Em 2022 foram 780 mil vacinas descartadas por prazo de validade superado no Paraná
Quase 2 milhões de doses de vacinas foram descartadas no Paraná nos últimos quatro anos por perda de validade, incluindo as de Covid. A alta no descarte dos insumos acompanha o declínio da cobertura vacinal no estado, onde, somente no ano passado, cerca de 780 mil doses foram parar no lixo – a maior taxa de perda de insumos por prazo de validade superado desde 2019.
Os dados são de levantamento obtido pelo Plural por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Até o fim de 2022, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) não disponibilizava recursos de acompanhamento em tempo real dos estoques.
Os números pedidos à Sesa via LAI são das vacinas incorporadas ao Calendário Nacional de Vacinação, e também as contra Covid-19, e que, armazenadas, tiveram de ir para o lixo por falta de procura. Além das distribuídas pelas regionais também foram observados os estoques do Centro de Medicamentos do Paraná (Cemepar). Foram desconsiderados os descartes de imunobiológicos como soros antirrábico, antitetânico e contra toxinas de animais peçonhentos, por exemplo, que não necessariamente entram na rotina de imunização dos brasileiros, embora estejam disponíveis na rede pública de saúde.
Vacinas mais desperdiçadas
O levantamento indica desperdício considerável de doses relativas ao estoque de vacinas cruciais para o público infantil, como BCG (contra tuberculose) e as vacinas da poliomielite – única forma de prevenir a circulação do vírus da paralisia infantil, doença erradicada no país desde 1989.
No total dos quatro anos analisados pela reportagem, de janeiro de 2019 a 19 de dezembro de 2022, a BCG aparece no topo da lista das vacinas com mais doses vencidas proporcionalmente ao montante encaminhado pelo Ministério da Saúde. No conjunto dos números relacionados ao imunizante contra a tuberculose, chega-se a uma soma de descarte superior à de entrada, inclusive, com a entrada de 151.887 doses e a perda de 199.140.
Na sequência, está a vacina contra Hepatite B, com uma taxa de desperdício de quase 60%. A Hepatite B também aparece como uma das combinações da pentavalente, disponível no calendário para crianças de menos de um ano e a que menos teve perdas Paraná entre 2019 e 2022 entre os imunizantes analisados.
Por outro lado, a relação entre entrada e desperdício das vacinas contra a poliomielite sugere perda bastante alta para estes imunizantes: 36,9% para a inativada (VIP) – aplicada nos três primeiros meses de vida e em reforços até 5 anos – e 15% para vacina oral contra o mesmo vírus (VOP, a usada nas campanhas anuais).
Na contagem absoluta, o desperdício mais contundente é de doses do imunizante de Febre Amarela. Foram 515.535 unidades inutilizadas por prazo de vencimento – no Paraná, a aplicação do imunizante passou a ser recomendado para todos os municípios a partir de julho de 2018. A doença transmitida por mosquitos é considerada endêmica na região Amazônica, mas o avanço progressivo da área de circulação do vírus provocou, entre 2014 e 2020, um surto sem precedentes na história da Febre Amarela silvestre no Brasil, segundo o próprio Ministério da Saúde. A reemergência resultou em 2.283 casos humanos e 779 óbitos no país.
Procurada desde a semana passada para analisar e contextualizar os números, a pasta não concedeu entrevista.
Covid e influenza
As planilhas encaminhadas pela Sesa mostram que 18.587 doses de vacinas contra a Covid foram parar no lixo. Outras 8.911 de influenza – a vacina da gripe – também tiveram o mesmo destino.
Pelo menos desde 2020 a prefeitura de Curitiba tem estendido a campanha de vacinação contra a gripe para além da faixa prioritária. A falta de público mantém armazenadas as doses que antes eram bastante disputadas pela população. Ao estender para pessoas de todas as idades os imunizantes contra influenza no ano passado, a porcentagem de vacinados entre idosos – o público-alvo – não chegava a 50%.
Vacinas vencidas, menos vacinados
É sabido que todas as vacinas disponibilizadas pelo Ministério da Saúde precisam obedecer à risca condições estabelecidas pelos fabricantes em conformidade com autoridades sanitárias, no caso do Brasil, a Anvisa. Isso demanda atender a todos os requisitos que garantam a estabilidade química, física e das propriedades biológicas das substâncias inoculantes, incluindo o prazo de validade.
Em muitos casos, os imunizantes têm tempo de ação bastante limitado após abertura dos frascos, o que ajuda a explicar, em partes, o desperdício de doses. O conteúdo da BCG, por exemplo, deve ser inutilizado seis horas após aberto, embora seja comum a distribuição de ampolas com até 20 doses da vacina.
Apesar das margens previsíveis de descarte, a trajetória de desperdício de vacinas no Paraná também acompanha a nova realidade de declínio da cobertura vacinal no país. No comparativo dos últimos quatro anos, nunca se desperdiçou tanto imunizante por prazo de vencimento como no ano passado, apesar de uma sutil recuperação em 2021 e 2020 em relação a 2019.
