A estimativa é que aproximadamente 80 mil alunos da rede estadual sejam afetados pelo processo, entre estudantes do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e do ensino médio
Nesta quarta-feira (22), estudantes, pais, professores, demais trabalhadores da educação, ocuparam o Calçadão de Londrina para rechaçar mais uma ofensiva do governador Ratinho Júnior (PSD) ao ensino público no Paraná. O ato organizado pela ULES (União Londrinense dos Estudantes Secundaristas) surge como resposta ao anúncio da SEED (Secretaria Estadual de Educação do Paraná), emitido na última semana, de que mais 127 escolas estaduais poderão ser militarizadas no estado a partir de 2024.
Atualmente, o Paraná é o estado que possui mais colégios cívico-militares no Brasil, com 206 unidades. Se a transformação de todos os colégios for aprovada mediante consulta pública marcada para os dias 28 e 29 novembro, o número pode chegar a 333 escolas cívico-militares no território paranaense. As duas cidades com mais colégios alvo dessa iniciativa são Curitiba e Londrina, com 27 e 13 colégios, respectivamente.
“A questão do ato na rua é muito importante porque com a panfletagem conseguimos atingir mais pessoas, mais pais a votarem contra. Algumas pessoas veem na internet, as redes sociais do governo passando uma ideia de que o modelo cívico-militar é o melhor, mas não é. Se procurarem melhor, vão ver que só tem notícia sobre abuso de poder”, alerta Ravila Delay, presidenta da ULES.
A liderança acrescenta que até a votação agendada para terça-feira e quarta-feira da próxima semana, a entidade permanecerá visitando as escolas e procurando espaços nos meios de comunicação para conscientizar a população sobre as consequências da militarização.
Para ela, o silenciamento dos estudantes é um dos principais reflexos do modelo. “Dentro das nossas próprias escolas que são os lugares onde deveríamos nos sentir livres, não podemos usar o que queremos. Óbvio que todas as escolas têm orientação de vestimenta, mas nos colégios cívico-militares, são proibições como anel, unha pintada, onde já se viu? É um absurdo. Estamos aqui lutando para derrubar este modelo e as notícias falsas. O máximo que conseguirmos para conscientizar as pessoas, dentro e fora das escolas, vamos tentar, no Instagram, podcast, rádio, TV e, principalmente, na rua”, observa.
Mariana Furtado, estudante do Colégio Estadual Tsuru Oguido, localizado no Jardim Santa Rita, também aproveitou o evento para denunciar as violências que ocorrem na instituição convertida em cívico-militar em 2021. A aluna, que frequenta o colégio desde antes da mudança na gestão, avalia que as expectativas de que a qualidade do ensino iria aumentar não se concretizaram, ao contrário disso, o que se vê é o aumento da repressão no cotidiano escolar, o que tem levado ao crescimento evasão e adoecimento dos estudantes e docentes.
“Acho que não mudou nada, pode perguntar para qualquer aluno, qualquer pai, professor do Tsuru Oguido, o que mudou na vida deles? A gente só foi abusado autoritariamente pelos militares que são aposentados e estão lá ganhando salário para simplesmente mandar a gente prender e cortar o cabelo”, adverte.
Análise realizada pela APP-Sindicato (Sindicato dos Professores e Funcionários de escola do Paraná), com base em dados do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), divulgados pelo Ministério da Educação, demonstra que, em 2021, no ranking das 30 escolas com maior nota no ensino médio, nenhuma é cívico-militar.
Como exemplo, Mariana compartilha que os alunos que chegam atrasados devem ficar “marchando por cerca de 10 minutos”. A prática é entendida como uma forma de castigo pelo corpo de discente que tem perdido o interesse em frequentar as aulas.
