Já são mais de 7,3 mil reclamações de trabalhadores por serem proibidos de usar o banheiro durante o expediente. Número de denúncias aumentou durante o governo Bolsonaro
Apesar dos avanços tecnológicos, os trabalhadores e as trabalhadoras seguem enfrentando dificuldades no uso de banheiro no trabalho, piorando as condições de saúde. Há problemas de incontinência, pressão por produtividade e casos de assédio moral que atentam contra a dignidade humana.
Desde 2014, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) recebeu 7.309 denúncias referentes a irregularidades em banheiros em locais de trabalho. O número representa uma média de duas reclamações por dia, segundo levantamento realizado a pedido do portal UOL no início deste mês.
Conforme reportagem publicada no último domingo (11), há situações de banheiros sujos, inadequados, insuficientes, trancados, até sem portas ou distantes dos postos de trabalho onde os funcionários e as funcionárias devem ficar.
Denúncias aumentaram no governo Bolsonaro
O levantamento mostra o número de denúncias por ano, desde 2004, incluindo dados parciais até junho deste ano. As queixas dispararam no governo Bolsonaro (PL), que se elegeu dizendo que o trabalhador devia escolher entre ter emprego ou ter direitos
Para o presidente da CUT-RS, Amarildo Cenci, “não foi à toa que muitos empresários apoiaram e financiaram as campanhas do ex-presidente. O levantamento é também o retrato da perversidade da reforma trabalhista do golpista Michel Temer (MDB), em 2017, que retirou vários direitos dos trabalhadores, precarizou ainda mais os empregos e empobreceu a classe trabalhadora”.
“Os dados revelam que a modernização das relações de trabalho, tão propagandeada pelo empresariado, ainda está muito longe de ser realidade. É inadmissível que em pleno século 21 os trabalhadores e as trabalhadoras não possuam liberdade em muitas empresas para o uso do banheiro no trabalho para satisfazer suas necessidades fisiológicas”, afirmou. “Queremos respeito, direitos e trabalho decente”, ressaltou Amarildo.
Fiscalização e autuação do MTE e MPT
Após as denúncias, os auditores do MTE e do Ministério Público do Trabalho (MPT) fiscalizam o local. Se as irregularidades forem confirmadas, eles autuam e o MPT abre ação civil pública contra os empregadores ou firma um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
O MTE soma 91 infrações em relação a casos específicos de trabalhadores impedidos de usar o banheiro.
As autuações se referem a situações em que os trabalhadores tiveram o acesso ao banheiro dificultado ou impedido pelas empresas.
Restrições e condições inadequadas de trabalho
Em maio, um funcionário do Burger King, em Aracaju, reclamou nas redes sociais que foi proibido de sair de seu posto de trabalho e urinou no chão. A rede lamentou e disse que iria apurar o que aconteceu.
O caso está sendo acompanhado pelo MTE e MPT. Os documentos apresentados pela empresa estão em análise e o prazo para conclusão do relatório de fiscalização é setembro.
Já o MPT soma 47.842 denúncias relativas a condições sanitárias inadequadas em locais de trabalho desde 2018.
Esse total, porém, não é exclusivamente sobre as restrições no uso do banheiro. Há também queixas acerca das condições impróprias de cozinhas e alojamentos.
As instituições possuem canais diferentes para receber denúncias, sendo que os trabalhadores podem fazer queixas em ambos.
O MTE passou a registrar denúncias online somente em 2020. Depois disso, os números aumentaram. Restrições ao uso do banheiro são tratadas como prioridades junto com os casos de trabalho escravo, trabalho infantil e falta de pagamento porque impõem riscos ao trabalhador.
“Presenciei cadeiras sujas de urina e de sangue [de menstruação] pela falta do direito a ir ao banheiro”, afirmou o auditor fiscal do MTE, Thiago Laporte.
Instalações distantes, sem portas e até sem assento
Há duas Normas Regulamentadoras (NRs) editadas pelo Ministério do Trabalho que asseguram o direito à ida ao banheiro e às condições adequadas.
A NR-17 garante a saída dos postos de trabalho para a satisfação das necessidades fisiológicas dos trabalhadores. Já a NR-24 garante condições, para que os trabalhadores possam interromper suas atividades para utilização das instalações sanitárias.
Além disso, a ausência ou restrição do uso do banheiro a funcionários fere o princípio da dignidade da pessoa humana. “São casos graves que podem provocar adoecimentos físicos, psicológicos e fisiológicos”, alerta Thiago Laporte.
Entre as irregularidades mais recorrentes estão a distância entre o posto de trabalho e as instalações sanitárias, a dificuldade no acesso e a quantidade de unidades inferior ao necessário.
Existem ainda funcionários com hierarquia superior que detêm chaves de banheiros como forma de controle do uso.
Já entre os casos mais graves, estão a retirada de portas e assentos sanitários, a fim de reduzir o tempo de permanência do trabalhador no local.
