Em entrevista exclusiva, o ator e escritor cobra mais debate sobre a importância do combate aos discursos de ódio
O debate sobre os limites do humor e da liberdade de expressão é parte do cotidiano do ator e escritor Gregório Duvivier. Como membro do coletivo de humoristas Porta dos Fundos, que completou dez anos de estrada em 2022, ele viveu na pele as transformações sociais que trouxeram esse debate para o centro da agenda da sociedade brasileira.
É desse lugar que ele fala ao defender que o debate sobre o tema na sociedade brasileira parte de um vício antigo que é hoje alimentado pela extrema-direita: o foro privilegiado, que faz com que quem deveria ter mais responsabilidade com suas falas seja mais protegido pela legislação.
“Eu acho que foro privilegiado é o do povo, é do cidadão. Esse sim é privilegiado, justamente porque não tem o alcance, o respaldo legal, o advogado, ele deveria ser mais protegido pela legislação para dizer o que ele pensa”, sustenta Gregório.
“Só que no Brasil é o contrário. A única pessoa que tem respaldo para dizer o que pensa é uma pessoa que já tem advogados para defender o que ele diz, já tem seguranças para protegê-lo fisicamente do que ele diz. Então acho que tem uma inversão no Brasil, na qual o discurso de ódio é liberado para parlamentares. E se não fosse, Bolsonaro não tinha chegado aonde chegou.”
Gregório cobra ainda que ações necessárias, como a criminalização de discursos homofóbicos, machistas ou racistas, venham acompanhadas de muito debate e campanhas de informação para a população.
“A população ainda não sabe, e é normal não saber, quais são os limites. O que é homofobia? Por que é proibido no Brasil? O que é transfobia? Por que é proibido? Porque até outro dia não era. Estava na novela, estava no ‘Zorra Total’, estava em todos os lugares, piadas transfóbicas e homofóbicas. Estava no Porta dos Fundos, nós fizemos piadas transfóbicas, pelas quais eu já me desculpei. Estava em todos lugares”, avalia.
“Tem que ter uma divulgação muito clara dos efeitos, por exemplo, nocivos da da transfobia no Brasil. De quantos transexuais morrem assassinados, como é que a gente é o país que mais mata o transexual no mundo, que mais mata homossexuais?”, sustenta. “Tem que estar o tempo todo ligando o racismo, a homofobia, o machismo, às mortes que ocorrem em seus nomes.”
Nessa entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o ator fala ainda das duas peças em que está em cartaz no momento: o monólogo Sísifo, que entende como uma reflexão sobre “sobre essa eterna construção que é o Brasil em cima de ruínas”, e o espetáculo de improvisação Portátil, em que contracena com parceiros de Porta dos Fundos.
Leia abaixo os principais trechos:
Brasil de Fato: Você entrou em cartaz com duas peças no Rio de Janeiro, uma delas, na verdade, encerrou a temporada no último dia 12 de março, Sísifo. A outra é o projeto chamado Portátil. Mas queria falar sobre o “Sísifo” primeiro. Na peça, você faz uma análise sobre o Brasil contemporâneo, a partir da ideia do “eterno retorno” do mito grego. Que Brasil distópico é esse que a gente pode relacionar com a mitologia?
Gregório Duvivier: Olha, a mitologia sempre ajuda a gente a ler a realidade. Aliás, toda a mitologia, não só a grega, mas a iorubá, por que não a mitologia portuguesa, a brasileira – a gente já tem as nossas mitologias. Eu sou fã de mitologia, de modo geral, porque acho que é uma maneira de entender a realidade. É através de mitos, através de histórias, e não só através de explicações lógicas, cartesianas.
