Entre março de 2020 e abril de 2021, 113 mil crianças e adolescentes perderam seus cuidadores em função da doença
Nesta terça-feira (12), a primeira morte em decorrência da covid-19 registrada no Brasil completa quatro anos. A vítima foi Rosana Aparecida Urbano, de 57 anos, que havia sido internada um dia antes no Hospital Municipal Doutor Carmino Caricchio, em São Paulo. De lá para cá, o país contabilizou 710 mil mortes pela doença de acordo com dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
O relatório Denúncia de Violações dos Direitos à Vida e à Saúde no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil, publicado em dezembro de 2021 pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), apontou para um problema pouco visível em relação a essas mortes: 113 mil crianças e adolescentes brasileiros perderam o pai, a mãe ou ambos para a covid-19 entre março de 2020 e abril de 2021. Nem o CNS nem o Ministério da Saúde têm dados atualizados sobre a orfandade decorrente da pandemia.
A falta de dados é apenas um exemplo da lacuna de políticas públicas voltadas para esse grupo. Elaine Gomes dos Reis Alves, psicóloga especialista em perdas, morte e luto e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Morte do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), avalia que a perda dos cuidadores é muito marcante para crianças e adolescentes.
“Nem todo mundo entendeu que se tratava de um desastre, mas existiram as mortes traumáticas, quando uma pessoa morre, entre aspas, sem precisar morrer, assim como numa guerra. Embora na guerra você leve um tiro e morra, na pandemia, as pessoas tinham um certo tempo, mesmo assim era uma morte traumática e sem despedida, não tinha velório. Para as crianças, por exemplo, isso foi muito difícil. Foi difícil porque é um desaparecimento”, afirma Alves.
Ela lembra que a pandemia de covid-19 causou, em 2020, a maior redução na expectativa de vida desde a Segunda Guerra Mundial. A referência é um estudo publicado na revista científica International Journal of Epidemiology, da Universidade de Oxferd (Reino Unido).
A psicóloga explica que é somente entre oito e dez anos que as crianças começam a entender a morte como um fato irreversível. Antes disso, a fantasia é muito utilizada para tentar elaborar o luto, principalmente quando o assunto é negligenciado pelos familiares.
Esse momento se torna mais difícil quando se trata de uma morte por covid-19. “Primeiro, porque não teve despedida. Segundo, porque pode não ter tido uma informação e um esclarecimento adequado para a criança sobre a morte, quando é entendida como um abandono. E aí a criança entende que o desaparecimento do pai ou da mãe é culpa dela, porque se a mãe foi embora sem falar tchau é porque a criança fez alguma coisa e está sendo castigada”, afirma.
Alves fala sobre a importância de falar sobre a morte com as crianças para que possam vivenciar o luto da maneira mais saudável possível. “Nós temos uma dificuldade social sobre momento de falar sobre morte para as crianças. As crianças têm direito a verdade. Elas têm direito à própria história e elas têm direito às despedidas. São roubadas da criança suas oportunidades, inclusive de passar pelo luto junto com todo mundo, quando não se fala da morte.”
Em suas palavras, o luto da criança pode ser categorizado como um “luto não reconhecido”, uma vez que têm dificuldade para serem ouvidas e acolhidas. “Tudo isso faz com que a criança fique muito sozinha na sua dor. As pessoas acham que as crianças não estão prestando atenção, mas a criança é muito atenta. As pessoas acham que não devem chorar na frente das crianças. Isso também não é adequado.”
Um dos pontos que devem estar necessariamente no rol de políticas do poder público é a preparação dos profissionais que vão lidar diretamente com esses órfãos, como os docentes e psicólogos escolares. Por isso é necessário a disponibilização de uma rede de apoio com diversos profissionais, como assistentes sociais e profissionais da psicologia.
“Acho que o poder público tem que capacitar os profissionais para identificar as crianças enlutadas a lidarem com o luto de uma maneira normal, porque o luto é horroroso e muitas vezes insuportável, mas é necessário e saudável. É preciso passar pelo sofrimento. Um bom profissional pode ajudar essa criança a desenvolver ferramentas para lidar.”
