No Brasil, 15 redes estaduais priorizam contratação ‘por temporada’, sem garantir estabilidade ou plano de carreira aos professores. Resultado: eles dão aula em mais de uma escola, ganham salários inferiores e trocam de emprego com frequência.
“Eu amo ser educadora. Mas meu contrato atual está acabando, aí já comecei a comprar produtos para trabalhar no salão de beleza”, diz Nelci Pereira, de 50 anos, professora temporária da rede estadual do Mato Grosso.
Ela não é concursada: há 14 anos, trabalha apenas “por temporadas”, sob condições precarizadas, em escolas públicas em Vargem Grande, cidade a sete quilômetros de Cuiabá. Não importa que tenha mais de uma década de experiência na docência — não recebe aumentos ou bônus (como quinquênios) por isso. Em janeiro, nas férias escolares, não “cai” sequer R$ 1 na conta bancária dela.
E esse não é um caso excepcional: desde 2022, no Brasil, o índice de professores temporários nos colégios estaduais brasileiros é maior do que o de efetivos (veja a evolução ano a ano no gráfico mais abaixo). De acordo com o Censo de Educação Básica 2023, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 15 estados demonstram esse desequilíbrio.
Atenção: É importante, sim, que as redes tenham professores temporários, para substituir os titulares em casos de doença, por exemplo, ou de aposentadoria recente. Mas esse regime de contratação, que deveria ser uma exceção, está virando regra, como mostra o Inep – e por uma questão financeira. Sai mais barato dessa forma.
“Professor temporário, independentemente do tempo de carreira, fica sempre naquela base de salário inicial. Para o gestor, é ótimo: uma massa de trabalhadores continua sempre estagnada”, diz João Batista dos Santos, pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
“A contratação temporária não é inimiga, mas não pode ser pensada como estratégia para reduzir gastos”.
Ao longo desta reportagem, você entenderá por que essa tendência é prejudicial tanto para os próprios profissionais quanto também para os alunos. Em resumo, o cenário é:
Os professores temporários passam por processos seletivos, em geral, mais “frágeis” – alguns estados consideram apenas o tempo de experiência ou a titulação do candidato, sem submetê-lo a qualquer prova teórica ou prática.
As condições de trabalho costumam ser piores do que as dos efetivos (horários “quebrados”, licenças inexistentes ou mais curtas, ausência de um plano de carreira).
A instabilidade impera: quando o contrato acaba, os docentes ficam sem remuneração.
Por causa dos baixos salários e das incertezas, eles dão aula em mais de uma escola – o que aumenta a sobrecarga de trabalho, diminui o tempo de dedicação para cada turma, dificulta a realização de cursos de formação e compromete inevitavelmente a qualidade do ensino.
Com a substituição constante de um temporário por outro, a rotatividade de professores é altíssima. Isso compromete a criação de vínculo com os alunos.
Ao g1, o Ministério da Educação (MEC) afirmou que “eventuais excessos devem ser acompanhados e fiscalizados em cada sistema de ensino (…), bem como pelos órgãos de controle externo, como Tribunais de Contas, Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas”.
Por que redes estaduais estão priorizando os temporários?
A Constituição Federal estabelece que os profissionais da educação escolar da rede pública devem ter planos de carreira, “com ingresso exclusivamente por concurso público”. A convocação de servidores temporários só deve acontecer “em caso de excepcional interesse público”.
Ivan Gontijo, gerente de políticas educacionais da ONG Todos Pela Educação, explica que o ideal seria ter uma parcela de cerca de 20% a 30% de professores temporários em cada rede, para suprir as demandas de emergência e não deixar os alunos sem aula. Mas em Minas Gerais, por exemplo, 80% estão nesse regime de contratação. No Tocantins, 79% (veja o próximo gráfico).
Procurada pelo g1, a Secretaria de Educação de Minas afirmou que criou a “Comissão Permanente de Concursos da Educação”, para planejamento e organização de novos concursos públicos. “Um novo certame está em fase de preparação, com previsão de oferta de 13 mil vagas e lançamento do edital em janeiro de 2025”, diz o órgão, em nota. Os representantes da Seduc do Tocantins não haviam respondido até a última atualização deste texto.