Eu acho que as histórias, as parábolas, elas dizem muito sobre a condição humana. E eu acho que o Sísifo é esse mito grego – só explicando brevemente – daquele homem preso, condenado pelos deuses a subir uma montanha, carregando uma pedra, e assim que ele chegasse ao final da montanha, a pedra ia rolar de novo montanha abaixo e ele ia ter que buscar a pedra e levar. E ele é condenado pelos deuses a fazer isso eternamente. Pro resto da eternidade ele ia ficar empurrando aquela pedra ladeira acima e ela nunca vai estacionar no topo. E os deuses condenaram Sísifo a isso porque ele queria eternidade, ele tentou enganar a morte. Então os deuses falaram assim “ah, você quer mesmo ser eterno? Então toma aí um trabalho eterno para você entender o suplício que é a eternidade”.
Só que [o escritor francês Albert] Camus, no século 20, vai olhar para aquilo, para esse mito, e fala assim “olha, eu imagino. Sísifo, feliz”, ele diz. Por quê? Porque ele tem uma pedra para carregar. Ele sabe precisamente o que ele tem que fazer nessa vida. E ele compara Sísifo ao ator, preso também numa repetição, que é o teatro, mas ao mesmo tempo fazendo dessa repetição o seu ofício.
Então, o Sísifo carrega esses dois significados: tanto alguém preso numa tarefa absurda e sem sentido, desesperadora; quanto alguém que faz da repetição absurda o seu ofício e tenta tirar algum prazer disso.
E o que que tem a ver com a gente, com o Brasil? Bom, primeiro tem a ver, claro, com o teatro, todos estão ali vendo um Sísifo, porque toda a peça, ou melhor, todo ator é um Sísifo. Mas também com o Brasil, porque o Brasil é também esse eterno desmoronar, essa impressão de que a gente tem sempre que reconstruí-lo ao longo de alguns anos, não é. Nossa democracia nunca durou mais que 20 anos, 30 anos no máximo, e tem sempre uma grande crise democrática, quando não golpe militar.
Então, eu tenho a impressão de estar sempre reconstruindo no Brasil. É aquela impressão do Caetano naquele verso, que na verdade é uma citação do [antropólogo Claude] Lévi-Strauss. Que é: “aqui tudo é construção, mas já é ruína”. Essa dúvida que a gente tem no Brasil o tempo todo. Isso já está pronto, ou isso está abandonado? Não é? Está em construção ou está abandonado? É uma dúvida que a gente tem em relação ao país mesmo. E o Sísifo fala dessa dúvida. A peça fala dessa dúvida, sobre essa eterna construção que é o Brasil em cima de ruínas.
Você trabalha também com alguns elementos das redes sociais, essa exaustão do hiperfoco. Que tipo de ser humano vai sair desse momento que a gente vive?
Olha, eu acho que desse momento que a gente vive precisamente vai sair um ser humano muito curioso. E é ótima sua pergunta, porque eu acho que as pessoas são filhas do seu tempo. E eu acho que nós somos a última geração, não sei se tem a mesma idade que eu, mas estou chutando que sim, nós que nascemos ali nos anos 80, somos…
Também em 86, mais precisamente.
Olha, que barato, acertei em cheio. Nós somos a última geração talvez a lembrar do que era um mundo pré-digital. As pessoas não sabem o que era, quem tem 20 anos não sabe o que é ter que procurar uma coisa numa biblioteca quando você não sabe o que encontrar. Ou ter aquelas enciclopédia Barsa, que era um tesouro que você tinha em casa, ou Britânia, e que você ia lá catar na letra tal, e às vezes faltava uma letra que alguém tinha perdido, e não tinha como procurar.
Esperar uma música na rádio para poder gravar na fita cassete, não é?
Exatamente, e aprender a tocar ela, porque no fundo, era a única maneira que você tinha. Então tem várias crises que se abrem com essa internet. Tem muitas vantagens mesmo, que a gente não pode é ser só chauvinista, achar que o mundo piorou e ninguém mais sabe fazer nada porque procura tudo no Google. Tem muitas qualidades, claro, o acesso, a democratização de muita coisa. O próprio Porta dos Fundos é filho disso também, de você conseguir ter um veículo na internet, que era uma coisa que antigamente o veículo era a Globo, era SBT, eram corporações para você ter um veículo de comunicação.
