Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) choca pelos relatos de desumanidades
Um relatório de 217 páginas, elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), mostra o verdadeiro inferno que são os estabelecimentos penais no Paraná. No período de 16 a 20 de maio deste ano, quatro peritas do órgão, que é ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, visitaram nove unidades na Região Metropolitana de Curitiba (RMC) e em Paranaguá.
O MNPCT tem a função de inspecionar regularmente os espaços de privação de liberdade em todo o País. Os relatos feitos pelas peritas, bem como as fotos tiradas por elas, não deixam dúvidas sobre a crueldade imposta aos detentos e detentas nesses locais.
Frio, fome, privação de água potável, falta de higiene e castigos aplicados pelas forças de segurança são alguns dos fatos apontados no relatório.
Estas ilegalidades ferem um conjunto de regras nacionais e internacionais como o Protocolo de Istambul , as Regras de Mandela e a própria lei de Execução Penal Brasileira.
“Vale ressaltar que nossa inspeção aconteceu em uma semana em que as temperaturas chegaram a 2ºC e o número insuficiente de cobertores e uniformes de inverno foi constatado em todas as unidades”, diz o relatório.
“Outra similaridade encontrada nas unidades inspecionadas foi a escassez de água potável disponibilizada nas celas. O não acesso à água potável configura desrespeito às Regras de Mandela.”
Os relatos mais chocantes feitos pelas peritas estão relacionados ao Complexo Médico Penal (CMP), em Pinhais. Trata-se de um estabelecimento que abriga presos e presas provisórios e condenados, geralmente em tratamento de saúde.
“Em algumas celas, os custodiados estavam dormindo no chão sem colchão. Na ala feminina, reforçaram-se as reclamações frente à falta de comida, sua má qualidade, comida sem tempero, recebimento de comidas azedas, pedaços de pedras e madeiras encontradas na comida e café com leite azedo.”
Segundo as peritas, as presas se queixam da proliferação de aranhas nas celas, sendo que “muitas apresentam picadas” pelo corpo.
A situação é ainda pior para as pessoas com deficiência que estão no CMP. “As celas não dispõem de abertura suficiente para que as pessoas presas possam utilizar o vaso sanitário e houve muitos relatos de que a maioria fazia suas necessidades fisiológicas no chão.”
Sobre os doentes mentais, as peritas escreveram haver “total despreparo” dos agentes penais em lidar com eles. “Não sabem manejar crises, nunca ouviram falar em pródomos – sinais, comportamentos que antecedem uma crise (não tem formação para isso).”
Relatam ainda terem ouvido de uma pessoa da área da saúde “que não desce para as galerias porque não poderia se olhar no espelho depois, tamanhos os horrores que acontecem.”
Morando no sistema
Algumas pessoas, apesar de terem a liberdade já decretada pela Justiça, moram no CMP. São os “asilares”, pessoas com doenças mentais que as famílias não querem ou não podem receber de volta.
“As celas do complexo que abrigam os asilares são inadequadas, com infiltração nas paredes, escuras e pouca ventilação. Encontramos detentos dormindo em colchão no chão frio, com poucos cobertores.”
As medicações são separadas pela equipe de enfermagem e entregues para cada cinco dias aos pacientes pelos “faxinas” – presos que fazem serviços internos nas cadeias. O fato é considerado grave porque a medicação tende a virar moeda de troca dentro do sistema e porque não há nenhum controle se as pessoas, principalmente as com doenças mentais, tomam a medicação.
“As consequências da ingestão de forma inadequada ou não ingestão dos medicamentos pode proporcionar surtos cada vez mais graves, ocasionando uma demora na sua alta do sistema, bem como tentativas de suicídio pelo acúmulo de medicamentos”, diz o relatório.
As peritas constataram a presença de detentos com vários tipos de doença em estágio avançado, que estavam acamados. Viram “um rapaz com HIV que estava deitado na cama e seu corpo tremia todo”. “Segundo os internos, ele está naquela situação há oito meses, praticamente em fase terminal”, segundo o relatório.
SOE ‘toca terror’
O Setor de Operações Especiais (SOE), grupo de intervenção prisional que atua em situações de crises nas unidades prisionais, é o terror dos presos, conforme o relatório.
“Em três meses, estiveram no CMP cinco vezes, de acordo com os relatos dos internos. O SOE faz revistas nas celas e entra lançando bombas de efeito moral/lacrimogêneo, além de armas de fogo e batem nos internos com cacetete (conforme vários relatos).”
Os detentos são colocados “amontoados” em celas. “…O SOE joga água no chão, spray de pimenta, balas de elastômero e os internos passam mal na atmosfera irrespirável”.
Masmorra
Na Delegacia Regional de Pinhais, as peritas encontraram presos sem agasalhos que estavam dormindo no chão sobre papelão.
“A Delegacia possui uma estrutura de celas que nos rememora a uma masmorra. Para termos acesso à parte interna das celas, tínhamos que nos agachar para adentrar, pois a porta chapeada estava com defeito e não abria.”
Segundo relatos dos internos, há ratos no local.
Suicídio
Poucos dias antes da inspeção, um jovem de 23 anos se enforcou com seu moletom no Centro de Triagem 1 da Polícia Civil, em Curitiba. Sem passagem anterior pelo sistema, ele teria tirado a própria vida cinco dias após a prisão.
“Nas entrevistas, as pessoas presas relataram quantidade insuficiente de alimentação, que muitas vezes vem com mais farinha.” As peritas tiraram uma foto mostrando que mesmo colocando a marmita na vertical, a alimentação fica grudada na vasilha.
Castigos
Na Cadeia Púbica da capital, segundo o relatório, há relatos de que presos são torturados. “Em algumas celas, os custodiados informaram que frequentemente são acordados com jatos intensos da referida substância (spray de pimenta) e, ao serem questionados sobre os motivos, eles frisaram que alguns policiais penais, quase que diariamente, fazem isso a troco de nada…”
Já na Cadeia Pública de Paranaguá, as peritas tiveram dificuldade de realizar seu trabalho devido ao mau cheiro. “Ainda cabe destacar as condições sub-humanas das celas destinadas ao seguro. Ao adentrar tais espaços para realizar o registro fotográfico, tivemos contato com a atmosfera irrespirável daquele ambiente. Os colchões colocados diretamente no chão, embebidos em água oriunda da estrutura sanitária, deixava os colchões molhados, com odor fétido e completamente impróprios para a utilização.”
Na Penitenciária Feminina do Paraná, as peritas descobriram que, somente no último ano, houve três suicídios, dois com medicações e um por enforcamento.
Já na Casa de Custódia de Piraquara (CCP), ouviram que presos por delitos sexuais e crimes considerados graves são colocados pelos policiais penais em cela coletiva para que sejam agredidos ou mortos pelos colegas de cela.
“Em caso de resistência por parte dos demais custodiados em anuir com a barbárie, há retaliação por parte dos agentes da unidade.”
Ao final, o relatório faz dezenas de recomendações às unidades prisionais, ao governo do Estado, ao Ministério Público Estadual, à Defensoria Pública, ao Tribunal de Justiça e ao Conselho da Criança e do Adolescente do Estado.
A reportagem da Lume solicitou posicionamento da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) sobre o relatório, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.
Fonte: Redação Rede Lume