E o MEC reforçou que o projeto de lei do Novo Plano Nacional de Educação (PNE) tem como uma das metas “assegurar que, no mínimo, 70% dos profissionais do magistério em cada rede pública de ensino tenham vínculo estável por meio de concurso público” (ou seja, que a parcela de temporários não ultrapasse 30%).
Veja as principais hipóteses que explicam a tendência de desequilíbrio na formação das equipes docentes:
Razão 1: financeira
Nos gastos públicos com educação, a folha de pagamento dos funcionários costuma ser a parte mais onerosa. O problema, segundo o pesquisador da Uerj, é que isso tem sido visto como “um gasto a ser cortado”, e não como um investimento.
Os seguintes fatores fazem com que a contratação de temporários seja mais barata:
- Segundo estudo do Movimento Profissão Docente, em 15 redes estaduais, o valor da hora-aula recebido pelos professores temporários em 2023 era menor do que o de efetivos em início de carreira.
- Não há plano de carreira. Um professor concursado, depois de determinado período, tem direito a gratificações e a aumentos salariais. O temporário, não. Chega a ganhar a mesma quantia por 20 anos.
- Os professores contratados, quando se aposentam, não recebem pela previdência estadual, como os efetivos, e sim pela social (que é federal).
Fernanda*, professora temporária de língua portuguesa em uma escola estadual em Samambaias (DF), descreve sua frustração.
“A sensação foi e é sempre horrível. Porque você estudou muito e, de repente, nada disso serviu. Meu contrato teoricamente era até o final do ano. Mas chegou o [professor] efetivo e fui simplesmente ‘devolvida’. Se você não tiver outro trabalho ou uma reserva financeira, fica na mão”, diz.
A Secretaria de Educação do DF diz que “tem investido de maneira contínua na formação e capacitação de todos os docentes, inclusive daqueles contratados temporariamente”. Afirma também, em nota, que “tem implementado políticas voltadas à redução da rotatividade de docentes contratados temporariamente”, como um concurso público em 2019.
Razão 2: Dificuldade técnica de fazer concursos
Segundo Gontijo, do Todos Pela Educação, os sistemas estaduais têm dificuldade de prever a demanda de professores. “Como não sabem de quantos docentes vão precisar, evitam fazer concursos públicos às cegas”, diz.
O especialista explica também que há um alto custo envolvido nesse tipo de processo seletivo: para preparar a prova, contratar uma banca avaliadora etc.
“O ideal seria ter concursos mais frequentes e menores, para selecionar só os profissionais mais capacitados. Oferecer um [concurso] a cada 7 anos, por exemplo, reúne uma quantidade imensa de candidatos — fica impossível fazer milhares de provas práticas”, afirma.
Consequências: condições de trabalho mais precárias e prejuízo à aprendizagem dos alunos
Instabilidade
Os contratos dos professores duram, em média, 2 anos. Quando acabam, o docente passa a enfrentar um período de ansiedade e de crise financeira.
Liliane Cristina, professora temporária da rede estadual de São Paulo, conta que tem amigos que ficaram até quase metade do ano sem dar aula.
“Não dá para assumir nenhuma dívida a longo prazo. É muito frustrante, porque conquistei muitas coisas trabalhando das 7h às 23h, muita luta mesmo, para chegar ao fim do contrato e não ter nenhuma estabilidade”, afirma.
“Não dá para contar com nada. Tem muito professor doente, tem muito professor se afastando, porque realmente é algo que desgasta mentalmente, fisicamente, psicologicamente.”
A Secretaria Estadual de Educação de São Paulo alega que, “após 10 anos, realizou um concurso público, para professores de ensino fundamental e médio, que prevê a contratação de 15 mil profissionais. Os primeiros aprovados iniciarão as atividades em 2025”.
Aulas que sobram: ‘picadas’ e em diferentes escolas
A cada início do ano letivo, as escolas distribuem as aulas entre os professores, para que eles montem suas grades horárias. A prioridade nessa escolha é dos efetivos.
“Nós, temporários, ficamos com o que sobra. Sou professora de história, mas dificilmente dou aula disso. O que ‘resta’ é sociologia, filosofia. Vai mudando com o tempo”, conta Nelci, mencionada no início da reportagem.
