Especialistas veem avanços no texto que tem autodeclaração como peça-chave. Contudo, a falta de diretrizes claras deixa dúvidas sobre cumprimento de normas: “Quem vai fiscalizar?”, questiona ativista
Passados dez anos, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP-SP) atualizou as normas para a população LGBT+ no sistema prisional. A resolução 27/2024, publicada em Diário Oficial em 21 de fevereiro, garante respeito ao nome social e estabelece que as unidades prisionais passem a produzir dados sobre essa população. Para ativistas, apesar de apresentar fragilidades, a resolução é positiva e é convergente com as diretrizes produzidas por movimentos sociais ao longo das últimas décadas.
A resolução 27/2024 estabelece a autodeclaração como ponto-chave para que a pessoa privada de liberdade tenha respeitada sua identidade de gênero. Isso busca garantir o uso do nome social no dia a dia, em documentos internos e a possibilidade de alocação em espaços específicos nas unidades.
“As conquistas sociais têm tensionado para que os direitos sejam respeitados”, diz Neon Cunha, ativista dos direitos da população negra e LGBT+. Para ela, a nova resolução da SAP-SP traz avanços, mas erra ao condicionar parte das garantias da avaliação dos gestores das unidades, sem que haja critérios claros para a tomada de decisão.
“Eu acho um avanço. Ele é muito explícito sobre como tratar identidades de gênero muito distintas. Antes era um bolo só. Contudo, temos que saber do método de aplicação. Cada unidade tem uma autonomia de gestão. O perigo está aí”, fala.
O que diz a resolução
A nova resolução amplia os assuntos tratados no documento anterior (11/2014). O texto antigo já falava, por exemplo, no uso de nome social, mas tinha foco na população transexual e travesti. É o que aponta Jaqueline Gomes de Jesus, professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). A versão atual aprofunda a questão da população trans no sistema prisional e também inclui pessoas intersexo.
“Eu acho fantástico que se formalize toda essa demanda que já vem de décadas”, afirma Jaqueline. A professora diz que a nova norma foca em demandas imediatas com impacto direto na vida dessa população.
Conforme o Relatório de Presos LGBTI, da Secretaria Nacional de Políticas Penais, em 2022, o Brasil tinha 12.356 pessoas privadas de liberdade autodeclaradas LGBT+. Outro relatório, produzido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em 2020, mapeou apenas 106 unidades de um total de 1.499 que possuíam alas específicas para essa população.
“É preciso fazer uma reeducação dos envolvidos no sistema prisional, para entenderem que, para além da norma, é um direito e uma condição de vida das pessoas trans, intersexo. Ao atingirem as demandas relativas ao alistamento, registro civil, onde vão ficar dentro do presídio, é necessário para que elas tenham tutelado o direito de ir e vir, mas que não tenham tutelado o direito à vida. Direitos humanos básicos não podem ser cerceados”, afirma a professora.
Dentro das unidades, há previsão de celas ou alas específicas para a população LGBT+. Contudo, a inclusão depende de decisão da direção da unidade. Não há critérios objetivos. O texto diz que a decisão deve considerar “a garantia da segurança física, moral e psicológica de todos”.
Jaqueline critica esse ponto. Ela diz que a realidade no sistema prisional é de não respeito à autodeclaração e que a resolução formaliza algo prejudicial. “A autodeclaração não funciona sempre dentro do sistema prisional, porque a pessoa que decide pode decidir que X não é feminino o suficiente para estar numa ala específica ou num presídio feminino, ou masculino o suficiente para estar em algum lugar. É isso que acontece no mundo real.”
O texto anterior previa a possibilidade de que pessoas que fizeram cirurgia de “redesignação sexual” pudessem cumprir pena em unidades relacionadas ao gênero com que elas se identificavam. Isso mudou.
A nova orientação é de que homens trans cumpram pena em unidades femininas como forma de garantir a integridade física. Mulheres trans, travestis e pessoas intersexo podem manifestar o tipo de prisão em que desejam cumprir a pena.
Também é estabelecido a competência dos estabelecimentos penais de coletar e sistematizar dados de identificação sobre a população LGBT+ privada de liberdade. As informações devem constar de forma obrigatória no Sistema Gestão Prisional Única (GPU).
A manutenção de terapia hormonal também ganha espaço na nova resolução. É previsto que se dê seguimento, via Sistema Único de Saúde (SUS), ao acesso aos medicamentos necessários dentro das unidades. O mesmo vale para quem fez procedimento de afirmação sexual. A pessoa tem a garantia de utilização de acessórios e equipamentos que forem necessários para a preservação e manutenção da cirurgia.
“Quem vai fiscalizar?”
Apesar de destacar avanços na política, a ativista Neon Cunha avalia que a resolução tem fragilidades. Para ela, não está claro como o modelo funcionará na prática. “Quem vai fiscalizar? Quem vai monitorar? Além disso, qual será a interlocução com a sociedade civil organizada?”
O texto atribui à Coordenadoria de Saúde do Sistema Penitenciário, da Secretaria da Administração Penitenciária, responsabilidade sobre os protocolos de saúde. Já a Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania tem papel educativo, devendo orientar os servidores em relação à normativa. Contudo, não há na resolução atribuição de órgão fiscalizador.
Neon destaca que a resolução é fruto de articulações de movimentos sociais. Ela lembra que o Brasil é signatário dos Princípios de Yogyakarta. O documento, publicado em 2006, reúne uma série de normas jurídicas com foco nas questões de identidade de gênero e orientação sexual. O documento é inclusive citado pela SAP-SP na resolução de 2014.
A ativista também cita o levantamento “Não existe cadeia humanizada: estudo sobre a população LGBTI+ em privação de liberdade”, lançado em 2020. O documento traz 30 recomendações de revisão do tratamento penal à população LGBT+. Muitas delas, diz Neon, foram incorporadas pela resolução da SAP-SP.
Fonte: Ponte Jornalismo