Vítimas se organizam
Com o grande número de mortes ao longo desses quatro anos – o pico se deu em 8 de abril de 2021, quando foram registrados 4.249 óbitos –, familiares de vítimas da covid-19 formaram associações em busca de apoio, principalmente, psicológico. Uma delas é a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico), que surgiu em 8 de abril de 2021, cerca de um mês após a morte de Italira Falceta, de 81 anos, mãe de uma das fundadoras, Paola Falceta.
A assistente social e seu colega, Gustavo Bernardes, se reuniram e fundaram a organização com outras 17 pessoas com o objetivo de orientar o acesso a políticas sociais de saúde, assistência social e previdência. Os trabalhos são organizados em três eixos: assessoria jurídica, atendimento psicossocial e mobilização e controle social.
O eixo de mobilização e controle social envolve um trabalho político junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário nos âmbitos federal, estaduais e municipais, pleiteando a criação de políticas públicas de assistência multiprofissional e especializada aos sobreviventes e órfãos da covid. A assistente social defende que o Estado deve ser responsabilizado diante do número expressivo da quantidade de mortes, uma vez que que preferiu adiar a compra de imunizantes, mesmo com as doses disponíveis.
Ao longo desses anos, no entanto, Falceta afirma que pouco foi feito pelo governo federal e pelo Congresso Nacional em relação ao apoio psicossocial às vítimas e órfãos da covid. “O parlamento fez muito pouco. Em relação a apoio psicológico, nada. Absolutamente nada. A Avico fez isso durante o primeiro ano da pandemia com voluntários. Nós atendemos quase 500 pessoas do Brasil inteiro em grupo de apoio”, afirma a assistente social.
“Com exceção do acesso à vacina, o cenário mudou muito pouco. Nós já temos um ano de governo Lula, com o Ministério da Saúde diferente. A gente sabe que eles enfrentaram todo um sucateamento no SUS. Mas percebo que a ação do governo federal ainda é muito tímida em relação aos atravessamentos e as consequências da pandemia de covid.”
Falceta defende que a abordagem mais urgente é a assistência psicossocial, que envolve o atendimento às necessidades sociais, emocionais e de saúde mental e que demanda profissionais de diversas áreas. Esse tipo de serviço já oferecido nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), mas principalmente para pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
“Tem um relato muito coletivo, que é de um luto que não vai acabar. É um luto muito diferente daquele que tu estás esperando uma pessoa morrer por uma doença. É completamente diferente para essas pessoas, que tiveram seus entes arrancadas violentamente da gente”, afirma Falceta.
Um dos relatos mais comuns é sobre uma sensação de “não conseguir se encontrar para viver, como se elas tivessem um estado permanente de zumbi. ‘Eu não estou vivendo, eu estou sobrevivendo’. Claro que tem algumas pessoas que já se recuperaram, mas a grande maioria ainda está assim”;
“Tu viveu um luto violento de ter toda aquela questão do hospital, de saco preto, de não poder enterrar e tu não tem com quem falar. Tiveram 700 mil mortes. Essas famílias estão completamente desassistidas pelo Estado. É uma sensação de injustiça, que é muito típica de violência de Estado.”
Projetos de lei
Um dos projetos de lei que tramita no Congresso Nacional que diz respeito à assistência aos familiares de vítimas da covid-19, como é o caso de órfãos, é da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP). O Projeto de Lei 126/23 prevê um auxílio financeiro às crianças e aos adolescentes órfãos, cuidado psicológico pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e prioridade no atendimento de serviços públicos.
O projeto de Sâmia foi incorporado a outro já existente: o PL 1437/2021, do deputado Célio Silveira (PSDB-GO), que cria o Programa Nacional de Apoio Social e Psicológico a crianças e adolescentes que se tornaram órfãos devido à pandemia causada pela covid-19 (Pronasp).
Também está incluído nesse rol o projeto das deputadas Tia Eron (Republicanos-BA) e Greyce Elias (Avante-MG), que institui o Programa de Proteção às Crianças e Adolescentes Órfãos de Vítimas da Covid-19 e da Violência Doméstica e Familiar (PPCOV). O texto aguarda um parecer do relator na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF).
Sâmia Bomfim analisa que a pandemia trouxe desafios que ainda não foram resolvidos ou atenuados pelo poder público.