“Fica tudo picado. Peguei aulas de um professor que se candidatou para a eleição e de outro que saiu para cuidar da mãe. É bem pouco. E, se eu não me mexer no fim do contrato, fico desempregada.”
A tendência é que os docentes temporários “herdem” aulas em horários espaçados e em mais de uma escola, para conseguirem atingir um patamar salarial mais razoável.
Menor qualidade das aulas
E justamente essa necessidade de ministrar aulas de várias turmas diferentes acaba interferindo na qualidade do trabalho dos professores.
“Não tem jeito, o nível cai. Mesmo que você se dedique e faça seu melhor, o fato de ter de se dividir entre diferentes escolas diminui nosso tempo de preparar um conteúdo melhor”, afirma Adriano Sá, professor temporário da rede estadual de Minas Gerais.
Liliane, de São Paulo, dá mais detalhes do desafio de fazer esse “malabarismo”. “São mais turmas, mais diários para preencher, mais provas para corrigir. Como a gente pega o que sobra, são 6 aulas de manhã, 4 à tarde e mais outras à noite. Elaboro projetos de cada uma, faço os planejamentos… E tenho casa, filho e esposo”, conta.
Os critérios de seleção, que variam bastante de um estado para outro, também podem prejudicar os contratados. Adriano conta que, em Minas Gerais, a prioridade é dos professores com maior tempo de carreira – sem testes teóricos ou práticos. Resultado: os colégios da periferia, que costumam “sobrar” na distribuição das aulas, acabam recebendo os docentes menos experientes.
Sem plano de carreira e com menos direitos
“Não tem como evoluir sem plano de carreira. O salário é sempre o mesmo. E os contratos são de fevereiro a dezembro, então, não recebo nada em janeiro”, explica o professor Adriano.
Essa falta de evolução salarial é um dos maiores obstáculos enfrentados pelos temporários, explica João Batista dos Santos, da Uerj. “A pessoa vai se aperfeiçoando, ganhando títulos, mas não sai da mesma base de remuneração. Precisa se sobrecarregar, com 2 ou 3 jornadas de trabalho, para se manter. Às vezes, são funções que nem têm a ver com educação.”
Dos Santos analisou os contratos de todos os estados brasileiros e concluiu que outros direitos também costumam ser negados: licenças em caso de doença, por exemplo, são mais curtas do que as de efetivos. Há redes que não pagam adicional noturno ou que não permitem o afastamento remunerado do funcionário quando um familiar tem algum problema mais sério de saúde.
“É desvantagem total”, diz a professora Nelci. “Não tem estabilidade nenhuma. Se eu falto, preciso repor. O professor efetivo tem plano de carreira, salário vai melhorando… Nós não temos nada.”
Maior rotatividade de professores
Quanto mais professores temporários uma rede tiver, maior vai ser a rotatividade. Uma turma pode começar o ano tendo aula de matemática com um docente e terminar o semestre com outro.
“Quando você começa a criar um vínculo com os alunos, a conhecê-los, precisa mudar de escola”, diz Liliane.
Vanessa Martins, por exemplo, era temporária e conseguiu se tornar efetiva em uma escola municipal na zona rural de São Luís (MA). “Estou aqui desde 2014. Os alunos sabem quem eu sou. Quando me veem na rua, falam comigo. Sou uma referência na comunidade”, conta. “Isso é quebrado com a rotatividade de professores, o que complica a aprendizagem das crianças.”
Cada docente que assume uma classe vai levar um tempo para fazer as avaliações de sondagem, entender o nível de conhecimento das crianças e dos adolescentes, detectar os melhores métodos de ensino e ganhar confiança de todos.
Por todos os motivos relatados pelos professores nesta reportagem, Gontijo, do Todos Pela Educação, diz que é preciso promover mudanças nos regimes de contratação.
“Se quero melhorar a aprendizagem, preciso também diminuir o número de temporários e melhorar as condições de trabalho deles: fazer contratos mais longos, garantir que fiquem na mesma escola, ajustar salários e reduzir a insegurança em que vivem.”
* O nome da entrevistada foi trocado por um fictício a pedido dela.
Fonte: G1