ão Paulo – Há apenas 134 anos a Lei Áurea era sancionada pela filha de Dom Pedro II, a princesa Isabel. Uma data que tem pouco, ou nada, a ser comemorada. O Brasil foi o país com a escravidão mais longa do mundo, 353 anos. Ou seja, passou mais tempo – quase dois terços de sua história – sob regime de escravidão do que de liberdade racial. Pressionada por questões comerciais, a abolição mal feita e incompleta veio sem políticas reparativas de danos. Por isso, as comunidades de ancestralidade negra hoje pouco ou nada comemoram esse ato administrativo da família real.
O professor e ativista Helio Santos, ao comentar a data, classifica o dia seguinte, o 14 de maio, como o mais longo da história. “Porque nos atinge, hoje, nas ruas, nas esquinas, nas cadeias e nas 6,5 mil favelas que se tem no Brasil. O Brasil não é um país desigual, é o país mais desigual do mundo”, afirma ele, presidente do Conselho Deliberativo da Oxfam Brasil, em entrevista ao Brasil de Fato.
“Até 1930, o 13 de maio era um feriado. A partir de 1930 deixou de ser, porque não há o que comemorar. Nós tivemos aqui no Brasil a escravidão mais longa do mundo (…) O 13 de maio foi um grande golpe. Um ano e meio depois, o Brasil edita um decreto a favor da imigração europeia. Um ano e meio depois, foi editada a lei da vadiagem. Vadio era quem não tinha emprego e desempregado crônico é o negro”, explica. Um ano e meio depois era proclamada a República, primeiro golpe militar do país.
Reconhecimento de crimes
A Coalizão Negra por Direitos ingressou ontem (12) no Supremo Tribunal Federal um pedido para que seja reconhecido o genocídio da população negra. “Na semana que marca os 134 anos da Abolição Inconclusa, o movimento negro brasileiro em Coalizão Negra por Direitos realiza uma série de ações para chamar a atenção da sociedade para os impactos da falsa abolição”, afirma a organização em nota.
“Buscamos o reconhecimento por parte do STF de que existe no Brasil uma política de morte à população negra estruturada no racismo. A denúncia do movimento negro é secular, mas segue sem o devido amparo das instituições. Necessitamos que haja comprometimento público em reverter esse cenário”, explica a advogada e diretora do Instituto de Referência Negra Peregum e integrante da Coalizão Negra por Direitos, Sheila de Carvalho.
A entidade apresenta dados que comprovam a tese do genocídio. De 2009 a 2019, houve uma redução de 33% no número de vítimas de homicídio no país. Entretanto, entre os negros, a porcentagem subiu 1,6%. Outros dados ainda foram apresentados, como os de violência obstétrica contra mulheres negras; 10,7% menos mulheres negras receberam anestesia devida durante o processo de parto. Em um cenário de aumento do desemprego, os negros são os mais afetados. Mais de 58% dos lares vítimas de insegurança alimentar grave são chefiados por negros ou pardos.
“Os dados apresentados na ação comprovam o que já alardeamos há tanto tempo, é hora de dar um basta nesse genocídio”, diz o cofundador da Uneafro Brasil e integrante da Coalizão Douglas Belchior. “Estamos cansadas de chorar nossos mortos, de ver mães morrendo de tristeza por essas mortes, quantos mais morrerão nessa guerra que nunca acaba?”, completa a líder do movimento Mães de Maio, Débora Silva. O movimento social também assina a ação.
Conquistas tardias
Por essas razões o movimento negro optou com data relevante o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, que marca a morte do líder do Quilombo dos Palmares, Zumbi. O marco tardio, admitido no calendário oficial apenas neste século, reflete a demora e a resistência da sociedade em reconhecer o estrago promovido pelo holocausto negro. População que é majoritária no Brasil, mas a que mais sofre com desemprego (64% de todos os desempregados são negros), além do racismo institucional, sistêmico, que persiste.
“É importante reconhecer que políticas foram conquistadas pelo movimento social negro. É inegável que a roda do racismo girou, não no ritmo e na velocidade que nós gostaríamos, mas é inegável que aconteceram mudanças. Hoje, é possível discutir uma política antirracista”, afirma Santos. O pesquisador fala sobre a importância de políticas afirmativas, embora tardias, e a discussão sobre políticas antirracistas; algo que foi possível apenas após o fim da ditadura civil-militar (1964-1985). “Em 1984 foi criado o Conselho Negro de São Paulo. Nós estávamos redemocratizando o país. Ou seja, houve todo um silêncio de 96 anos. Uma iniciativa tímida foi a primeira iniciativa do Estado brasileiro após a abolição. Depois criamos ações afirmativas, aqui apelidadas de cotas, que mudaram as universidades.”
Muito a ser feito
Apesar dos avanços, há muito a ser feito. Em ano eleitoral, é inevitável pensar na importância do voto antirracista. O Brasil tem hoje na presidência um político que rejeita a luta antirracista e, inclusive, responde processo por dizer que negros trabalhadores quilombolas “são pesados em arrobas”. Insulto que, nesta semana, voltou a repetir ao ironizar seu processo. “Eu sou um otimista e acho que, este ano, nós vamos discutir o voto antirracista. O voto antirracista não é só o voto do negro. Quem é antirracista e não é negro deve votar sim em candidatos negros. Nós temos um elenco de candidatas e candidatos negros extraordinariamente habilitados”, afirma Santos.
Um dos principais pensadores brasileiros da atualidade, o jurista Silvio de Almeida, argumenta que a luta contra o racismo estrutural passa por pessoas “que não podem temer o poder”. “Qualquer projeto político que queira mudar esse cenário vai ter que pensar na valorização da vida e necessariamente entrar em conflito com as pessoas que desvalorizam a vida”, disse em entrevista ao El País, ainda em 2020.
“O que a gente já chama de desigualdade racial e de desigualdade econômica é naturalizada e é tecnicamente construída a partir da atuação do sistema de Justiça. Ele não produz apenas efeitos políticos, mas também no imaginário. Por exemplo, ao insistir na associação de pessoas negras com criminalidade e com pobreza. Funciona como confirmação de um imaginário social racista, que também é o mesmo imaginário que alimenta a conivência ou nossa indiferença em relação às mortes que ocorrem nas periferias do mundo”, completa.
Fonte: Rede Brasil Atual/Brasil de Fato