Leio, em toda mídia social que importa, que a polícia paulista matou 14 pessoas no Guarujá, em operação descortinada após um militar ter sido assassinado. Passado o abate o governador dos bandeirantes disse estar feliz com sua polícia.
Em momentos de desalinho valorativo, onde as narrativas substituem a vida em preto e branco e se contentam em estabelecer uma pauta de interesses mercadológicos, a mais valia da vida se desloca da exploração da força de trabalho para a mercantilização total do homem. Hoje o ser humano não é senão um mecanismo operacional de interesses do capital e nada mais.
Assim é que as disputas paridas das demandas de ódio sobem o tom e vem desconstruindo a equação valorativa dos povos no novo mundo que se anunciou, lastreando falas como a do (des)governador de São Paulo que se contenta com a morte de seus governados.
Há que se contrapor o estupor, sob pena de banalizarmos o mal. O assassínio de quem quer que seja agride e diminui a todos. De consequência o assassinato do policial tem que ser combatido ao limite de nossas possibilidades, nos lindes da conjuração do poder de estado – no arcabouço desenhado pelo devido processo legal.
Este entendimento não demandaria maiores questionamentos. Há, todavia, um certo ‘o que será que será, que está no dia a dia dos bandidos’, que não quer calar e está alinhando o ódio discursivo aos valores de estado.
O estado, de sua vez, não é sub-rogado dessa miséria moral que desliga seu preceito ético mínimo ao tempo em que ausculta a selvageria da existência nas esquinas abandonadas de sentimento, na automação do homem – a polícia não está para chacinar, e sim para servir e proteger; ainda que um dos fardados tenha sido assassinado.
Chacina, ademais, não responde tragédia contra a vida de um agente policial, ainda que o governador se diga satisfeito com sua polícia e discurse o óbvio ululante de que a morte do agente policial tem que ser vivenciada na responsabilização do assassino.
Ao contrapor a morte de seu agente aos 14 corpos caídos no Guarujá, vitimados por sua corporação, tarcisio convoca a mais rasa e vil das equações, justificando a ação assassina de sua polícia no corpo sem vida de seu policial.
Não se faz um governo sob o sangue vingativo que a temeridade da fala do governador resgata. Esse modelo não vai além de pérolas lançadas aos porcos e alimenta o que há de pior em nós. Seja por não respeitar o assassinato do militar, seja por legitimar o exercício livre das próprias vontades, ao arrepio do contrato social disciplinar exatamente o contrário.
Assim é que tarcísio banaliza a dor dos irmãos de farda, ao elevá-la a condição fatorial de exculpação (ético/moral) para a chacina que a PM praticou, ao tempo em que manda uma mensagem totalitária: não se metam com a minha polícia que ela seguirá matando – não importa quem, desde que pobre e de comunidade!
A polícia paulista não merece essa miséria moral, esse nada ético, esse zero civilizatório que faz da farda um fantoche das narrativas de seu governador. Isso tudo sem qualquer respeito ao cadáver do policial…
Há um ‘Paint it black’ sobrevoando o totalitarismo da fala do governador dos paulistas que nos diminui a todos, naquilo que a vendeta subliminar e expressamente abraçada na fala equívoca desperta o que há de pior em nós.
Não, não pode haver qualquer contentamento sobre 14 corpos empilhados, naquilo que estes cadáveres informam estatisticamente a maior chacina dos bandeirantes desde o episódio demoníaco do Carandiru.
Por mais que eu queira a porta vermelha pintada de preto, o sangue não colore a história, ainda que alimente narrativas acerca daquele destemido governador paulista que enfrentou à bandidagem ao lado (direito) de sua valorosa polícia militar.
O fato de nenhuma das 14 vítimas da matança ter rosto (notadamente pós violência) não alivia em nada a sanha vingativa que a PM paulista abraçou. São histórias de vida violentamente interrompidas sem qualquer motivo justo, sem que uma circunstância valorativa mínima valesse o outro lado da moeda de uma peste imaginária, cujo combate está se dando concomitante os enfrentamentos do modelo fascista vencido na eleição presidencial próxima passada.
Não há condição, explícita ou implícita, que nos sub-rogue aos valores totalitários dessa gente que vive só para si. Enquanto Cristãos que dizemos ser é demanda nossa combater quem fomenta a morte além e aquém do arco íris. O estado não pode ser visto enquanto masmorra pessoal de quem quer que seja.
Há vida além da dor e que o monitor segure seus cães. Ainda que a morte esteja à nossa espreita, o verdugo da existência não age em nome do estado.
Servir e proteger não cabe na mesma equação onde alocaram a chacina. Chega de sangue na sarjeta da vida, naquilo que existir comporta questionar a que será que se destina…
Ademais, não há nada que responda a dúvida existencial fora dos postulados ético mínimos de formação do estado, suposto que ao entregar pequenas porções da própria liberdade individual em favor do convívio, o homem contratou paz e aceitação – e não vingança e violência.
Assim é que a narrativa vomitada por tarcísio (satisfação com sua PM) é a quintessência de sua insatisfação com a vida e os valores cristãos que o ocidente professou um dia.
Outro tanto, esse estado totalitário que constrói uma narrativa de resposta estatal sobre 14 corpos assassinados passa a milhas e milhas do estado de bem-estar social que tanto buscamos; tampouco se pode dizer que é um estado Cristão (ainda que laico, na medida em que a laicidade do estado não conflita com o ideário da cristandade de seus agentes), na medida em que a chacina contraria os postulados de Jesus.
No ponto, bom lembrar que ser cristão não nos torna especiais – se assim pensássemos, cristãos não seríamos, eis que o Cara era despojado de qualquer sentimento de vaidade e sua mais profunda reflexão encaminha a metáfora existencial do amai-vos uns aos outros.
Daí que ser especial e relevante, notadamente em dias de mídia social e tornozeleira eletrônica, é valorizar o outro, não enquanto narrativa exógena, mas sim na conta de um valor arraigado que aponte caminhos e construa pontes.
O homem precisa deixar de estar e passar a ser. Há uma grita nesse sentido comandada pela própria Terra, machucada e ofendida pela equação de exploração, cunhada na ideia de propriedade privada que, há séculos, vem sublimando a condição humana.
A sombra que encaminha a escuridão é a mancha que se alimenta de espaços de pequenas idiossincrasias que ofendem o preceito ético mínimo do estado, negando a conurbação que deveria somar pessoas em lugar de chaciná-las em comunidades desprotegidas.
As diferenças gritam ao vento enquanto os financeiramente bem-nascidos, que não tiveram a demanda de morar em comunidade, se acreditam protegidos da sanha vingativa da polícia de tarcísio. Ledo engano, na medida em que a dor que legitima os tiros sobre os 14 corpos, pode voltar a ser sentida e, no outro lado, pode estar a própria elite econômica bandeirante.
Ai a onça beberá a água. O que nas comunidades soa como satisfação do governador, sob os farialimers se transformará em indignação que levará madame a levantar seu bumbum torneado do sofá e ir protestar, montada em seu manolo blahnik e vestindo chanel…
Nossa indignação deve demarcar a medida da violência que vitimou os 14 moradores do Guarujá e o policial militar. Não podemos passar pano para tarcísio, naquilo que sua fala elogiosa da pm que chacinou 14 pessoas em vingança da morte de um companheiro de farda, faz severa apologia fascista.
A não? Então me responda: ele estaria satisfeito com sua pm se a chacina fosse na faria lima? Tristes e imbecilizados trópicos, onde tarcísio (des)governa os bandeirantes!
João dos Santos Gomes Filho
Para o Canto do Locco
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.