Desigualdades raciais e de gênero dificultam o acesso à prevenção e tratamento, elevando as taxas de mortalidade entre mulheres negras em um sistema de saúde que ainda silencia suas necessidades
As desigualdades raciais no Brasil se estendem para diversas áreas da vida, e a saúde é uma das mais impactadas. As mulheres negras, por exemplo, precisam lutar contra barreiras impostas pelo racismo e sexismo que dificultam o acesso à prevenção, diagnóstico e tratamento de diversas doenças.
No campo da oncologia, a situação é ainda mais difícil. A falta de políticas públicas voltadas para a realidade dessas mulheres contribui para um ciclo de exclusão, que não só atrasa diagnósticos, mas também eleva as taxas de mortalidade.
O câncer de mama é a principal causa de morte por câncer entre mulheres no Brasil, representando 16,5% dos óbitos. Dados do INCA (Instituto Nacional de Câncer) revelam que mulheres negras têm 57% mais probabilidade de morrer por essa doença em comparação às brancas, evidenciando uma combinação de fatores biológicos e sociais que as colocam em desvantagem.
Para entender melhor os fatores biológicos envolvidos, o INCA avaliou não apenas a cor da pele autodeclarada, mas também a ancestralidade genética, uma abordagem que pode identificar variantes específicas que aumentam o risco de câncer de mama triplo-negativo (TNBC).
Este subtipo, marcado pela agressividade, tem uma prevalência preocupante entre mulheres negras e, por não reagir aos tratamentos hormonais convencionais, torna o prognóstico ainda mais complicado.
Ainda segundo o INCA, apenas 56,5% das mulheres pretas e 54,4% das pardas fizeram o exame de mamografia nos últimos dois anos, uma taxa inferior à das mulheres brancas, destacando a dificuldade de acesso a exames preventivos.
Essa desigualdade é ainda mais marcante nas regiões Norte e Nordeste, onde a cobertura de mamografias entre mulheres negras e pardas é ainda menor. No Norte, por exemplo, o câncer de mama ocupa o segundo lugar em óbitos, com 14,7%, ficando atrás apenas do câncer de colo do útero, uma doença que também afeta desproporcionalmente mulheres negras.
O câncer de mama em Londrina
Os dados do Hospital do Câncer de Londrina referentes a 2022 evidenciam que, de 448 casos de mulheres atendidas com câncer de mama, 340 eram brancas, representando 76% do total. Em contraste, apenas 22 mulheres pretas foram diagnosticadas e tratadas no mesmo período, o que equivale a 5%. Mulheres pardas somaram 16%, enquanto amarelas somaram 1% e entre indígenas, não foram registrados casos.
Iracema Fabian, voluntária no Hospital do Câncer de Londrina, destaca que os números refletem a desigualdade. “A partir dos dados que analisamos e também da experiência prática no hospital, percebo que, infelizmente, as desigualdades no acesso à saúde ainda são uma realidade que afeta diretamente a busca por tratamento entre grupos raciais diferentes”, afirma.
Ela aponta que, apesar da maior incidência de câncer de mama em mulheres brancas, mulheres negras enfrentam obstáculos ainda mais complexos. “Embora a incidência do câncer de mama seja predominante em mulheres brancas, vemos que mulheres negras e pardas enfrentam, muitas vezes, maiores barreiras para obter o diagnóstico precoce e iniciar o tratamento de forma adequada”, observa.
Essas barreiras, segundo Fabian, vão além dos fatores de saúde propriamente ditos. “Fatores como condições socioeconômicas, falta de acesso a informações de qualidade e até barreiras geográficas acabam impactando diretamente essas mulheres”, assinala.
Iracema também observa que a instituição está ciente dessas barreiras e tem buscado formas de enfrentá-las. “No hospital, estamos sempre buscando maneiras de reduzir essas desigualdades, promovendo mais inclusão e suporte para que todas as pacientes, independentemente de cor ou classe social, tenham acesso ao tratamento necessário”, afirma.
Outubro Rosa
O Outubro Rosa é um movimento internacional que ocorre durante todo o mês de outubro, dedicado à conscientização sobre a prevenção e o diagnóstico precoce do câncer de mama. Iniciado na década de 1990 nos Estados Unidos, o movimento ganhou força após a aprovação do Congresso Americano, que reconheceu o mês como um período de prevenção contra essa doença.
No Brasil, o Outubro Rosa começou a ganhar visibilidade em 2002, quando o Obelisco do Ibirapuera, em São Paulo, foi iluminado em rosa. A partir de 2008, a mobilização se intensificou em várias cidades, com campanhas, corridas e a iluminação de monumentos históricos.
