, estamos falando de liberdade, sobre a construção de uma nova narrativa na vida das pessoas. Existem sonhos que se tornam atividades e pessoas que se tornam referências ao longo deste caminho. Foi pensando nestas pessoas, sonhos e construções, que resolvemos listá-las. A maioria delas, heróis sem capa, como gostamos de chamar, pessoas que são anônimas para muitas, inclusive, para as que são beneficiadas pelas lutas”, conta.
A honraria referencia o advogado e poeta negro, antirracista, defensor do fim do trabalho escravizado no Brasil, Luiz Gama. Como é recorrente na histórica oficial – branca e eurocêntrica – o intelectual brasileiro foi vítima de apagamento por mais de um século, mas aos poucos, seu legado vem sendo resgatado. Em 2015, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) o reconheceu como advogado. O título foi concedido 133 anos após sua morte.
Nascido na Bahia, em 1830, filho de Luiza Mahin, mulher negra, escravizada que participou de levantes de povos africanos trazidos à força para o Brasil, Gama foi para o Rio de Janeiro aos 10 anos após ser vendido pelo pai, um invasor português, para pagar uma dívida. Sete anos depois, ele conseguiu sua libertação. Aos 20 anos, tentou frequentar o curso da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, hoje da Universidade de São Paulo (USP), mas foi impedido por ser negro. Então, frequentou as aulas como ouvinte e o conhecimento adquirido permitiu que ele atuasse na defesa de negros escravizados, contribuindo para liberdade de pelo menos 700 trabalhadores.
Na categoria “Esporte, cultura e transformação”, o projeto selecionado foi o “Passos pro Futuro”, idealizado por Vasco Perez Giufrida. A iniciativa fomenta a cultura hip-hop entre os moradores dos Jardins União da Vitória e Califórnia. Além da valorização de estilos que surgem nas quebradas e são responsáveis por escancarar as múltiplas desigualdades sociais, como rap e funk, ele também promove oficinas de “C-Walk”, modalidade de dança que surge em 1970, nos Estados Unidos e desde então tem ganhado cada vez mais adeptos pelo mundo.
Vasco pontua que sua relação com a favela é de “amor, atenção e cuidado” e já se vão 17 anos desde que iniciou sua trajetória no hip-hop como MC do grupo de rap DDF (Diretoria da Favela). Há quase duas décadas dentro de comunidades, ele destaca a importância do trabalho coletivo e da união entre as pessoas nas periferias. Também ressalta o papel das ações sociais, fundamentais não apenas para o desenvolvimento de atividades culturais, mas no enfrentamento de todas as carências cotidianas.
“Eu me dedico já há 17 anos em estar dentro das comunidades não só com a dança, o hip-hop, mas com um olhar diferente para as pessoas no corre do dia a dia, na luta, para as crianças que, muitas vezes, acabam sofrendo as consequências maiores da negligência social. A minha vida toda foi favela, sempre ajudando as favelas, geralmente, com alto índice de vulnerabilidade social e onde precisa mesmo ter ações para dar uma força para que as pessoas não percam as esperanças e sigam em frente esperando um dia melhor, trabalhando junto, como já diz o nome ‘comunidade’, todo mundo junto por um futuro melhor, próspero”, ressalta.
Vasco compartilha que recebeu a notícia da premiação com surpresa. “Me senti honrado em ganhar o Troféu Luiz Gama pelo reconhecimento da cidade, da Semana da Favela em relação ao meu trabalho que eu faço tão natural, que é algo que é a extensão do meu corpo, que é o projeto social Passos pro Futuro. Fiquei muito feliz em ter recebido essa homenagem e foi algo inédito, não esperava”, afirma.
“Heróis sem capa”
Quem também relata a alegria pelo reconhecimento é Débora Maria Proença, mulher negra, professora da rede pública de ensino há 30 anos, mestra em Ensino de Ciências Humanas, Sociais e da Natureza pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Débora, que tem se dedico à defesa de uma educação antirracista e decolonial foi escolhida para representar a categoria “Heróis sem capa: anônimos que movimentam a justiça social”.
“A minha relação com a favela é física, literalmente física. Eu sou professora, trabalho em uma escola pública e o nosso público escolar são oriundos das periferias, das favelas. E é importante que a gente tenha este vínculo não só para reconhecer as necessidades e os direitos, políticas públicas para os estudantes periféricos, mas também para manter o intercâmbio desta cultura popular, periférica, de favela, que move e mexe com os objetivos da escola. Além dos aspectos pedagógicos, no sentido das relações pessoais, interpessoais, de reconhecimento e empoderamento destes jovens dentro do espaço escolar”, assinala.
