Relatório da CPT indica que violência por contaminação de agentes químicos saltou de 19 para 182 no primeiro semestre
A Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgou nesta segunda-feira (2), um relatório preliminar com dados do mapa anual sobre conflitos no campo, realizado pela organização em conjunto com o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc). Os números relacionados à contaminação por agrotóxicos no primeiro semestre do ano impressionam, saltando de 19 para 182, o que representou um aumento de mais de 950% em relação ao mesmo período em 2023.
Valéria Santos, coordenadora nacional da CPT, afirma que apenas no bioma Cerrado, foram identificados cinco tipos de agrotóxicos altamente contaminantes em águas de cisternas e cacimbas utilizadas sobretudo por comunidades rurais, quilombolas e indígenas. Além desse ‘envenenamento’ silencioso, ela alerta para uso de agrotóxicos como armas químicas contra essas comunidades e como forma de expulsá-las de seus territórios.
“Em 2021 e 2022, houve um ataque químico numa comunidade em Buruticupu, no Maranhão, onde foi pulverizado agrotóxico em cima da comunidade. Então várias pessoas ficaram com queimaduras na pele, com coceira. Em Cocalinho, em Guerreiro, em várias comunidades do Maranhão, o pessoal tem percebido um adoecimento muito grande de pele, problema de vômito, diarreia, relacionados à questão dos agrotóxicos”, relata a representante da CPT.
Santos afirma que mesmo nos locais que não são atingidos diretamente pela pulverização aérea de veneno, as comunidades têm enfrentado dificuldades para o cultivo de alimentos pelo nível de contaminação do solo, das águas e do ar, o que agrava a situação de insegurança alimentar da população.
“O agrotóxico não cai só em cima daquela lavoura da monocultura, ele acaba indo para as lavouras das comunidades ou para os quintais e queima as plantas. Então o pessoal está com muita dificuldade de colher frutos saudáveis, ou de fazer a colheita de outros alimentos que não seja soja”, destaca. “A gente está falando de uma tendência de um crescimento exorbitante da violência contra pessoas, provocada pelo que chamamos de guerra química.”
Alan Tygel, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, destaca a importância do trabalho da CPT em levantar os dados, fundamentais para jogar luz sobre essas realidades, muitas vezes invisibilizadas.
“É preciso reconhecer a importância magnífica do trabalho que a CPT vem fazendo há mais de 40 anos na sistematização dos conflitos no campo no Brasil. É uma experiência única no Brasil e no mundo de uma organização, de um movimento da sociedade, que durante tantos anos consegue, ano a ano, manter uma metodologia coerente e fazer uma sistematização completa dessas situações”, destaca o ativista, que aponta a alta concentração de terras no Brasil como um dos principais geradores dessa situação.
“Esse é um sintoma gravíssimo desse problema histórico que nós temos no Brasil em relação à terra. A falta de uma reforma agrária e o avanço do modelo do agronegócio, automaticamente geram esse nível de violência no campo”, completa.
De acordo com o relatório da CPT, a maior parte dos casos (156) ocorreu no estado do Maranhão, onde comunidades sofrem com as graves consequências da pulverização aérea de veneno.
Tygel explica que o trabalho da CPT não é censitário, ou seja, a organização não realiza busca ativa em uma cobertura complexa dos territórios, mas contabiliza os casos a partir dos registros que são feitos por organizações sociais, instituições públicas e pela própria imprensa. De modo que os dados apresentados são uma amostra da realidade, a partir do crescimento dos registros.
“O Maranhão é hoje um foco muito grande da expansão do agronegócio, especialmente para o plantio da soja, com impactos gravíssimas nos modos de vida tradicional, em especial das quebradeiras de coco babaçu, que têm sido muito afetadas com o uso de agrotóxicos que matam as próprias palmeiras”, segue Tygel. “Todo esse registro, principalmente sobre a pulverização aérea de agrotóxicos, graças a esse esforço das organizações do Maranhão, está chegando a público através da CPT, dando para nós um pedacinho da real dimensão que é essa guerra química que a gente vive hoje no Brasil”, finaliza.