“Eu já passei mal uma vez de tanto calor, eu estudo de manhã, imagina de tarde. A quadra fica um forno. Ficamos de pé quase a primeira aula inteira, é um castigo, por isso tanta gente, falta. Uma vez nessa de chegar atrasado e ter que marchar, eu fui no tenente e falei ‘isso não está no Manual do Aluno’, e realmente não está. Ele me elogiou um monte, falou que vou ser uma ótima advogada, que ninguém faz isso, mas eu não queria isso, eu queria que ele me falasse porque a gente tem que fazer isso, não muda nada na nossa vida ficar marchando todos os dias”, relata.
“Temos que fazer sentido, descansar, à vontade, levantar a arma, mas isso não faz nenhuma diferença na minha vida. Ficar lá de pé, no calor, virando para lá e para cá, ouvindo eles reclamarem, brigar com alunos. Falam que na escola cívico-militar o aluno é mais educado, mas o estresse, revolta só piora. Uma menina teve uma crise de ansiedade no banheiro, eu fui lá ajudar, ela estava se acabando de chorar porque estava de short e foram reclamar, ela desesperada e a tenente sorrindo”, continua a estudante.
Outra consequência da militarização levantada pela aluna é o desrespeito às diversidades no ambiente escolar. “Uma vez, uma menina desenhou Exu no desenho de pais, ela é umbandista, o tenente não deixou ela colar na parede, e ficou por isso mesmo. Ele chamou ela na sala do diretor e começou a gritar que ela não podia expor a fé dela na escola sendo que tinha um monte de Jesus Cristo na parede”, conta.
O artigo 7º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 de 1996) assegura aos estudantes matriculados em instituições de ensino públicas ou privadas, de qualquer nível, o exercício da liberdade de consciência e de crença.
Pedagogia da perseguição
A estudante também relata a perseguição sofrida por ser contrária à administração do colégio compartilhada entre civis e militares. “O tenente inventou que eu saí da escola e ligou para a minha mãe. Eu fui perguntar para o diretor o que tinha acontecido e ele falou ‘você saiu para fora da escola’, sendo que eu estava na educação física, o tenente cismou comigo porque eu sou contra o modelo, ele inventa coisas sobre mim”, assinala.
Ainda, a aluna afirma que já procurou o NRE (Núcleo Regional de Educação) de Londrina diversas vezes para denunciar as violências, mas que até o momento, não teve nenhum retorno. “Eu mando texto, ligo no NRE, eles falam que vão responder, mas não estão respondendo minhas mensagens”.
Pai de Mariana, o operador de máquina Edson Aparecida acompanhou a filha no protesto. Ele reforça os danos psicológicos que a estudante tem sofrido com o assédio, o que se estende para outros colegas. “Ela está com crise de ansiedade, estamos fazendo tratamento com psicólogo, tem mais alunos buscando ajuda. Tem dias que ela não quer ir para escola devido a esta perseguição”, declara.
Relembrando o tempo em que frequentava os bancos escolares, Edson também critica a excessiva rigidez das normas das escolas cívico-militares que divergem da organização de outras escolas públicas. Para ele, o regramento com forte teor estético – cabelos presos, unhas sem esmalte, uso de fardas, proibição de acessórios, piercings e tatuagens constrange, sobretudo, as meninas.
“A gente ia para escola, estudava e vinha embora, tinha regras de obedecer ao professor, mas hoje em dia, nas escolas cívico-militares, não é só obedecer o professor, eles tiram os direitos dos adolescentes, principalmente, acho que as meninas são as que mais sofrem porque tiram o direito delas de irem para a escola arrumadas, de cabelo solto, usando um brinco, batom, não tem cabimento. Não precisa tirar isso delas”, evidencia.
Edson salienta a importância dos pais e demais responsáveis comparecem à votação. “Tem muitos pais que aceitam, mas vejo que muitos pais também não aceitam, e estes que não aceitam, que querem que os filhos vão para escola para estudar e ir embora contentes não pressionados porque talvez foi chamado atenção por um tenente, bombeiro aposentado, às vezes chega até chorando em casa, que não querem que militarize as escolas vão atrás, votem contra, convença os outros pais, se juntem o máximo possível e vamos na luta para que não militarizem as escolas, não precisa disso”, convoca.
