Venho de uma semana mágica tirada em Buenos Aires com Desirée (o amor de minha vida), ocasião em que comemorávamos a vida e nosso 32º (pobre de você amada) aniversário de casamento. Ganhei minha passagem da Gol (obrigado) e a dela abraçamos.
Noves fora a forma como fomos, o importante é que lá estivemos após uma distância de 18 anos e Buenos Aires segue ainda mais bela, renitente feito os passos de um tango – que os especialistas (como a rede mundial fez aumentar a tantada de especialistas) insistem em dizer serem três: ao lado, em frente e o passo atrás.
Noves fora ainda o tango (que em 2009 foi elevado à categoria de Patrimônio Oral e Imaterial da humanidade pela UNESCO), não posso falar de Buenos Aires sem lembrar cinco paixões que me acompanham pela vida.
A primeira delas é Ricardo Darin, o excepcional ator argentino, a quem sigo com atenção e especial relevo há muitos anos. Darin vem de recente atuação (como de costume estupenda, na medida em que Ricardo não é um ator. É uma instituição à serviço da arte de atuar) em um filme que deve ser visto ao menos uma vez por ano, até o final de nossas vidas: Argentina 1985…
A película dirigida e coescrita por Santiago Mitre conta a história verídica de dois promotores públicos – Júlio Strassera (Ricardo Darin) e Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani) – que, com a derrocada do regime de exceção instaurado pela sangrenta ditadura militar portenha, colheram provas e denunciaram à um Tribunal civil as juntas militares da mais sangrenta das ditaduras da terra do rio da Prata.
Pouco se falou (até porque a película é extraordinária em si), mas o julgamento das juntas militares argentinas é marco histórico que recepciona o primeiro julgamento no mundo por um tribunal civil em desfavor de comandantes militares que usurparam e malferiram o poder, desonrando a farda que vestem.
Com a reconquista da democracia, o julgamento só foi possível graças ao decreto Presidencial 158, de 13 de dezembro de 1983, assinado por Raúl Alfonsin, que deu ‘start’ ao processo judicial, com a instauração da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP).
A CONADEP forneceu elementos probatórios em seu relatório final, prosaicamente intitulado ‘Nunca Mais’. Esse elóquio viabilizou aos valorosos (valentes ficou menor após Reinaldo Azevedo assim se referir a malta dos procuradores lavajatistas) promotores ofertaram a denúncia à desfavor das juntas militares.
A coragem e independência dos Promotores argentinos, todavia, dá a medida de um mundo melhor e mais justo que, nos contornos da película à que Darin dá vida, faltou por aqui. Strassera e Ocampo explicam porque na Argentina os crimes da ditadura foram julgados e punidos, enquanto moro, dallagnol, o aplicativo Telegram e os ‘filhos de Januário’ esclarecem porque no Brasil houve uma lei que anistiou a barbárie militar contra os brasileiros.
Noves fora, o julgamento histórico teve início em 22 de abril de 1985, com as audiências avançando até agosto do mesmo ano. O contraditório produziu cerca de 500 horas de audiências, onde 839 testemunhas forneceram elementos mais que robustos na chamada ‘Causa 13’, resultado na condenação das juntas militares.
A sequência de minhas paixões portenhas convoca Astor Piazzolla, o maestro de tutti maestro, ator da própria letargia, ritmista das cousas todas, encimando os movimentos e contendo as instancias por onde escoam as emoções. Pense um vagalume em uma noite escura. Uma fada flutuando pelo pirlimpimpim da vida em uma noite azul. São os movimentos que Piazzolla me traz à lembrança ao contrapor a tragédia da vida ao nonsense da vivência.
Outro tanto, pare e ouça o bandoneon sugerindo um caminhar ébrio pelas docas de um cais imaginário, ao abandono de uma história (triste) que sobreleva a descaracterização enevoada do tango originário, pelo viés do sentimento de um gauche que colou o firmamento na música. Adiós Nonino (que Astor fez para seu falecido Pai) seria o encontro de céu e mar, mediante uma tormenta em um dia gris.
Sem qualquer delonga, ouça tango. Ouça Piazzolla. A vida se explica e as emoções abraçam as ausências, colando o viver no querer. Seguindo em frente, Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (ou simplesmente Borges). O fabuloso escritor que elevou a literatura fantástica a um patamar até então inimaginável para sua época, desnudando o ‘caos que nos governa’ em compasso com a irrealidade da literatura feito um todo. Foi Borges o pai da história curta onde se redimem sonhos, bibliotecas, cafés, labirintos.
Borges escreve como fala – e la nave vá…
Feliz de mim que pude cumprimenta-lo no Café La Biela (Av Presidente Manuel Quintana 596, Recoleta, Buenos Aires), onde ocupa a mesma mesa há três décadas, em companhia de seu amigo e parceiro de literatura Bioy Casares, enquanto estátuas que demarcam a memória do povo argentino.
Caminhemos um bocado mais e, voilà: Joaquin Salvador Lavado Tejón – Quino, o papá de Mafalda.
Falar de Quino é muito difícil para mim, quer na conta de sua genialidade que me engalana, quer porquê me assombra essa sorte de mago que desnuda em críticas ácidas uma sociedade então totalitária, pelos olhos de uma ‘ninha’ de seis anos.
Mafalda, seu alter ego, é a mais genial de todas as obras gráficas desta natureza, justamente pelo nonsense racional que equilibra, pela teia da vida, o tecido das contradições. Quino sabia o que desenhava e o que Mafalda falava.
Encerrando, minha derradeira paixão argentina é Diego Armando Maradona, de quem não vou dizer quase nada além de ‘la mano de Dios’. Obrigado Diego, pela vida que aflorou de teus dribles latinos – siempre com la surda.
Registradas e reverenciadas as paixões portenhas de um homem, se faz tempo de retratar um passado que teima ser maior que a vida. Assim é que torno falar de Buenos Aires para repartir um segredo com vocês: não há mais na vida que amar o entorno das paixões e, nesse compasso, a própria vida.
Urge descomplicar as querenças do viver e prestar mais atenção às demandas que o sentimento trás, cerzindo no tecido das estações uma postura empática que aloque o outro enquanto destinatário de nossas melhores emoções (ainda que de aluguel), humanizando a esteira dos acontecimentos passados e vindouros – afinal, somos todos iguais essa noite.
Encerrando, Adeus Rita Lee Jones de Carvalho, obrigado por tudo, em especial pelo Fruto Proibido e pela salvaguarda da irreverência que, de tua contestação constante, fez emergir o monstro da lagoa.
João dos Santos Gomes Filho
Para o Canto do Locco
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.