Política existe desde 2003 e passa por redimensionamento, somando-se a outras ações de combate à fome
Um dos pontos de destaque da agenda social do governo Lula (PT), a proposta que relança o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) pode ser votada nesta quarta-feira (5) no plenário da Câmara dos Deputados. O texto estava inicialmente previsto na agenda de terça (4), mas a ordem do dia acabou sufocada pelas articulações que envolvem outras duas pautas de interesse da gestão, a reforma tributária e a medida legislativa que trata de julgamentos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf). A proposta sobre o PAA tramita como Projeto de Lei (PL) 2920/23 e tem parecer favorável do relator, o deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP).
De autoria do Poder Executivo, o texto resulta da Medida Provisória 1166, que não chegou a ser votada e acabou tendo o conteúdo recuperado via projeto de lei. O PL consiste basicamente em fortalecer o segmento da agricultura familiar por meio a aquisição de produtos que devem ser doados a pessoas em situação mais vulnerável. Estão no roteiro do programa, por exemplo, a aquisição e a doação de leite, as compras institucionais de alimentos e o apoio à formação de estoques de gêneros alimentícios.
“O PAA tem o mérito de atuar nessas duas pontas. Muitas vezes, para aquele agricultor que não tem condições de colocar o seu produto no mercado, é através do PAA que ele consegue garantir a sua venda. E, na outra ponta, o PAA faz uma política consistente de combate à fome, particularmente nas periferias urbanas, interiores, ou seja, nas regiões mais pobres do país”, ressalta Boulos, que apresentou o relatório sobre o projeto no último dia 20 em plenário.
O programa existe desde 2003, ano do primeiro governo Lula. Segundo dados oficiais do governo federal, de lá para cá, a política beneficiou mais de 500 mil agricultores familiares e investiu mais de R$ 8 bilhões na compra de alimentos, sendo 50% deles canalizados para municípios com população entre 10 mil e 50 mil habitantes. O PAA atende uma média de 15 mil entidades por ano para comprar gêneros alimentícios de produtores.
O texto do PL 2920 prevê que tenham acesso prioritário ao programa os agricultores familiares inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e aqueles vinculados aos subgrupos dos indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária, negros, mulheres e juventude rural, os quais compreendem diferentes categorias do campo da agricultura familiar.
“São segmentos mais vulneráveis, por isso também devemos considerar ainda os idosos, pessoas com deficiência, mulheres agricultoras que sejam chefes de família, que muitas vezes são mães solo. Parte desses segmentos já veio no PL original, outra parte foi acrescentada por emendas sugeridas por parlamentares. É preciso considerar as condições desiguais de acesso de vários setores da sociedade e buscar mitigar essas desigualdades”, defende o relator.
Cozinha Solidária
O grande destaque do texto de Boulos é a criação do programa Cozinha Solidária, que não está previsto no projeto original, mas foi incorporado ao PL pelo relator como medida de combate à insegurança alimentar e nutricional e como forma de garantir regularidade ao fornecimento de comida à população mais vulnerável. Demandado e disseminado por movimentos populares, o programa, caso aprovado, ficaria a cargo da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instância ligada ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Boulos propõe que a pasta fique responsável por organizar, estruturar e definir critérios a serem adotados pela política.
A ideia é que o programa seja um dos destinos dos alimentos adquiridos por meio do PAA. “As Cozinhas Solidárias são uma forma de você chegar na ponta, chegar às pessoas que estão precisando mais, onde você tem o mapa da fome materializado. São pessoas que hoje estão vivendo em comunidades, periferias, áreas de risco, favelas e não têm o que dar aos filhos. É você fazer uma política pública chegar ali de forma direta”, ressalta o relator, que tem base política na periferia e é uma das lideranças nacionais do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), o que lhe fez conhecer de perto a sistemática desses projetos.
Boulos pontua que essa tecnologia social difere da experiência dos restaurantes populares, por exemplo. “Estes últimos, em geral, estão localizados em centros comerciais, grandes avenidas. Eles não estão na comunidade e às vezes a pessoa não tem nem o dinheiro da passagem do ônibus pra chegar até lá. Já a Cozinha Solidária foi uma experiência iniciada pelos movimentos. O MTST, por exemplo, fez mais de 40 Cozinhas Solidárias – e outras organizações fizeram também – em vários lugares do país durante a pandemia. Essas experiências mostraram que isso é viável para o país”, ressalta o relator.
A ampliação da vulnerabilidade alimentar de uma parte da população brasileira fez o país retornar ao Mapa da Fome, da Organização das Nações Unidas (ONU), do qual havia saído desde 2014. Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, publicado em 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mais de 33 milhões de pessoas no país não têm garantido o que comer. A pesquisa identificou que 58,7% da população nacional vivem em situação da insegurança alimentar em algum grau, seja leve, moderado ou grave.
Estudiosa do tema das cozinhas solidárias, a pesquisadora de pós-doutorado Denise de Sordi, que atua na Universidade de São Paulo (USP) e na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), assinala que esse tipo de política pública tem grande relevância para o combate ao empobrecimento, problemática em que o Brasil ganhou destaque negativo nos últimos anos, sob a regência do governo Bolsonaro, e que tem relação estreita com a fome.
“Quando a gente tem uma condição de fome generalizada, é porque o combate ao empobrecimento dos trabalhadores deu errado em algum momento. O quadro de fome não aparece do nada. O PAA volta, então, no interior de um debate que tenta integrar o combate à fome com uma alimentação diversificada e também o combate à pobreza e à fome tanto no campo quanto na cidade”, examina a pesquisadora.
Denise de Sordi aponta ainda que, no atual contexto, o programa é bastante simbólico. “Acho que ele volta numa perspectiva de um debate que já está um pouco mais avançado, pelo próprio ciclo de desenvolvimento de políticas sociais que a gente viveu até mais ou menos 2016. Tivemos um intervalo com um retrocesso bastante grande, mas agora tem a necessidade não só de integrar isso com o combate à pobreza, mas também de dar uma atenção especial ao agricultor familiar.”
Votação
A respeito da votação do PL 2920, o relator diz não ver grandes resistências ao texto, o que indica uma provável facilidade na aprovação da proposta. “Acredito que seja aprovado com ampla maioria, ainda mais com a incorporação de emendas de forma suprapartidária. Não vejo que haja uma oposição de qualquer setor ou de qualquer partido em relação ao mérito do texto. Sendo aprovado na Câmara, a expectativa é de que seja aprovado pelo Senado ainda antes do recesso e vá pra sanção do presidente Lula ainda no mês de julho, espero”, afirma Boulos.
O deputado e outros aliados do Planalto tentam correr contra o tempo porque, ainda que a proposta tramite por meio de projeto de lei, o conteúdo em debate vence no dia 2 de agosto, prazo final da MP 1166. Em geral, MPs têm prazo de 60 dias, podendo ser prorrogado por mais 60. “Se não tivermos com o projeto aprovado e sancionado dentro desse prazo, nós vamos ter um hiato, ou seja, a MP vai caducar e, se o PL não for sancionado, fica em suspenso até a sanção, por isso o nosso esforço para que tudo caminhe dessa forma”, encerra Boulos.
Fonte: Brasil de Fato