Assédio moral
O advogado especializado em Direito do Trabalho, Alexandre Rosa, disse que muitas empresas utilizam formas indiretas de controle ao uso do banheiro, como o tempo que um funcionário permanece online no sistema da empresa.
As irregularidades sanitárias podem se caracterizar como dano ou assédio moral.
“Se for um fator de pressão, que causa perseguição sem considerar que o funcionário possa estar passando por uma condição especial ou problema de incontinência, pode se configurar como assédio”, explica a coordenadora de Defesa do Meio Ambiente de Trabalho e da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora do MPT, Márcia Kamei Aliaga.
Pressão pela produtividade
Centrais de atendimento, caixas de lojas e supermercados, atendimento de redes de fast food e telemarketing e indústria são as áreas que mais costumam registrar irregularidades sanitárias, segundo os auditores do MTE.
“A organização das empresas reflete a adequação das instalações sanitárias”, salientou Márcia. “Na indústria, onde a saída de um funcionário pode impactar na linha de produção, é preciso contratar funcionários substitutos. O trabalhador não é uma máquina.”
A intensificação da terceirização acentuou a precarização do trabalho. “A terceirização joga a responsabilidade para empresas que têm menos condições de lidar com esses custos e lançam mão de estratégias agressivas”, frisou a especialista do MPT.
Os auditores indicam que o impedimento do uso de banheiros para mulheres pode ter implicações ainda mais severas. “O impedimento do uso do banheiro para funcionárias grávidas pode ocasionar a infecção urinária, que é um fator abortivo”, afirma Márcia.
Três acordos conquistados em Novo Hamburgo
Em junho de 2021, durante a pandemia, uma gestante de 19 anos urinou nas calças, enquanto trabalhava na linha de produção da Zenglein, uma empresa no setor calçadista de Novo Hamburgo, no Vale dos Sinos, na região metropolitana de Porto Alegre.
“Ela pediu para ir ao banheiro três vezes e teve o direito negado”, disse a presidente do Sindicato dos Sapateiros e Sapateiras de Novo Hamburgo, Jaqueline Erthal. A jovem trabalhadora voltou para casa a pé e com a roupa molhada em um percurso de 40 minutos.
“Constrangimento ilegal, constrangimento medieval ou bárbaro, essa é a verdade”, escreveu o jornalista e colunista Cláudio Brito no jornal NH.
Jaqueline afirmou que, na ocasião, não foi feita a troca pelo “funcionário coringa”, aquele que substitui o trabalhador que se ausenta para ir ao banheiro.
Após protestos, o sindicato negociou e fechou um acordo com a Zenglein, aprovado em assembleia dos funcionários, para que todos os trabalhadores e todas as trabalhadoras tenham o direito de usar o banheiro do início ao fim do expediente, incluindo a contratação de um funcionário substituto para cada grupo de 25 sapateiros ou sapateiras.
Agora, segundo Jaqueline, há também fiscalização a cada dois meses pelo sindicato junto aos trabalhadores e às trabalhadoras, conforme o acordo assinado. A ideia é estender essa conquista para a convenção coletiva da categoria.
Enquanto isso não acontece, mais duas empresas fecharam acordos semelhantes com o sindicato: Calçados Sommavilla e Redeplast, ambas em Novo Hamburgo.
Metas absurdas para trabalhadores de call center
A organização do trabalho nas empresas de telemarketing é marcada pela pressão para atingir metas, ritmo acelerado de trabalho e rigor na cobrança e controle para o uso de sanitários. Isso tem gerado assédio moral organizacional.
Quase 80% dos operadores de telemarketing são mulheres, que sofrem com essa política desumana das empresas.
Pesquisa realizada pelo Sindicato de Trabalhadores em Telecomunicações do Rio de Janeiro (Sinttel-Rio) junto às mulheres indicou o uso dos banheiros como um dos principais problemas para as trabalhadoras de call center.
Para manter a produtividade e atingir as metas abusivas de produção, elas acabam não fazendo pausas nem saem do posto de trabalho.
“Não entendem o tempo necessário para troca de absorvente e a demora neste processo”, disse uma trabalhadora que respondeu a uma pesquisa feita pelo sindicato.
“São metas absurdas, são abusivas demais”, revelou uma ex-operadora.
Uma outra operadora contou que, durante a gravidez, teve uma infecção urinária porque a empresa controlava o tempo de ir ao banheiro. “Você tem cinco minutos para ir ao banheiro”, denunciou.
“Os mecanismos adotados de controle do uso do banheiro são sinais visíveis das exigências cada vez maiores de produção das empresas, na busca frenética e insaciável de aumentar os seus lucros, ignorando muitas vezes os direitos humanos e a dignidade dos trabalhadores e das trabalhadoras”, concluiu o presidente da CUT-RS.
Fonte: Redação CUT