E hoje todo mundo é um veículo, e isso tem suas vantagens. Mas tem também suas desvantagens e, para mim, a principal desvantagem é o fato de que nossos veículos, nós todos não somos veículos, na verdade. Nós somos submetidos a outros veículos, que são muitas vezes invisíveis. O que eu quero dizer com isso? A gente tem a impressão de que é veículo, está produzindo informação nos nossos perfis, mas na verdade esses perfis pertencem a corporações que mediam e censuram, mediante algoritmos aos quais a gente não tem acesso. Então, somos todos submetidos a algoritmos invisíveis e indecifráveis.
Então hoje os vilões são mais invisíveis. Antigamente a gente sabia o dono, o nome do dono da Globo, e eles tinham conluios. A gente sabia que era muito claro, por exemplo, a Globo elegeu o Collor. Agora, quem elegeu Bolsonaro já não foi mais a Globo, que já não manda mais, por exemplo, na internet, onde ele foi especialmente forte. É o algoritmo, é uma máquina feita para reproduzir certos discursos. E não à toa o discurso de ódio, por exemplo, cresceu muito nos últimos anos. Cresceu porque o algoritmo gosta dele.
Então, essa liberdade que a gente tem, de estar produzindo conteúdo, e essa grande farra da internet de todo mundo poder postar e tal, ela é mentirosa. Porque é uma liberdade ilusória, já que ela está submetida. A viralização de um conteúdo, por exemplo, depende do algoritmo. E mais: essa plataforma pode apagar e te suspender a qualquer momento.
Eu vou aproveitar o teu gancho, inclusive para falar sobre uma coisa que ia trazer mais para frente. Você, por exemplo, optou pelo streaming, pela internet, por essa outra maneira de se comunicar. E saiu da realidade da TV aberta ou mesmo da TV a cabo. Enfim, pra ir pro, para Greg News, que está majoritariamente on demand, e o Porta dos Fundos, que está na internet, no YouTube, enfim, em plataformas. É uma escolha difícil?
É uma escolha difícil porque, por exemplo, na Globo, eu tinha seguro de saúde. Tinha um dinheiro fixo todo mês, assim e tal. Mas ao mesmo tempo não tinha liberdade criativa nenhuma. A gente não conseguia dizer o que a gente queria. A gente tinha um monte de esquete que escrevia e que não era filmada, porque os caras falavam, “ah, desculpa, isso aqui…” Eles tinham até uma expressão que se usa muito, o “brasileiro médio”. Até brinco, tem gente que fala “ah, porque o afegão médio, sei lá o quê”.
Mas tem essa brincadeira de que o brasileiro médio não vai entender essa piada, que o brasileiro médio não gosta disso. Às vezes falam da Classe C também, que essa entidade que os executivos de TV gostam muito de evocar, “a Classe C não gosta desse tipo de humor”. Baseado muitas vezes em pesquisas, mas como é que você faz pesquisa pra saber do que que uma pessoa acha graça, é muito subjetivo.
Diziam pra gente que o humor do Porta nunca ia dar certo no Brasil. E se não fosse a internet, a gente talvez estivesse acreditando neles até hoje. Na internet, a gente descobriu que não dá para acreditar em pesquisa – ou, se dá, elas dizem muito pouco sobre o que as pessoas querem ver de fato. Como dizia Gilberto Gil, que foi para mim quem falou melhor sobre isso, o povo sabe o que quer, ele quer o que não sabe.
Isso é perfeito para mim, então a pessoa, ela sabe o que quer, mas o que ela espera do artista também é que ele dê o que o povo não sabe ainda que quer. Logo, não faz sentido ter pesquisas. Porque o que o povo mais anseia é por algo que ele ainda não tem um nome, quem tem o nome é o artista.
A gente vai voltar a falar sobre Porta dos Fundos, mas queria só voltar para o teatro. No Sísifo, você faz um monólogo, que, imagino, tem um nível de exigência maior do ator. Talvez a experiência coletiva facilite um pouco, enfim, o estar ali no palco. O monólogo expõe mais o ator na sua inteireza. O Portátil é o total oposto, uma experiência coletiva de improvisação a partir dos temas que são entregues pela plateia. Queria que você falasse um pouquinho sobre essa dualidade de estar no palco com essas duas estratégias diferentes.