Diogo Cabral, advogado popular, assessor jurídico da Federação dos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares do Maranhão (Fetaema), explica que os mais afetados pela contaminação por agrotóxicos são, especialmente, camponeses, comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas, além de crianças.
Segundo ele, organizações da sociedade civil têm feito um monitoramento mensal dos casos no Maranhão e, apenas em outubro de 2024, 211 localidades maranhenses registraram pulverização de agrotóxicos por aviões e drones.
Cabral afirma que, embora os números já sejam assustadores, eles estão subestimados devido à subnotificação de casos. “Para caso denunciado, pelo menos outros cinco não são, por diversos fatores. Um destes é o medo de denunciar fazendeiros, empresas, etc. O Brasil é uma das regiões com maior número de defensores de direitos humanos assassinados e mortos do mundo”, argumenta.
Para ele, o aumento dos registros está ligado à expansão do agronegócio sobre a região do Matopiba, que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
“Isso está relacionado à expansão exponencial do agronegócio, sobretudo a partir de 2020, em decorrência de ações estatais que favoreceram a territorialização do agronegócio, sobretudo da soja, pela alta demanda de commodities, sobretudo no período da pandemia e pela guerra da Ucrânia e aumento desses produtos de exportação. Houve um vultuoso aumento dos conflitos agrários e socioambientais neste período. O ‘passa a boiada’ de Bolsonaro contaminou e segue contaminando milhares de pessoas”, comenta o advogado, que defende a proibição em todo o país da pulverização de agrotóxicos e a inconstitucionalidade da isenção fiscal para os insumos químicos que tem sido praticada pelo Estado brasileiro e é questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).
Um relatório recente da Receita Federal revelou que apenas as empresas relacionadas ao mercado de venenos para a agricultura no Brasil receberam mais de R$ 21 bilhões em renúncias fiscais. O dado demonstra que, apesar de afetar a saúde da população e do meio ambiente, o modelo agrícola baseado no uso de agroquímicos é fortemente incentivado pelo Estado brasileiro.
Transformar dados em mobilização
A partir da divulgação dos números, a CPT e as organizações que fazem o enfrentamento aos agrotóxicos pretendem mobilizar a sociedade a combater o modelo de agricultura baseado no uso de veneno.
“É preciso agora fazer com que esses dados se transformem em mobilizações, que consigam sensibilizar o governo brasileiro a implementar de uma vez por todas o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos [Pronara], que é a forma que a gente vê nesse momento de começar a mudar um pouco esse cenário e criar um espaço para o desenvolvimento da agroecologia através da restrição de agrotóxicos no Brasil”, afirma Alan Tygel.
O lançamento do Pronara vem sendo adiado pelo governo federal por resistência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) em aderir ao programa. Servidores do Mapa têm sido destacados para ocupar os espaços de discussão sobre agrotóxicos no Brasil e defender o uso de agentes químicos, inclusive aqueles de altíssima toxicidade, que já são banidos em outros países.
Metodologia
Os dados parciais revelam ainda que, entre janeiro e novembro deste ano, 11 pessoas foram assassinadas em decorrência da violência no campo. Entre as vítimas, 10 eram homens e uma, mulher, a liderança indígena Nega Pataxó.
Segundo a CPT, os dados do primeiro semestre servem para avaliar as tendências e contribuem para a análise do relatório anual “Conflitos no Campo Brasil”, que terá o lançamento da edição 2024 em abril do próximo ano.
As informações são catalogadas a partir do trabalho de campo de agentes da CPT em todo o Brasil, além das informações fornecidas pelos órgãos de imprensa, instituições públicas, movimentos populares e organizações da sociedade civil ao longo de todo o ano.
Fonte: Brasil de Fato