Os nódulos malignos podem ser tão pequenos que não são detectados durante o autoexame das mamas. Por isso, a campanha Outubro Rosa enfatiza a importância da prevenção por meio de exames de imagem, como a mamografia, por exemplo.
A Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) recomenda que mulheres a partir dos 40 anos realizem a mamografia anualmente. Para aquelas com histórico familiar de câncer de mama, especialmente, se mãe ou irmãs foram diagnosticadas antes dos 40 anos, é aconselhável iniciar os exames mais cedo.
Esses exames são fundamentais para o diagnóstico precoce do câncer de mama, aumentando significativamente as chances de cura. Segundo a SBM, a mortalidade pode ser reduzida em até 30% quando o câncer é detectado em estágios iniciais.
Mesmo em campanhas amplamente conhecidas como essa, a questão racial raramente é abordada de maneira evidente e incisiva. O silêncio em torno dessa realidade perpetua um ciclo de negligência que reforça as barreiras de acesso à saúde para mulheres negras.
Mais informações sobre a campanha Outubro Rosa podem ser encontradas aqui.
Desafios na busca pelo diagnóstico
Dalila Cristina dos Santos, 43, uma mulher negra que passou por tratamento oncológico de câncer de mama, compartilhou um pouco de sua trajetória. “Tudo começou com exames de rotina, mamografia e ultrassom. A mamografia apontou alterações, mas a ultrassom não. Repeti o ultrassom, e o médico me disse para ficar tranquila, que era apenas gordura. Fiz o exame com dois médicos diferentes, e ambos afirmaram que não era nada preocupante, apenas gordura. Até então, eu estava tranquila por não saber o resultado real”, relembra.
Ela também destaca a precariedade do atendimento durante o Outubro Rosa. “Fui a uma consulta no Cismepar [Consórcio Intermunicipal de Saúde do Médio Paranapanema] com uma mastologista, mas nem fui atendida direito porque precisava fazer uma biópsia, e não tinham agulha para realizar o procedimento. Em pleno Outubro Rosa, mês de campanha, e não havia o material necessário”, compartilha.
Dalila só conseguiu o diagnóstico graças ao apoio de sua família, que pagou por uma biópsia particular. “Depois do resultado, não foi fácil receber um diagnóstico assim. Mas aí começou outra luta, para conseguir uma consulta rápida no Hospital do Câncer”, ela afirma.
Dalila relata os desafios que enfrentou ao passar do atendimento particular para o SUS (Sistema Único de Saúde) durante o tratamento de câncer de mama. “Até então, quando eu estava fazendo particular, ia ser mais rápido, porque eu estava pagando. Mas, a partir do momento que precisei passar para o SUS, começou a burocracia. Tive que levar toda a documentação, exames, biópsia, laudo, e resultados de exames para o posto de saúde, e o posto mandava para a Secretaria de Saúde”, comenta.
Ela enfrentou ainda mais dificuldades quando os resultados dos exames foram extraviados. “Acabaram perdendo o resultado da biópsia. Eu ia ao posto de saúde para saber o que estava acontecendo, e me disseram que faltava documentação, sendo que eu já tinha entregado tudo. Tive que levar tudo de novo, e nisso o tempo ia passando”, explica Dalila.
Apesar de todos os obstáculos, ela não ficou de braços cruzados. Ciente de que a biópsia era urgente, optou por recorrer a serviços particulares, mas reconhece que essa opção não é acessível a todos, já que muitas pessoas não têm condições de arcar com os custos de um procedimento particular.
Dados do Ministério da Saúde indicam que cerca de 75% da população brasileira depende exclusivamente do SUS para ter acesso a consultas, exames e demais cuidados. No caso, de mulheres negras, salienta-se que, elas constituem o grupo de menor renda no país, ocupando a base da pirâmide social.
Ela conta que iniciou o tratamento no Hospital do Câncer em dezembro e foi apenas em fevereiro que o Cismepar entrou em contato para agendar a biópsia. “Olha o tempo que passou, de dezembro a fevereiro. Quando me ligaram, agradeci a todos, mas informei que já estava em tratamento e até fazendo quimioterapia”, ressaltou.
Ainda em tratamento no Hospital do Câncer de Londrina, Dalila elogia o atendimento recebido. “A equipe é muito atenciosa em relação ao tratamento e ao cuidado com o paciente. Não tenho mais do que reclamar, foi só no começo que enfrentei dificuldades, principalmente, para conseguir essa consulta inicial e com a falta de material necessário para fazer os exames”, ela afirma.
Matéria pela estagiária Fernanda Soares sob supervisão.