Adorei. É bem isso mesmo. O Portátil está é na está no lugar oposto do Sísifo, que sou eu sozinho, sozinho, sozinho no palco, subindo, descendo uma rampa. E mal consigo olhar a plateia, porque eu estou longe da plateia, e eu vou aos poucos, claro, me conectando, ouvindo ela. Mas é um exercício bem solitário de editar uma peça sozinho assim. Embora, claro, tem um monte de gente ali comigo. O autor do texto tá ali comigo, Vinicius Calderoni, e tem também o público, e tem um monte de coisa, eu contraceno com a rampa, com a luz.
Mas é muito diferente do Portátil, onde a brincadeira ali é que nós somos 5 no palco, 4 atores e um músico, e nós pensamos juntos, como se fossemos uma cabeça só. Quando dá certo. Quando dá errado, cada um pensa numa hora. Mas quando dá certo, a mágica da coisa é que um entende o pensamento do outro e pensa junto. É uma espécie de máquina de cinco cabeças, assim. Então o músico começa a tocar uma música mais triste, e eu já entendo que ele está levando para um lugar triste.
Aí eu lembro que morreu tal personagem, então ele deve estar tentando sugerir um enterro. E no que eu faço assim [fecha os olhos e abaixa a cabeça] no enterro, já vem outra pessoa e deita para fazer o cadáver. Quando alguém vê, eu olhando para um cadáver, já vem e começa a chorar, porque entende que eu estava… Então é uma comunicação silenciosa que quando acontece é milagroso e as pessoas acham “não, mentira, vocês ensaiaram essa cena”. Mas não, realmente não teria nem como ensaiar, porque a gente pega tudo na hora com a plateia.
Mas é, eu acho um barato como essa mágica, quando ela acontece, é muito emocionante mesmo. Para mim é revolucionário e é uma ferramenta para a vida essa mágica da improvisação, que a mágica da escuta, é a mágica de dar atenção e você entender o que o outro está pedindo sem que ele diga. Acho que esse é o grande segredo da improvisação e que pode ser também um grande segredo da vida, a escuta. A escuta é revolucionária.
E há uma dificuldade nos dias de hoje em ter escuta, das pessoas serem escutadas – a internet também acabou dando um pouco de voz a isso. Mas você acha que a espontaneidade também é uma oportunidade de a gente resgatar algo de verdadeiro, de essência?
É. Eu acho que a luta do palhaço é essa, não é? O palhaço é uma pessoa que só consegue dizer a verdade, não tem mentira no palhaço, no bom palhaço. O trabalho de você encontrar o seu palhaço interno, é o seu próprio clown, é um trabalho de limpeza e não de acúmulo. É de você, em vez de tentar botar uma coisa, uma composição, imaginar como ele é, não é um trabalho de imaginação nem de composição, mas ao contrário: um trabalho de tirar, de reduzir, de excluir de você tudo o que é acúmulo, tudo que não é puramente você, na sua mais pura essência. Tudo que é mentira. Então, é isso que talvez você esteja chamando de espontaneidade, e que é uma boa palavra mesmo para falar do palhaço. É alguém que bate, e leva.
E eu acho que essa é uma busca também muito importante para a gente nos dias de hoje, em que a gente acumula o tempo todo filtros – de Instagram, mas também filtros da vida real que a gente põe sobre si, essas máscaras. A internet é um jogo de máscaras: é o avatar, é o nome do perfil. É um jogo de você criar narrativas sobre si mesmo. Essa é a brincadeira das redes sociais, você criar narrativas e ganhar likes por elas e ser compartilhado através de lutas. Todo o jogo é narcísico, mas é um narcisismo, claro, de máscaras, de pessoas, ninguém tem acesso a ninguém de verdade mesmo nos perfis da internet.
