Domicílios comandados por mulheres negras estão três vezes mais expostos à fome do que aqueles chefiados por homens brancos
Nesta segunda-feira (26), a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), divulgou novos dados oriundos do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (VIGISAN). Os primeiros levantamentos foram publicizados em junho de 2022. Nesta edição, são evidenciados recortes responsáveis por denunciar que o grau de exposição à fome está associado as discriminações racial e de gênero.
De acordo com o estudo, no ano passado, 33 milhões de brasileiros não tinham o que comer, ou seja, estavam em situação de insegurança alimentar grave. A maior parte dos domicílios sem acesso a alimentos está concentrada na zona rural (18%). Considerando os quantitativos populacionais, são cerca de 27 milhões de pessoas passando fome nos centros urbanos e quase 6 milhões no campo.
Aproximadamente, uma em cada cinco famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pardas ou pretas no Brasil sofre com a fome: 17% e 20% respectivamente. O valor corresponde ao dobro em comparação aos lares chefiados por pessoas brancas (10%). A situação é ainda mais grave quando se leva em conta o gênero: 22% dos lares chefiados por mulheres autodeclaradas pardas ou pretas sofrem com a fome, quase o dobro em relação a famílias comandadas por mulheres brancas (13%).
“Precisamos urgentemente reconhecer a interseção entre o racismo e o sexismo na formação estrutural da sociedade brasileira, implementar e qualificar as políticas públicas tornando-as promotoras da equidade e do acesso amplo, irrestrito e igualitário à alimentação”, afirma a professora Sandra Chaves, coordenadora da Rede PENSSAN.
Fome é maior no Norte e Nordeste
As desigualdades regionais perceptíveis em diferentes áreas como nos rendimentos médios, acesso a saúde, educação, saneamento básico, também estão presentes na oferta dos alimentos. Com base na investigação, Norte e Nordeste, abrigam o maior percentual de famílias passando fome no país.
Juntas, as duas regiões possuem cerca de 17 milhões de pessoas com restrição muito grave de alimentos, ou seja, mais da metade do total de brasileiros nesta condição. O Centro-Oeste é a localidade com o menor índice: pouco mais de 2 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar. Na sequência, está a região Sul, com aproximadamente 3 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave.
“Com a desvalorização do real, é muito mais vantajoso para o agronegócio vender comida do que alimentar o próprio povo brasileiro. O reflexo disso é de que aqui a comida está custando muito caro e estas pessoas estão ganhando muito com a exportação”, aponta Naomi Mayer, cientista social e cozinheira.
A indústria brasileira de alimentos e bebidas registrou aumento de 16% no faturamento e de 2,5% na produção em 2022 em relação a 2021. No ano passado, a receita do setor chegou a R$ 1,075 trilhão, somando exportações e vendas para o mercado doméstico. Os dados são da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA).
Frente a este cenário, ela argumenta que “a fome não é uma questão de falta de comida”. A pesquisadora explica que, embora a pandemia do novo coronavírus tenha acelerado o regresso do Brasil ao mapa da fome, desde 2018, os índices de insegurança alimentar têm aumentado. De acordo com ela, o problema vem de antes e é reflexo da falta de políticas públicas, aumento do desemprego, empobrecimento da maioria da população e crescimento da inflação que atinge, principalmente, o bolso das camadas mais pobres.
“É possível produzir comida de verdade, sem agrotóxico. Mas a agricultura familiar que não usa agrotóxico é subjugada. O governo dá muito mais subsídio para a grande agricultura, para quem usa agrotóxico e fica muito difícil para o pequeno produtor e para convencer as pessoas de que é possível produzir comida sem veneno, mas é”, analisa.
Maior escolaridade não é garantia
Ainda, com base no mapeamento, uma em cada três mulheres negras, com oito ou mais anos de estudo, sofre com insegurança alimentar moderada ou grave (33%). Em comparação a mulheres brancas com os mesmos anos de estudo, a taxa é quase o dobro: 17% dos lares chefiados por estas últimas não possuem acesso a alimentos.
Já famílias lideradas por homens negros com maior escolaridade em situação de vulnerabilidade alimentar representam 21% e as por homens brancos: 9%. Observamos, portanto, que lares comandados por mulheres negras estão três vezes mais expostos à fome do que aqueles chefiados por homens brancos.
Lares com crianças possuem menos comida na mesa
Considerando o índice de segurança alimentar, ou seja, acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes, domicílios chefiados por homens brancos atingem 52%. No entanto, se olharmos para a realidade das mulheres, o contingente cai para 39% entre mulheres brancas e apenas 21% entre mulheres negras.
Impactos do desemprego
Na condição de desemprego, a insegurança alimentar grave foi mais frequente em domicílios chefiados por mulheres negras (39%) e por homens negros (34%). Quando a pessoa responsável pelo domicílio tinha emprego formal, e a renda mensal familiar era superior a 1 salário mínimo per capita (SMPC), a segurança alimentar se fez presente em 80% dos lares chefiados por pessoas brancas e em 73% dos chefiados por pessoas negras, conclui o estudo.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.