Faz parte da rotina de trabalhadores da cultura no Brasil lidar com editais de fomento. Artistas e produtores culturais propõem seus projetos, situando-se em uma ponta de um processo feito de inúmeras etapas, muitas burocráticas, que envolvem secretarias municipais, estaduais, Ministério da Cultura e empresas – no caso de leis de incentivo, como a Lei Rouanet.
Quem está do outro lado, na ponta de lá — avaliando cada projeto submetido a vaga para receber um recurso ou premiação — é um grupo de profissionais responsáveis por avaliar os projetos submetidos acerca de suas qualidades técnicas e artísticas, viabilidades, e adequações às regras dos editais em que foram inscritos. Os pareceristas são trabalhadores qualificados, com expertise em determinadas linguagens ou áreas do fazer cultural, contratados via chamadas públicas, para emitir pareceres sobre cada projeto que chega nos processos de seleção.
Não há edital sem a atuação de pareceristas, mas, apesar de essenciais, os profissionais que atuam há pelo menos cinco anos no campo, sentem uma desvalorização generalizada da profissão, que se repete em cidades e estados de todas as regiões do país. A Mestra em Processos e Manifestações Culturais Denise Azeredo atua como parecerista desde 2017 em editais das cinco regiões do país. Fundadora do Ponto de Cultura Raízes da Paz, localizado em Novo Hamburgo (RS), ela percebe que há uma capacitação insuficiente para que a função seja realizada.
Durante a execução da Lei Paulo Gustavo, embora houvesse modelos de aplicação oferecidos pelo MinC, cada secretaria formulou o edital autonomamente. Segundo Denise, a falta de padronização criou brechas, itens confusos, “juridiquez”, fazendo com que muitas dúvidas surgissem aos avaliadores. “É unânime a necessidade de capacitação dos pareceristas nas instituições culturais. Para avaliar um projeto de cultura popular, você precisa saber o valor de um atabaque, por exemplo”, explica sobre a necessidade de qualificação em cada linguagem cultural. Os pareceristas técnicos em sua grande maioria com formação superior são atuantes em seus segmentos e precisam ter experiência comprovada através de portfólio.
Em fevereiro deste ano, um grupo de 201 profissionais pareceristas assinaram uma carta destinada a gestores culturais. Em maio, mais de 100 pareceristas brasileiros reuniram-se virtualmente para o Seminário Ocupação Parecerista. Ambas realizadas de forma autônoma e autogestionada, as iniciativas fazem parte do esforço dos profissionais para que suas demandas sejam visíveis.
O documento final a que o Nonada Jornalismo teve acesso exclusivo, de 17 páginas, sistematiza as propostas dos profissionais para o setor, como regras de contratação, banco de dados e orientações dos pareceristas, remuneração de acordo com o número de projetos, responsabilidades e direitos dos trabalhadores. O Nonada também conversou com profissionais que atuam como pareceristas há alguns anos para entender os desafios. A maioria preferiu não se identificar com receio de não conseguir mais trabalhos na área.
Pagamentos demorados
A falta de seguridade financeira é uma das dificuldades enfrentadas pelos avaliadores. Denise Azeredo conta que já encontrou diversos processos seletivos para a função que anunciavam um pagamento fixo independente da quantidade de projetos avaliados. A coreógrafa, nascida na Paraíba, decidiu parar de se inscrever neste modelo de seleção após, durante um edital em que já estava contratada, receber 40 projetos quando a previsão era de 15.
Após concluir o trabalho, a remuneração torna-se um novo desafio para os pareceristas. Durante o Governo Bolsonaro, na vigência da pasta Secretaria Especial de Cultura e durante a extinção do MinC, a coreógrafa relata que realizou quatro trabalhos que nunca foram pagos. Atualmente, sob a nova gestão, isso nunca aconteceu, mas a demora para receber o cachê é percebida por vários profissionais.
Os pareceristas chegam a demorar quatro meses, após a finalização dos pareceres, para serem pagos. A angústia de não saber quando o pagamento será efetuado gera uma dificuldade de planejamento por parte dos profissionais, estresse, e ansiedade. Se por um lado, a realização dos pareceres é demandada em um prazo curto, o pós não acontece com a mesma agilidade.