Como é que é pra você essa transição entre a TV, o audiovisual no streaming e o teatro? É importante para o ator ser multifacetado hoje? Obviamente que sempre foi, está na formação do ator fazer todos os tipos de arte, dominar todos os tipos de arte. Mas é também extremamente exigente se adaptar esses formatos o tempo todo, não é?
Muito, mas, ao mesmo tempo, eu acho que o ator tem esse presente na vida dele que é experimentar outras realidades, outras dimensões. Nem todo mundo sabe o que seria se fosse outra coisa. As pessoas muitas vezes passam uma vida trancafiados nas escolhas que eles fizeram.
Então, se uma pessoa é uma médica anestesista, evangélica, paulistana, moradora do Brás, tudo isso são coisas que ela identifica como sendo elas mesmas de uma maneira muito blindada e imutável. E o ator sabe que tudo isso é construção. Ele é capaz de experimentar outras possibilidades para si mesmo, outros multiversos e outras narrativas e outras construções. Isso é uma benção.
Por isso que eu acho que o teatro é também terapêutico. Você relativizar tudo aquilo que te disseram que era você. Porque desde pequeno estão falando, “você é muito…” aí preencha aqui o que você quiser. Muito tímido, você é muito brabo, muito generoso, você é muito histérico, você é…
O tempo todo estão definindo e jogando pra gente coisas que a gente abraça, ou mesmo que não abrace voluntariamente, que grudam na gente, porque nós somos seres permeáveis. E o ator tem a possibilidade de se despir de tudo o que lhe foi dado em termos de roupas, de tatuagens que tentaram fazer nele. A gente consegue se limpar com água sanitária, com cândida, como se diz em São Paulo, a gente se limpa e consegue estar despido, nu mesmo.
E eu acho que esse trabalho de experimentar outras linguagens é essencial pro ator, porque a gente consegue, inclusive, não só experimentar outras personalidades, mas também outras maneiras de ver o mundo. Porque os óculos de ver o mundo da comédia são uns e os dramas são outros, da tragédia são outros, da tragicomédia. Cada gênero é também uma maneira de enxergar o mundo e suas mazelas. Mas eu acho que o ator tem a possibilidade de trocar de óculos.
O Portátil é um espetáculo inspirado no Porta dos Fundos, que completou 10 anos no ano passado e se tornou uma referência para o humor brasileiro. Inclusive, já foi alvo de ataques, de tentativa de censura. Isso impôs limites ou barreiras ao humor que vocês fazem?
Não, nunca, nunca… Quer dizer, limites e barreiras, não é a palavra ideal, porque dá a impressão de que elas são estanques, são feitas de concreto armado, de cimento. Então eu acho que limites, barreiras, muros, fronteiras, não. Ao mesmo tempo, eu acho que o que a gente tem é uma escuta muito vigilante. Porque a gente sabe a responsabilidade que tem.
Eu acho que quanto maior o seu alcance, maior a sua responsabilidade também. A gente hoje tem um alcance muito grande, logo sabemos que a gente tem uma responsabilidade muito grande. E eu acho que, mais do que desenhar claramente, previamente, as coisas que a gente não diz ou não faz ou as piadas que é proibido de fazer, trabalhamos com o que tem, no dia que tem.
Então a gente lê os roteiros juntos e ouve os feedbacks de todo mundo que está na sala de roteiro. E debate, e problematiza cada um dos roteiros e cada um das piadas. A gente discute muito piada. Eu acho que uma piada fica melhor quando é discutida e debatida, não fica pior.
Então eu acho que a proibição não combina com o humor. Quer dizer, ela combina no sentido inverso, ela atrai o humor. Não tem nada mais engraçado do que um tabu. Não existe, é uma atração imediata, inevitável, magnética entre a proibição e a piada. Botar limites e barreiras não funcionaria pelo fato de que a gente iria todo dia trabalhar nelas e tentar empurrá-las. Então a gente não põe nenhum limite, nenhuma barreira, mas ao mesmo tempo, debate e discute muito cada uma das piadas, porque sabe que elas podem ter um impacto real na vida das pessoas.