Ela acrescenta a contribuição do prêmio para integração com outros agentes e coletivos que também defendem mudanças sociais em prol de uma sociedade mais justa. “A representação deste troféu para mim, além de ser uma emoção muita grande, é pelo seu significado do trabalho que é feito não só por mim, mas várias outras pessoas e mãos dentro da educação, saúde, lazer, esporte, cultura. É muito importante saber que nosso trabalho tem tido frutos e estes frutos passam por fronteiras, não ficam só presos em um espaço físico específico, então, é uma alegria, uma honra, o reconhecimento e mais do que tudo a emoção de estar presente compartilhando este espaço com várias outras pessoas”.
Favela é potência
Conforme demonstrou o Portal Verdade, ao longo de cinco dias, a intensa e rica programação da Semana da Favela 2023 ocupou todas as regiões de Londrina com o “Festival da Favela”, “Lazer na Praça”, “Feira de Serviços”, oficinas de capacitação, entre outras atividades, que buscaram evidenciar a potencialidade das periferias, rompendo com estigmas que compreendem as comunidades exclusivamente como espaços de reprodução de violência e pobreza. Também procuraram garantir o acesso a direitos e serviços, que embora tidos como universais, ainda são ausentes para camadas da população deixadas à margem.
“A importância da Semana da Favela é abrir os olhos da sociedade para mostrar que muita coisa ainda tem que ser feita nesse campo, que muitos projetos, muitas ações sociais estão lutando e precisam desta interação e integração das empresas e sociedade em geral para manter um trabalho de qualidade, para cada vez mais dar espaço e criar oportunidades nas comunidades”, pondera Vasco.
O reconhecimento da resistência histórica dos moradores que ocupam as bordas da cidade também foi apontado por Débora. Ela classifica a Semana da Favela como “urgente, importante e necessária”. “É imprescindível darmos voz e vez para o que se produz neste espaço social e quebramos aquela ideia do senso comum de que não sem tem cultura, esporte, educação, coisas boas na favela. Nós já sabemos que a favela produz cultura, esporte, lazer, a favela é uma potência, se nos pensarmos nos termos capitalistas, a favela produz muita coisa”, observa.
A docente evidencia a presença de mulheres, mães solo, chefes de família nestas regiões, cuja luta é voltada para melhores condições de vida para seus filhos, a exemplo da busca por uma educação pública de qualidade. De acordo com levantamento do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), em 2022, a maioria dos domicílios no Brasil era chefiada por mulheres (50,8%), o correspondente a 38,1 milhões de famílias. A maior parte era liderada mulheres negras: 21,5 milhões de lares.
Ainda, acrescenta que as periferias constituem espaços como quaisquer outros, porém, devido à grande concentração de renda nas mãos de poucos, as comunidades ficam excluídas. “Temos que entender que a favela é um espaço público, de convivência como outros espaços sociais, mas tem uma diferença gritante entre a favela e outros espaços sociais, por exemplo, como a Gleba, que é a questão financeira e isso faz uma diferença muito grande no dia a dia, nas necessidades de educação, saúde, lazer, moradia. Então, destacar a Semana da Favela é também dar protagonismo aquela sociedade que precisa e merece ser respeitada”, adverte.
Roda de samba no Calçadão de Londrina encerra Semana
Resgatando a ancestralidade do samba, ritmo musical que evoca a resistência de grupos subalternizados ao longo dos séculos, a Semana da Favela Londrina 2023 chegou ao fim, nesta quarta-feira (8), com roda tributo à Zeca Pagodinho no Calçadão de Londrina (saiba mais aqui).
A celebração embalou toda população que passava pelo local ou acompanhava pelos prédios da avenida Paraná. Trabalhadores que encerravam o expediente também puderam apreciar a apresentação que iniciou a partir das 18h. Puxaram a roda as cantoras Rakelly Calliari e Marise Corrêa, acompanhadas dos músicos Rafael Fuca no violão, Cintia Paula no cavaco, Alexandre Malagutti e Vinicius Bardi na percussão.
Acompanhe trecho da roda de samba e avaliação dos organizadores:
A Semana da Favela 2023 conta com apoio institucional da Prefeitura de Londrina e patrocínio do Banco24Horas. Abaixo confira a listagem completa de agentes e associações premiados:
- Iyalorixá Cláudia Ikandayo
- Projeto Rango
- Rita de Cássia Lemos, Projeto Alices
- Marcio Teixeira Primo
- Adriana Marcolino Cordeiro Camilo, Projeto Amigas do São Jorge
- Vasco Perez Giufrida
- Cristiane de Mattos Sabino
- Associação Londrinense de Circo
- Leandro Palmerah
- Cia Clac de Teatro
- Thiago Fagner de Souza Ramalho
- DJ Damião Milianos
- Teresa Mendes de Souza
- Cassia Regine Nogueira Guimarães
- Débora Maria Proença
- Natália Alves Mafiosa
- Felipe Augusto Gandolfo da Silva
- Ismael Giachini Frare
- Rede Lume de Jornalistas
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.