Para José Luís de Freitas, parecerista e gestor cultural há mais de 15 anos em São Paulo, há atualmente uma melhora no quadro quando comparado às últimas gestões. “A distribuição dos projetos entre os pareceristas parece ter melhorado. Antes a transparência e a distribuição de propostas praticamente não existia. Fiz 3 aditamentos sem receber propostas, até que no Governo do Bolsonaro eu e outros 174 pareceristas simplesmente fomos excluídos dos processos de análise em 2021.”
Entretanto, segundo ele, o trabalho continua precarizado. “As condições de trabalho ainda são insalubres porque não existe cumprimento de prazos – o que torna a atividade de parecerista muito imprevisível e sem segurança jurídica. Os processos de análise se iniciam sem empenhos de pagamento e contratos com prazos definidos em muitas cidades do Brasil ainda.”
Segundo Joana*, há uma falta de transparência nos editais da LPG, que costumam deixar vagas as informações sobre pagamento dos trabalhadores. “Os editais dizem que a remuneração será realizada após 30 dias de emissão da Nota Fiscal, porém você pode fazer um trabalho em novembro e a secretaria pedir a NF apenas em abril. Já fiz parecer em três dias, durante um final de semana, para receber cinco meses depois. Eu precisei cobrar muito para ser paga, e nunca recebia retorno. Essa situação nos deixa muito desprotegidos.”
Joana* atuou em 3 municípios e 2 estados diferentes como parecerista da LPG e vivenciou diversas vezes a insegurança do pagamento atrasado. Segundo ela, há um entendimento de algumas secretarias de que os avaliadores só poderiam receber após os resultados serem homologados, porém muitas vezes não são informados se responderão aos recursos. O pagamento paira na incerteza e em uma falta de respostas percebida por todos os profissionais entrevistados. Embora os relatos se concentrem na execução da LPG, Joana* atua em outros editais de fomento, a situação é similar.
A musicóloga Adriana Martins, natural de São Paulo, atua nas áreas de educação, cultura e produção cultural há mais de duas décadas. Para ela, o cronograma só funciona para um lado. “Eles querem que sejamos rápidos, mas nunca há prazo para nosso pagamento.” Segundo a parecerista, os valores são muito baixos comparado a uma carga horário que costuma ser extensa e intensa. “Normalmente, já trabalhamos com prazos muito curtos para avaliar os projetos. Até hoje, eu nunca trabalhei com calma. Sempre é com pressa”, ressalta.
Carga de trabalho desproporcional
Durante a execução da Lei Paulo Gustavo, Adriana explica que chegou a receber 80 projetos grandes, com volume extenso de anexos cada, considerados de média complexidade, para serem avaliados em um prazo de 7 dias. Nesses momentos, a carga horária chega a 12 horas de trabalho por dia, na frente do computador, sem pausas. “É um trabalho que produz muito estresse. Eu estava ficando ansiosa, nervosa, cheguei a pensar em parar, mas eu não quero deixar de ser parecerista. É um trabalho interessante, online, que oferece muitas possibilidades.”
Segundo o documento elaborado pelo grupo Ocupação Parecerista, o tempo para essa quantidade de projetos deveria ser de no mínimo 22 dias corridos. O jornalista José Luís também ressalta a demanda que a profissão exige: “Pode não parecer, mas envolve muita concentração intelectual para ser preciso, eficiente e o mais justo possível com os proponentes.”
Em outro estado**, durante a execução da LPG, Adriana vivenciou o contrário: recebeu apenas dois projetos para avaliar. “Contrataram muitos pareceristas e cada profissional ficou com uma quantidade irrisória de projetos. É complicado, porque você não consegue ter um olhar amplo, de grande angular, para a cultura daquele lugar. O trabalho do parecerista também é olhar o todo daquilo que recebe, e com dois projetos é impossível”, explica. “Tem que ter um equilíbrio entre quantidade de projetos e o número de avaliadores. A maioria das secretarias não consegue ter esse discernimento”, avalia.