“Foram muitos desafios para a sociedade que a pandemia da covid-19 trouxe do ponto de vista sanitário, mas também do ponto de vista humanitário. A temática, por exemplo, dos impactos na saúde mental que trouxe para os familiares que perderam parentes vitimados pela covid, mas também todo o mal-estar social gerado pelo isolamento, pela perda de renda de muitas pessoas ou de vivenciar uma situação de luto geral e coletivo são temas que ainda não tiveram a devida atenção do poder público”.
“Então é fundamental mudar essa perspectiva. Completando quatro anos da chegada definitiva e fatal da covid-19 no Brasil, é preciso ter políticas de reparação e de cuidado, principalmente para crianças e adolescentes que perderam seus pais, o porto seguro, a referência e a renda e que têm uma ferida aberta para o resto de suas vidas”, afirmou ao Brasil de Fato.
“Foram cerca de 113 mil crianças e adolescentes brasileiros que perderam seus pais, mães ou cuidadores de referência durante a pandemia da covid-19. E esse é um impacto que é quase impossível de ser recuperado. A perda emocional, humana, de desenvolvimento, de referência, o que significa ser órfão para essas crianças e adolescentes. Mas tem aspectos que o poder público pode e deve atuar. E é isso que propõem a nossa lei”, afirmou Sâmia.
No Senado Federal, também tramitam dois projetos no mesmo sentido. Um deles é o PL 2291/2021, do senador Humberto Costa (PT-PE), que dispõe sobre a concessão de pensão especial para crianças e adolescentes órfãos. O outro, o PL 2180/ 2021, da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que institui o Fundo de Amparo às Crianças Órfãs pela Covid-19. Ambos estão em análise nas comissões da Casa.
De acordo com Eliziane, o poder público deve garantir “dignidade aos mais de 100 mil menores que perderam pai, mãe e avós por conta da pandemia da covid. E como essa reparação tem que ser feita pelo Estado, é nesse sentido que nosso projeto de lei surgiu para formalizar esse processo”.
“Nossa intenção é instituir um Fundo de amparo que banque um auxílio para essas crianças e adolescentes, cuja família não possua meios para garantir a sobrevivência. A matéria está na Comissão de Direitos Humanos do Senado sob a relatoria do nobre amigo e aliado Humberto Costa. Vamos atuar para que essa pauta, tão importante para esses órfãos da pandemia, seja abraçada por todo o conjunto de senadores”, afirmou a senadora ao Brasil de Fato. “O PL de nossa autoria, que pode gerar mais de 150 milhões de reais para promover o sustento destas famílias pobres, busca recursos, entre outras fontes, na arrecadação de loterias oficiais.”
Por fim, outro projeto nasceu da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, que investigou, ao longo de 2021, as ações e omissões do governo de Jair Bolsonaro (PL) no enfrentamento da pandemia. O PL 3.821/2021, que nasce de um dos pareceres da comissão, prevê a criação de uma pensão especial para crianças e adolescentes órfãos.
O Brasil de Fato questionou se o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e o Ministério da Cidadania têm alguma política pública que busque atender às necessidades dos menores de idade órfãos. Não houve uma resposta, no entanto.
Dados
O governo federal também não tem dados consolidados de quantos menores de idade se tornaram órfãos por perderem os responsáveis legais para a covid-19 em todo o período da pandemia.
Em 2024, o Brasil registrou o maior número de casos de covid-19 do ano na oitava semana epidemiológica, entre 18 e 24 de fevereiro. Foram 69.234 casos registrados e 211 óbitos. O pico de mortes neste ano foi durante a segunda semana epidemiológica, de 7 a 13 de janeiro, com 260 falecimentos. No total, já foram calculados 310.874 casos e 1.536 óbitos entre janeiro e fevereiro, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
Já em relação aos casos graves, de acordo com o último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, até a sexta semana epidemiológica (10 a 16 de fevereiro) do ano foram notificados 4.937 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) hospitalizados, com 41% (2.020) casos com identificação do vírus respiratórios.
Destes, 64% foram em decorrência da covid-19. Em relação aos óbitos, no mesmo período, foram notificados 506 óbitos de SRAG, com 56% (283) de identificação de vírus respiratórios. Destes, 91% foram em decorrência da covid-19.
Fonte: Brasil de Fato