A votação ocorrerá nos próprios colégios indicados e poderão participar professores, funcionários e pais de alunos matriculados nas instituições. Estudantes maiores de 16 anos também participam da consulta. Para votar, é necessário levar documento pessoal com foto.
Tentativa de cercear atividade sindical
Em nota publicada também nesta quarta-feira, integrantes da APP-Sindicato – Núcleo Sindical Londrina denunciaram que foram impedidos de visitar o Colégios Hugo Simas (região central de Londrina), Colégio Estadual Padre Wistremundo Roberto Perez Garcia (Parque Ouro Verde) e Colégio Estadual Dr. Lauro Portugal Tavares (Rolândia). Desde o comunicado da SEED, o coletivo tem se dirigido às escolas com o intuito de conversar com as comunidades escolares sobre os impactos da adesão ao modelo cívico-militar como o fim do ensino noturno e da educação de jovens e adultos, conforme pontua Rogério Nunes, professor de Sociologia da rede estadual de ensino e secretário de assuntos jurídicos da APP-Sindicato Londrina.
“Nós temos feito o trabalho sindical e, infelizmente, neste processo de diálogo com a comunidade por ordem direta do NRE de Londrina, a presença da APP no seu direito constitucional de conversar com a categoria tem sido barrado. Isso demonstra um pouco, a concepção do projeto de escolas cívico-militares. Só é possível uma concepção, a concepção do ‘sim’, e nós no trabalho sindical que temos colocado para a categoria e comunidades escolares, os prejuízos desta proposta como o fechamento do ensino noturno e da EJA, temos tido nosso acesso negado”.
Levantamento do jornal Plural, identificou que governo Ratinho Júnior já fechou 76,8 mil vagas de ensino noturno no estado, sendo 13 mil apenas nas 207 escolas que já foram militarizadas.
O professor avalia que, apesar de causar preocupação, a atitude antidemocrática não tem impedido a tentativa de diálogo com a categoria. “A Constituição garante o trabalho sindical no Artigo 8º, e apesar do caráter autoritário do projeto, ele permite que as comunidades escolares sejam consultadas. No processo democrático, ambas as partes precisam apresentar os pontos de vista. Nós continuaremos o nosso trabalho, estamos hoje aqui no ato promovido pelos estudantes, estamos fazendo panfletagem e nos dias da consulta, estaremos nas escolas defendendo nosso ponto de vista que é o voto não”, complementa.
Professor Rogério explica que as tentativas de cercear a atividade sindical têm ocorrido de maneira informal. Além disso, o docente informa que a APP-Sindicato está levando a queixa aos órgãos competentes como o Ministério Público do Trabalho. “Nós perguntamos se há um documento, uma ordem, registro, mas como é uma prática antissindical, ninguém na escola assume a responsabilidade, só dizem que só receberam uma ordem do NRE que a presença do sindicato deve ser proibida ou limitada. Isso não tem nos impedido, apesar dessa orientação, temos entrado nas escolas, ido nos intervalos, feito a panfletagem, ou seja, exercido nosso direito. Como eu não tenho argumentos para convencer a comunidade dos benéficos da proposta, eu aposto na lógica do autoritarismo e da imposição”, indica.
Bruno Garcia, secretário de organização da APP-Sindicato Londrina, destaca a reiterada estratégia da gestão Ratinho Júnior de tentar aprovar medidas antipopulares em períodos próximos ao recesso letivo. Ofensiva similar foi realizada em dezembro de 2022, quando a SEED comunicou a extinção da disciplina de Arte dos anos finais do ensino fundamental (relembre aqui).