Além disso, os projetos que recebeu não eram da área em que Adriana estava habilitada para avaliar. Especializada em culturas populares, dança e música, deparou-se com dois trabalhos de audiovisual. Nesse caso, ela desistiu de continuar atuando no edital. Segundo ela, há uma falta de comunicação generalizada com as secretarias, tanto estaduais, quanto municipais.
“Nosso trabalho é feito em cima de editais. Muitos foram mal formulados, continham brechas, erros, e itens não relevantes como critérios de seleção”, explica. Adriana conta que, em muitos casos, as dúvidas não eram respondidas, ou então o retorno das secretarias era confuso. “Nós, pareceristas, nos sentimos desrespeitados por muitas secretarias que nem mesmo conversaram com a gente sobre detalhes dos editais. Muitos têm brechas, então, o diálogo é fundamental. Para efetuar pareceres justos, eu preciso de suporte.”
Dificuldades começam no Edital de Pareceristas
Os pareceristas relatam que, muitos municípios, não fizeram seleção pública para contratação dos profissionais, ou limitaram a inscrição apenas para pessoas da mesma região. Para José Luís de Freitas, esse é um problema a ser combatido, e que poderia ser aprimorado caso gestores de municípios pudessem centralizar em uma plataforma, mais intuitiva que a atual, a padronização dos editais.
“Tem muito gestor que escolhe sua comissão de seleção e precisa ser da própria cidade. A meu ver é um retrocesso quando leio esse tipo de impedimento no edital. Existem, ainda, aqueles que só aceitam inscrições em papel impresso. Em pleno século XXI ter que levar documentação impressa é um atraso colossal. Talvez a plataforma que sistematizasse e obrigasse os municípios a se cadastrarem e operarem por ela facilitaria muito os processos e melhoraria a transparência, fiscalização e operacionalização dos recursos federais de fomento à cultura”, sugere.
Uma das 131 moções apresentadas na 4ª Conferência Nacional de Cultura, realizada em março em Brasília, tratava da necessidade de regulamentar a atividade de parecerista. Para José, essa é uma das urgências para proteger esses trabalhadores, evitar uma evasão ou desqualificação da função e valorizar os profissionais.
“Estamos descobertos juridicamente e em geral, a formação escolar e experiência profissional de um parecerista é superior a 15 anos de dedicação acadêmica e/ou com produção e gestão cultural. Temos um perfil interdisciplinar e dedicado aos estudos e soluções de políticas públicas eficientes. Ajudamos diversos governos a resolver meses de gargalos técnicos e auxiliar na melhor tomada de decisões técnicas. Sem pareceristas qualificados a cultura como política pública simplesmente não funciona direito”, avalia.
Nota do Ministério da Cultura
Questionado por email se está a par das demandas dos pareceristas e se há políticas pensadas para a categoria, o Ministério da Cultura respondeu que “está atento às demandas do setor e, em conjunto com as partes interessadas, busca avançar na construção de materiais de orientação de boas práticas, de diálogo e de articulação entre gestores e associações e grupos de pareceristas”.
O órgão afirmou ainda que “cabe ressaltar que o MinC monitora o descumprimento de regras dos contratos e editais ou eventuais fraudes. E caso haja algum tipo de denúncia, qualquer cidadão deve enviar à Ouvidoria da pasta, com provas ou apontando os indícios concretos do ocorrido. O MinC se coloca à disposição para o diálogo e cooperação junto ao segmento para que possamos pensar juntos em melhores soluções e avançarmos no desenvolvimento das políticas públicas”.
* Nome ocultado para preservar a identidade da fonte;
**O Nonada optou por não divulgar a informação do estado correspondente, com intuito de proteger a entrevistada e a lisura do processo. Nossa intenção com a reportagem é visibilizar a situação dos profissionais pareceristas e suas condições de trabalho, sem especificar denúncias municipais ou estaduais;
***O Nonada foi contemplado em 2024 no edital Arranjos Colaborativos da Secretaria Estadual de Cultura do RS por meio da Lei Paulo Gustavo.
Fonte: Nonada