De acordo com o Datasus, plataforma de processamento e divulgação de dados do Sistema Único de Saúde, o índice de cobertura vacinal geral entre os paranaenses encolheu de 82,87% para 73,82% neste mesmo período.
A queda é mais brusca se comparada a 2015, quando o movimento de vacinação no Brasil começou a sofrer os primeiros reveses. Naquele ano, o Paraná atingia taxa de cobertura de 96,4%, até acima da média ideal de 95% padronizada pelos organismos de saúde.
No ano passado, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) contabilizava três em cada dez crianças sem vacinas necessárias para a proteção de doenças potencialmente perigosas no Brasil.
No Paraná, a cobertura da vacinação contra a poliomielite caiu de 97,39 % para 83,17% entre 2015 e o ano passado. No mesmo período, a imunização contra a BCG despencou de 105,6% para 87,4% – muitas vezes, a totalização acima de 100% é explicada pela destinação de vacinas a pessoas que não moram no estado, mas foram imunizadas nele.
Vacina na geladeira não imuniza
“Não adianta ter vacinas, mas ter as vacinas só na geladeira”, afirma a pediatra Isabella Ballalai, do corpo diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). A entidade, junto a outras sociedades de especialidades médicas, vem protagonizando intensas campanhas pela retomada do ritmo de vacinação do qual o Brasil já foi referência mundo afora.
Especialista em imunização, Ballalai diz que o sucesso da adesão de populações a campanhas de imunização de todo o mundo está atrelado, principalmente, à confiança depositada nos agentes e estruturas envolvidas no processo, desde as autoridades públicas, passando pelos profissionais de saúde até chegar à ponta, ou seja, àqueles que vacinam.
“Há uma pesquisa internacional, mas na qual o Brasil também está inserido, que mostra que 87% da população que confia muito no profissional da saúde também confia na eficácia das vacinas. Por outro lado, aqueles que não têm muita confiança no profissional de saúde, a taxa de credibilidade nas vacinas é de apenas 67%”, diz a pediatra. “A prescrição médica continua tendo papel fundamental”.
Chuva de mentiras
Apesar de os números da cobertura vacinal no país manifestarem trajetória decrescente desde 2015, a representante da SBIm diz que não há como desprezar o impacto nas cadernetas do discurso antivacina, fortalecido durante a pandemia da Covid-19. Além das avalanches de compilados de notícias falsas sobre o tema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) acompanhou também surtos do que chamou de “infodemia” – um amontoado de informações jogadas ao público sem filtros precisos, dissolvendo o conceito de fontes idôneas e aumentando barreiras ao acesso de orientações confiáveis.
Em várias partes do mundo, manifestações que questionavam a eficácia e a segurança das vacinas contra a Covid-19 cresceram e contaminaram todos os tipos de imunizantes. No ano passado, OMS e Unicef detectaram a maior queda contínua nas vacinações infantis dos últimos 30 anos em todo o planeta.
“O que move o ser humano a procurar a prevenção ou é a obrigatoriedade, como no caso do cinto de segurança, ou a percepção de risco. Em todas as situações, a população com medo da doença, inclusive na Covid, mostrou adesão, apesar de todos os fatores, enorme. Mas e por que agora elas não estão mais buscando o reforço? Porque não estão mais preocupadas com a Covid. A gente procura a prevenção quando tem medo daquilo”, diz a médica.
Segundo ela, a retomada de indicadores plenos de vacinação depende agora de uma reestruturação completa da comunicação com a população, ponte que sai trincada do governo Bolsonaro.
O ex-presidente, que botou sob sigilo seus dados de vacinação contra a Covid, adotou posturas controversas em relação aos imunizantes.
Na pandemia, demorou para fechar contratos de compras de vacina, paralisou negociações e acelerou tratados para ampliar a distribuição de cloroquina pelo SUS, medicamento de ineficácia comprovada contra os efeitos do Sars-Cov-2. Ao longo dos quatro anos de seu governo, também acumulou declarações antivacinas reverberadas com intensidade por uma menor parte de seus seguidores.
“Nos últimos anos, a gente vê que as campanhas de vacinação são anunciadas praticamente na véspera, e a comunicação acaba sempre sobrando para quem está na ponta, para os municípios. Mas se não for empático, se não mostrar para a população o porquê de vacinar, não vai funcionar. É preciso mostrar que eu estou preocupado com você e não com a cobertura vacinal”, defende Ballalai. “A gente precisar estabelecer a vacinação de novo como uma prioridade dos gestores municipais, estaduais e federais. Ela foi deixando de ser prioridade até porque a nossa situação era de berço esplêndido, sem casos, de alta. Agora não é mais porque a confiança foi destruída e não é da noite para o dia que vamos mudar este cenário”.
Fonte: Jornal Plural