Sobre o que falar ou não durante esses espetáculos e também nas esquetes do Porta dos Fundos, o que é censura e o que não é no Brasil? A gente vive, inclusive, um posicionamento forte nesse momento do STF contra os discursos de ódio. E há um grupo de trabalho do governo federal para entender esse tipo de discurso violento, que gestou, por exemplo, o fascismo brasileiro.
Exatamente, eu acho que é muito tênue a linha mesmo e acho que não é fácil de resolver esse problema, que é o que que pode ser dito, o que é discurso de ódio, o que não é? Eu não acho que é simples, mesmo, não acho. E às vezes a esquerda cai na tentação de dizer que é. É muito simples, homofobia é crime, e tem que ser preso. Tá, mas até onde, quando um humorista gay, por exemplo, fazendo piada com isso, chamando os outros de “viado”, é homofobia? Não, não é. Então é isso que eu quero dizer, porque homofobia é crime? Concordo, é importante para caramba num país que mata tantos homossexuais, transexuais. Mas a definição do que é homofobia não é clara e nunca vai ser.
Eu acho que a gente tem que tomar cuidado para não cair também no nosso campo em fingir que as coisas são fáceis e simples, porque elas não são. Elas têm que ser debatidas e têm que ser divulgadas caso a caso. Porque existe muito discurso de ódio no nosso meio no Brasil, muito, muito, muito. Mas existe também muita ignorância e gente que erra de boa fé, por exemplo, porque não sabe, ou não sabe como falar.
O que eu acho é que, ao contrário do que os parlamentares da extrema direita tentam dizer, quanto mais poder você tem, mais responsabilidade. Como eu falei sobre o Porta dos Fundos: quanto mais alcance você tem, mais responsabilidade. Quanto mais poder, mais responsabilidade.
Ou seja, eu acho que um humorista tem muito mais liberdade do que um deputado. Porque eu não estou falando em nome de ninguém, eu não represento ninguém, eu não estou ganhando dinheiro público para falar o que eu estou falando, não estou falando isso numa casa pública que é a casa do povo, como a [Assembleia legislativa do Rio de Janeiro] Alerj no Rio, como o Congresso em Brasília.
Esses são lugares em que, na minha opinião, as pessoas deveriam ter menos liberdade e não mais como eles advogam e como eles têm no Brasil. No Brasil, você tem foro privilegiado que te permite falar tudo. No Congresso, eu sou contra isso. Eu acho que foro privilegiado é o do povo, é do cidadão. Esse sim é privilegiado, justamente porque não tem o alcance e o respaldo legal, e o advogado e tal, ele deveria ser mais protegido pela legislação para dizer o que ele pensa.
Só que no Brasil é o contrário. A única pessoa que tem respaldo para dizer o que pensa é uma pessoa que já tem advogados para defender o que ele diz, já tem seguranças para protegê-lo fisicamente do que ele diz. Então acho que tem uma inversão no Brasil, na qual o discurso de ódio é liberado para parlamentares. E se não fosse, Bolsonaro não tinha chegado aonde chegou.
Então eu acho que o Bolsonaro tinha ter sido preso quando ele fez a apologia ao torturador Brilhante Ustra, ali em 2016. Tinha que ter sido porque foi uma postura antidemocrática, fascista mesmo, e está claramente escrito na nossa Constituição que isso não é permitido. Então, ali para mim, ele tinha que ter saído algemado do Congresso. Foi uma porteira que se abriu e que, a partir daí, entraram um monte de ratos no Congresso e até hoje estão lá.
Agora, tem um ponto sobre isso que acho que é importante lembrar como campo da esquerda que é: essa discussão sobre a criminalização, sobre onde aplicar a criminalização, tem que vir junto de um debate com a população. Porque a população ainda não sabe, e é normal não saber, quais são os limites. O que é isso? O que é homofobia? Por que é proibido no Brasil? O que é transfobia? Por que é proibido? Porque até outro dia não era. Estava na novela, estava no “Zorra Total”, estava em todos os lugares, piadas transfóbicas e homofóbicas. Estava no Porta dos Fundos, nós fizemos piadas transfóbicas, pelas quais eu já me desculpei. Estava em todos lugares.