“O governo é muito astuto, ele coloca sempre estas pautas logo no final do ano, no encerramento do trimestre, quando o professor, o funcionário de escola já está muito cansado para a mobilização, onde a APP-Sindicato também vai encerrando as atividades com a própria categoria, e os estudantes também vão encerrando, eles stão preocupados com suas notas, processos de recuperação. Então, ele [Ratinho Júnior] se aproveita da possível não mobilização, mas tudo aquilo que ele acha que vai conseguir, a gente dá uma invertida”, considera.
O dirigente ressalta que a entidade não é contrária ao trabalho desempenhado pela Polícia Militar, mas defende que tal força não deve estar presente nas escolas. “Nós não somos contra a Polícia Militar do estado do Paraná, às vezes, a gente chega em algum lugar e encontra algum policial e falam ‘poxa, o sindicato está contra a gente’. Não é sobre ser contra pessoa X ou Y, mas contra o militarismo. Lugar de militar é no quartel, na segurança pública, nas ruas. Olha o índice de violência do estado do Paraná, então, essa polícia não deveria estar dentro da escola”.
Medida eleitoreira
Para o sindicalista, Ratinho Júnior tem se aproveitado do aumento dos ataques a escolas ocorridos ao longo deste ano para manipular a opinião pública. “É uma medida eleitoreira porque ele se aproveitou que este ano tivemos infelizes ataques como o de Cambé, e usou do apelo popular pedindo segurança pública e a população acredita que tendo um policial dentro da escola vai resolver, mas a gente apresenta dados que dentro das escolas cívico-militares aconteceram abuso sexual, alunos apanharam”, pondera Bruno.
Em sua avaliação, trata-se de uma medida eleitoreira do atual mandatário do Palácio do Iguaçu, que tenta colocar-se como oposição ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em julho deste ano, o governo federal publicou decreto que revoga o PECIM (Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares), criado em 2019, sob a gestão de Jair Bolsonaro (PL). Com a medida, a decisão da manutenção das escolas cívico-militares ficou a cargo dos governadores. Caso optem por manter o modelo, os custos devem ser arcados por recursos dos próprios estados.
“Ele [Ratinho Júnior] mostra a que veio, dá continuidade ao projeto bolsonarista destituído pelo governo Lula e quer se colocar como oposição. No estado do Paraná não só continua como fomenta a criação de mais escolas cívico-militares porque ele quer destacar a oposição. Ele usa da população como massa de manobra para poder se destacar como um pré-candidato à presidência da República e está utilizando de todas as ferramentas que o bolsonarismo usou, uma delas é a prática antissindical”, analisa.
“Nós estamos fazendo um apelo à comunidade para que não seja massa de manobra do governo. Se já foi destituído pelo governo federal era porque não era tão bom assim, então, é um apelo para a sociedade, pais e responsáveis menores de 16 anos para que compareçam e votem ‘não’ e os estudantes acima de 16 anos votem não”, reivindica.
Acompanhe abaixo as escolas vinculadas ao Núcleo Regional de Educação de Londrina que passarão por consulta pública para conversão ao modelo cívico-militar:
Alvorada do Sul: Colégio Estadual Anastacio Cerezine
Cambé: Colégio Estadual Andrea Nuzzi; Colégio Estadual Attilio Codato; Colégio Estadual Helena Kolody e Colégio Estadual Manuel Bandeira
Londrina: Colégio Estadual Carlos de Almeida; Colégio Estadual Célia Moraes de Oliveira; Colégio Estadual Professor Doutor Heber Soares Vargas; Colégio Estadual Hugo Simas; Escola Estadual Humberto Puiggari Coutinho; Colégio Estadual Lucia Barros Lisboa; Colegio Estadual Professora Margarida de Barros Lisboa; Colégio Estadual Nilo Peçanha; Colégio Estadual Olympia Morais Tormenta; Colégio Estadual Patrimônio Regina; Colégio Estadual Professora Rina Maria de Jesus Francovig; Colégio Estadual Thiago Terra e Colégio Estadual Padre Wistremundo Roberto Perez Garcia
Rolândia: Colégio Estadual Dr. Lauro Portugal Tavares
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.