Denúncias cresceram no país neste ano. Goiás e Rio Grande do Sul são os estados com mais ocorrências
Segundo dados publicados pelo Ministério do Trabalho, nos três primeiros meses de 2023: 918 trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados no país. O número indica aumento de 124% em relação ao mesmo período de 2022. Também representa um recorde para um primeiro trimestre nos últimos 15 anos, sendo superado apenas pelo levantamento de 2008, quando 1.456 pessoas foram encontradas. Mas, o que legislação brasileira diz sobre o assunto?
De acordo com o advogado, professor, doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Luiz Augusto Silva Ventura do Nascimento, em 2003, a Lei nº 10.803, alterou o Código Penal brasileiro, e passou a estabelecer quatro condutas que, isoladamente ou em conjunto caracterizam o crime de redução do trabalhador a condição análoga à escravidão, veja:
a) Ocorrência do trabalho forçado (serviço exigido de uma pessoa, para o qual ela não se tenha oferecido espontaneamente);
b) Imposição de jornada exaustiva (conjunturas em que há prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador);
c) Sujeição a condições degradantes de trabalho (violação à dignidade da pessoa humana, pelo descumprimento dos direitos fundamentais do trabalhador, principalmente aqueles referentes à higiene, saúde, segurança, moradia, repouso, alimentação ou outros relacionados a direitos da personalidade);
d) Restrição, por qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: escravidão por dívida.
Nascimento destaca que até o estabelecimento da Lei, a dificuldade para identificar o crime era maior. Além disso, a tipificação continua sendo objeto de disputa pelos poderes públicos. O Código Penal, no entanto, não é o único texto sobre o tema. A Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência nº 1.293, de 2017, também traz mais informações sobre o tema como o tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho em condição análoga à escravidão.
Segundo o marco, tal violência é considerada como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra.
“Antes não havia qualquer especificação do significado do ilícito penal, o que tornava sua aplicação muito mais difícil ao caso concreto, em razão de cada magistrado interpretar subjetivamente o que era a “condição análoga à de escravo” no antigo texto legal. É importante dizer que no Congresso Nacional há projetos de lei que buscam esvaziar o conceito legal de trabalho análogo ao de escravo no Brasil, querem retirar as figuras da jornada exaustiva e, em especial, condições degradantes porque envolve qualquer violação aos direitos fundamentais da pessoa trabalhadora”, pontua.
Canais de denúncia
Qualquer pessoa pode denunciar a exploração do trabalho em condição análoga à de escravo, podendo realizá-la, inclusive, de forma anônima em alguns casos.
a) Por se tratar de violação dos direitos humanos, a denúncia pode ser feita pelo canal do governo federal do Ministério dos Direitos Humanos, Disque 100 ou site da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (disponível aqui);
b) O órgão responsável pelo combate do crime de submissão ao trabalho escravo é o Ministério Público do Trabalho. Assim, a denúncia pode ser feita em qualquer unidade do Ministério Público do Trabalho ou por meio do site institucional, www.mpt.mp.br;
c) Como o Ministério Público Federal tem a responsabilidade de apurar denúncias de trabalho escravo e tomar medidas legais para punir os responsáveis, ele recebe denúncia em suas repartições ou pelo canal: https://www.mpf.mp.br/servicos/sac;
d) A Defensoria Pública pode atuar na defesa dos direitos dos trabalhadores, incluindo os casos de trabalho escravo, pode-se denunciar diretamente a ela;
e) Há entidades na sociedade civil organizada que militam na defesa dos direitos das pessoas trabalhadoras, incluindo casos de redução à condição análoga à de escravo como, por exemplo e Comissão Pastoral da Terra e Repórter Brasil. Essas organizações recebem denúncias e as formalizam às autoridades competentes.
Penalidades
Nascimento observa que a aplicabilidade de sanções aos escravagistas tende a ser difícil por serem, na maioria das vezes, pessoas e empresas com grande poder econômico. Ainda assim, são cabíveis penalidades penais e administrativas.
No campo penal, o advogado explica que, prática de reduzir alguém a condição análoga à de escravo pode ser punida com reclusão de 2 a 8 anos, além de multa. Se houver agravantes, como o emprego de violência, a pena pode ser maior. Em caso de reincidência, a pena é aumentada em até metade. Já na esfera administrativa, o empregador pode ser responsabilizado pelas infrações trabalhistas, o que pode resultar em multas e sanções.
“Além disso, o infrator pode ser incluído no Cadastro de Empregadores que submetem trabalhadores a condições análogas à de escravo conhecido, popularmente, como “Lista Suja”. A inclusão nessa lista impede que a empresa tenha acesso a créditos e financiamentos públicos, entre outras penalidades. Para responsabilizar infratores por danos morais e materiais ocasionados a bens e direitos coletivos, tem-se o instrumento processual da ação civil pública, nos termos da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985”, complementa.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.