Rendimento médio de profissionais com ensino superior também caiu mais de 5% no mesmo período. Dados evidenciam a crescente precarização do mercado de trabalho e leva a perpetuação de ciclos de pobreza
O último boletim “Emprego em Pauta”, divulgado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), aponta que nos últimos 12 meses, a oferta de trabalho tem voltado a crescer no país, entretanto, em posições que requerem menor grau de escolaridade e pagam salários mais baixos. Este dado “revela um mercado de trabalho empobrecido e com poucas perspectivas de ascensão para os trabalhadores”, indica o documento.
A pesquisa demonstra que, entre 2021 e 2022, o contingente de pessoas sem instrução e com menos de um ano de estudo ocupadas saltou 31,4%. Entre os que possuem ensino médio incompleto, a taxa de empregabilidade subiu 14% no mesmo período. Já entre os que possuem ensino superior incompleto, a ocupação cresceu 6,1% e entre pessoas graduadas, o índice registrou menor expansão: 3,6%.
De acordo com o estudo, no transcorrer o segundo trimestre de 2021 e o de 2022, entre áreas que, majoritariamente, exigem ensino superior, a exemplo de diretores e gerentes, profissionais das ciências e intelectuais, os índices de ocupação cresceram 3% e 3,4%, respectivamente. As taxas são menores ante ao aumento da empregabilidade entre trabalhadores de serviços, vendedores de comércios e mercados (17,9%), operadores de instalações e máquinas e montadores (15,8%), por exemplo.
Outra constatação apresentada pelo estudo diz respeito ao exercício de “funções não típicas” para profissionais com ensino superior, ou seja, quando o individuo atua em outra área diferentemente do campo em que possui qualificação. Neste caso, foi identificado crescimento de 14,6% no número de balconistas e vendedores de lojas e de 6,8% no de vendedores em domicílio. Juntas, estas duas categorias, empregam 567 mil pessoas com terceiro grau completo.
O rendimento médio entre trabalhadores com nível superior também decaiu, atingindo retração de (-5,6%), seguidos por aqueles com ensino médio incompleto (-1,8%). Dentre os ocupados graduados, as quedas na renda mais acentuadas ocorreram nos seguintes segmentos: membros das forças armadas, policiais e bombeiros militares (-7,2%), profissionais das ciências e intelectuais (-6,9%) e diretores e gerentes (-4,9%).
Para o economista, Venâncio Oliveira, os dados apontam para um cenário de “reestruturação do mercado de trabalho” e tem entre suas razões o estabelecimento de leis que priorizam a terceirização, intensificando a precarização das relações trabalhistas e aumentando a desproteção social. Levantamento, publicizado em agosto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicou novo recorde da informalidade no país, são 39,3 milhões sem acesso a direitos (como 13º salário, férias, intervalo para descanso), sendo que deste contingente: 25,9 milhões estão trabalhando por conta própria.
Oliveira também lembra da falta de investimento em áreas como educação, ciência, tecnologia e a desindustrialização, marcada pela redução da atividade industrial em determinado país ou região.
“Primeiro elemento, tivemos a crise de 2015, que afetou o mercado de trabalho, aumentou o desemprego. E depois vieram um conjunto de políticas econômicas que desestruturam o mercado de trabalho como a reforma trabalhista, reforma da previdência. Além disso, temos uma ausência de gastos públicos que afetam as áreas de ciência e tecnologia, que são campos responsáveis por empregar mão de obra mais qualificada”, observa.
Ele assinala também que a informalidade tem sido uma característica do mercado de trabalho no Brasil, assentado pela intensa concentração de renda. Ocorre que, neste momento, ela passa atingir trabalhadores com mais anos de estudo. “A gente sempre conviveu com a informalidade. Nos anos 90, tínhamos a desproteção e desemprego, sobretudo, entre pessoas com menor grau de escolaridade. Então, as que estudavam mais, tinham menos chances de estar nesta situação. Agora não, também acomete pessoas com mais instrução”.
Oliveira ressalta que este cenário não afeta apenas os profissionais com ensino superior, mas toda a classe trabalhadora, pois fragiliza ainda mais direitos ao reproduzir a irrestrita desqualificação da mão de obra. Além disso, impacta os sentidos postos à educação, já que esta deixa de ser compreendida como uma ferramenta de emancipação, ainda que sob a lógica da superexploração do trabalho pelo capital. Também gera o aumento e manutenção da pobreza, visto a queda nos salários, na maioria das vezes estabelecidos pelo grau de escolaridade.
“Na medida em que você desqualifica profissões que exigem mais formação, o Brasil irá reforçar a oferta de trabalho precário. Então, para que eu vou estudar? Se, no fim, eu vou cair no trabalho precário mesmo. Não há estímulo para o estudo e nem desenvolvimento econômico a médio prazo. Ao mesmo tempo, estamos falando de ciclos de pobreza se perpetuando, pois a pessoa sai do mercado de trabalho e é muito difícil voltar. Por exemplo, um engenheiro, começa a trabalhar como garçom, fica dez anos fora da sua área, quem vai contratá-lo depois?”, ele questiona.
Ricardo Antunes, professor do departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com base em suas pesquisas sobre o mundo do trabalho, indica que nas últimas duas décadas, com o fortalecimento do neoliberalismo e a reestruturação produtiva, a finalidade do trabalho tem sido apenas a produção de mercadorias e lucro, cujo acesso deste último é totalmente desigual. Esta visão tem levado a intensa destruição das forças produtivas e do meio ambiente. Cria-se uma “sociedade do descartável”, que joga fora tudo que serviu como “embalagem” de insumos a pessoas, argumenta o pesquisador.
Rompendo com a falácia da meritocracia
Caroline Rodrigues é zootecnista e possui mestrado em Produção Sustentável e Saúde Animal. Mesmo com currículo repleto de experiências construídas durante sua passagem na Universidade Estadual de Maringá (UEM), ela enfrenta dificuldades para se inserir no mercado de trabalho após formada. Hoje, morando em Londrina, a profissional está desempregada, mas conta que em seus últimos trabalhos atuou como vendedora e auxiliar administrativo.
“Mesmo durante a pós-graduação, já tentava encontrar uma vaga na minha área, mas não consegui nada além dos estágios vinculados à universidade. E após o mestrado, ouvi em entrevistas que estaria muito qualificada para determinada empresa, que não poderiam me pagar um salário compatível com a minha formação. Parece que ou você não é qualificada o suficiente ou é qualificada demais”, relata.
“É comum ouvirmos, inclusive, em meios de comunicação ‘o cara tem pós-doutorado e está fazendo serviço precário’, a pessoa se sente como derrotada na vida, se questiona ‘por que segui este caminho?’. Ao mesmo tempo, somos bombardeados com a mensagem de ‘você pode ficar rico se investir na bolsa, sendo influencer’. E não é assim. Este modelo que se sustenta na ideia de que se eu me esforçar muito, eu vou chegar lá. Mas tem muitas pessoas que se esforçam e não conseguem, há sempre uma falta, uma insuficiência que não é algo individual, é do próprio modelo do mercado de trabalho extremamente desigual. Não é porque as pessoas estão desqualificadas que elas estão desempregadas, ao contrário, estão hiper qualificadas, mas não encontram vagas que condizem com a sua formação”, explica Oliveira.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.