Por que isso virou crime, quando e qual é o efeito? Tem que ter uma divulgação muito clara dos efeitos, por exemplo, nocivos da da transfobia no Brasil. De quantos transexuais morrem assassinados, como é que a gente é o país que mais mata o transexual no mundo, que mais mata homossexuais?
A mesma coisa com o racismo. Eu acho que a criminalização do racismo é urgente, importantíssima. Essa equiparação entre injúria racial e racismo me parece muito importante mesmo, porque é uma diferença muito sutil e difícil de ser feita. É injúria racial, é racismo? Não, é racismo. Ao mesmo tempo, isso tem que ser explicado para a população. Tem que vir junto com uma campanha de conscientização. Tem que vir junto com uma campanha que explique o que é o racismo? Por que é que ele é crime, quando ele começou a ser crime? Quais são os efeitos práticos disso? Por que que a polícia mata muito mais pessoas pretas? Tem que estar o tempo todo ligando o racismo, a homofobia, o machismo, às mortes que ocorrem em seus nomes.
Porque a besteira que o [deputado federal] Nikolas Ferreira (PL-MG) falou ali, aquela transfobia que ele cometeu não seria grave num país em que os transexuais são maioria no Congresso ou que eles são, sabe, bem representados, ganham bem, estão seguros. Não seria, seria só uma besteira, só uma brincadeira. O fato dele falar isso num país que mata diariamente transexuais espancados, queimados, surrados é o que torna aquilo discurso de ódio e criminoso.
E dito isso, no Dia Internacional da Mulher.
Exatamente, mas se a gente não ligar as duas coisas, se a gente não ligar a fala dele, a piadoca dele ao sangue que ela gera, parece leviana a posição. A punição parece exagerada.
Você sempre se debruçou sobre a política, fez inclusive parte da campanha presidencial de alguma maneira. E muitos artistas não se posicionaram, outros demoraram para se posicionar nessas últimas eleições. Qual reflexão disso? O posicionamento político cobra muito do artista? Qual é o peso que isso carrega? Ou você carrega algum peso com isso?
Não, não carrego peso nenhum. Eu acho que o posicionamento artístico é uma obrigação, é algo que eu me sentiria muito mal se eu não fizesse. Quer dizer, é uma obrigação para mim – não acho que é pra todo mundo, cada um sabe de si. Mas se eu me posiciono politicamente, peço voto, me manifesto, é porque eu não saberia viver de outra maneira, não saberia subir num palco, não saberia dormir à noite, sabe? Nós somos seres sociais, políticos, e eu acho muito estranho uma pessoa trabalhar com arte e achar que o que ela faz é diferente da sociedade, não está ligado à política e tenta separar as 2 coisas. Não, é a mesma coisa. Arte e ativismo são meio sinônimos para mim. Não vejo como a atividade artística pode não ser política. Nunca conheci alguém que tenha conseguido essa proeza.
Para a Ariane Mnouchkine [diretora francesa de teatro e cinema], uma vez perguntaram “por que você faz teatro político?” E ela respondeu: “existe outro?” E eu acho que é uma boa resposta. Existe alguma atividade artística que não seja política? Se alguém tiver conseguido essa proeza, me avisa. O que eu vejo é gente achando que não está sendo política e está sendo de direita, ou então está sendo despolitizada, ou então está repetindo politizações dos outros e tal.
É claro, ser político não é ser partidário, panfletário. Não é falar de política, ser político. Você pode fazer uma peça ultra política, sem falar em momento nenhum de político, ou de direita, ou de esquerda, ou de Brasília, ou de Congresso, ou de deputado. Não, pelo amor de Deus.
Uma peça sobre, por exemplo, um casal, um amor homossexual, é uma peça política. Qualquer peça que fale de racismo, da maneira que for, é política. São os temas, os temas que nos atravessam são todos políticos. O amor é político, a vida política. Então eu não conseguiria não ser. Eu não sei qual é a outra opção, se não, ser político.
Fonte: Brasil de Fato