“Pode entrar, doutor. A casa é sua…” Houve um tempo em que esta frase era bem comum. Os médicos, apesar de bem menos que hoje, atendiam mais as pessoas em suas casas. Era, por exemplo, aqui no interior do Paraná, época das grandes fazendas (e muitos pequenos sítios) de café. As fazendas com suas “colônias” cheias de moradores e os pequenos sítios tocados por seus donos e suas grandes famílias.
E os médicos, vindos de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco… instalavam-se pelo interior e iam atender as pessoas onde elas estavam. Lombo de cavalo, velhos Jeeps de capota de lona, sob sol, sob chuva, amassando o grudento ou escorregadio barro vermelho dos carreadores de cafezais, eles iam.
E eram recebidos quase em festa, nas “colônias”. Ganhavam patos, galinhas, frangos, leitoas, mandioca, frutas e que tais. Recebiam pelo atendimento só depois da colheita. Eram médicos da família toda: do nenê ao vovô, passando pelas gestantes e os demais.
Eram os tempos áureos do café, que atendia a demanda dos países ricos e compradores que precisavam do café brasileiro. Equilibrava a balança comercial e as contas do país. E mantinha a maioria das pessoas na zona rural.
Mas, as coisas mudam. Os países compradores passaram a ter necessidade de soja e não mais do café do Brasil. E o governo passou a estimular a eliminação dos cafezais, a concentração de terras em fazendas maiores para viabilizar a demanda externa por soja. Os moradores das terras do café foram de certa forma expulsos para as periferias das grandes cidades, no mesmo momento que vivíamos governos autoritários que ofereciam um sistema de saúde baseado exclusivamente no sistema previdenciário, que deixava de fora do atendimento a maioria dos brasileiros.
Assim, pouca gente no campo, muita gente nas cidades, baixa cobertura de assistência médica, má remuneração, etc… a relação médico (de família) X paciente, rompeu-se. Não se chamavam mais pelos nomes: eram os médicos “aquele gordo”, “aquele magro”, “ o barbudo”, “o careca”, etc. e eram os pacientes “a dona Maria”, “seo José”, “ o tiozinho”, “a tia”, “o vô ou a vó”, enfim “o próximooo!”.
Mas… as coisas mudam… este sistema excludente e impessoal faliu. O autoritarismo ruiu. Veio o SUS e, muito embora a impessoalidade ainda persistiu, com ele veio também o germe da possibilidade de restabelecimento da antiga relação sob novas bases. Reorganizou-se e fortaleceu (ainda que de forma insuficiente) a atenção básica à saúde com suas UBSs, com o PSF, com os agentes comunitários de saúde, com os programas de visitas domiciliares, o programa Melhor em Casa de internação domiciliar, entre tantos outros.
Nasceram as residências médicas de Saúde da Família e Comunidade formando médicos nesta área como uma especialidade profissional, colocando, ainda que incipientemente, Médicos de Família na rede assistencial básica, formados como especialistas nesta área, preparados técnica e emocionalmente para tanto. Se quisermos um sistema baseado na Atenção Primária à Saúde de forma integral que funcione, cada vez mais vamos precisar deste profissional (além de todos os demais, é claro!).
Afinal, mesmo massificadamente morando nas periferias das cidades, com demandas muito diferentes de antes, as pessoas continuam necessitando de uma relação com os médicos e profissionais de saúde que tenham a carga de vínculo que havia nos antigos Médicos da Família.
Texto: Gilberto Martin, médico sanitarista