Embora o governo federal tenha sancionado a Lei 14.790/2023 com o objetivo de regulamentar as apostas online e aumentar a arrecadação, a demora em estabelecer regras para as chamadas bets, resultou no endividamento de milhares de brasileiros e criou um ambiente propício para fraudes e sonegação fiscal.
A legalização das apostas esportivas, conhecidas como “apostas de quota fixa”, ocorreu em 2018, durante o governo de Michel Temer (MDB) e sob a gestão do, então, ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann. A partir desse marco, plataformas dominaram a publicidade, patrocinando clubes de futebol.
Contudo, o prazo de quatro anos para regulamentar o setor foi negligenciado no governo de Jair Bolsonaro (PL), permitindo que o mercado de apostas se expandisse sem supervisão. O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), chegou a classificar a situação em 2023 como uma verdadeira “pandemia de apostas”.
Essa expansão desenfreada trouxe dor de cabeça para o Palácio do Planalto, que viu a arrecadação de impostos escapar enquanto plataformas operavam sem licenças, muitas delas sediadas em paraísos fiscais, onde a fiscalização é mínima.
De acordo com um levantamento do G1, das empresas que buscam operar legalmente no Brasil, apenas 213 obtiveram licenças. As demais, que não conseguiram se enquadrar nas exigências, passaram a atuar de forma clandestina, utilizando sites alternativos que imitam aqueles já bloqueados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Em outubro, mais de 22 milhões de pessoas participaram de apostas
De acordo com o Instituto DataSenado, mais de 22 milhões de pessoas participaram de apostas esportivas no mês de outubro, representando 13% da população acima de 16 anos. Dados da XP Investimentos, baseados em estimativas da BNL Data, mostram que o mercado de apostas de cota fixa faturou R$ 13 bilhões em 2023. Já para 2024, a projeção é que esse mercado movimente R$ 150 bilhões.
Mesmo com a tentativa do governo de retomar o controle, o projeto oficial só entrará em vigor em janeiro de 2025, exigindo que as empresas se cadastrem e paguem uma concessão de R$ 30 milhões, além de 12% sobre o faturamento após a dedução dos prêmios pagos.
Em setembro deste ano, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também anunciou medidas que incluem o monitoramento de apostadores, visando impedir a lavagem de dinheiro e reduzir o endividamento. Segundo ele, será necessário regular a publicidade para evitar o aliciamento de jovens e de famílias de baixa renda.
No entanto, no mês anterior a essa declaração, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) se posicionou favoravelmente à legalização, defendendo que os cassinos podem promover o desenvolvimento econômico e gerar empregos, como acontece em Las Vegas.
Se, por um lado, a arrecadação prevista pelo governo com as apostas é vista como uma solução para financiar áreas como educação e saúde, por outro, o endividamento massivo dos apostadores pode gerar um efeito dominó, impactando o consumo e a economia como um todo.
O levantamento do DataSenado, indica que homens de até 39 anos, com ensino médio completo, são os principais usuários dessas plataformas. O Paraná, por exemplo, concentra cerca de 12% da população apostadora, ficando em 20º lugar no ranking nacional.
Ainda, segundo a pesquisa, 52% dos que apostam recebem até dois salários mínimos por mês, e mais da metade possui dívidas em atraso há mais de 90 dias. Esse quadro é particularmente preocupante em estados como Roraima e Pará, onde o percentual de apostadores atinge 17%, bem acima da média nacional.
Pedro Maciel Filho, advogado especializado em Direito Digital e Proteção de Dados, destaca que a legalização das apostas é insuficiente. Sem políticas públicas adequadas para tratar o vício e proteger os mais vulneráveis, o governo corre o risco de criar uma crise de saúde pública.
A Associação Brasileira de Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), por exemplo, tomou medidas por conta própria, proibindo o uso de cartões de crédito para pagamentos em bets. A ação visa conter o superendividamento da população, mas é uma medida paliativa diante de um problema estrutural.
No Paraná, o Procon tem se mobilizado para notificar plataformas que lesaram consumidores, mas a proliferação de sites ilegais e a publicidade agressiva, especialmente, voltada ao público jovem e de baixa renda, mostram que os problemas estruturais persistem.
“A proibição de cartões de crédito é uma tentativa de estancar a sangria, mas é insuficiente para combater o vício crescente. A experiência de outros países, como os Estados Unidos, mostra que a legalização de apostas esportivas pode ter efeitos devastadores na economia doméstica se não for acompanhada de políticas públicas eficientes e de um monitoramento rigoroso”, explica Maciel.
Além disso, a pesquisa do DataSenado apontou que o endividamento relacionado às bets tem afetado não apenas as finanças pessoais dos apostadores, mas também setores do comércio e varejo. Grandes redes estão sentindo uma queda nas vendas, em parte atribuída ao desvio de recursos familiares para as apostas.
Recentemente, o Banco Central divulgou que parte dos recursos dos programas sociais está sendo destinada às bets. Beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas via Pix em agosto, sendo que 70% desses apostadores são chefes de família, o que levanta questionamentos sobre a eficácia das políticas sociais diante do avanço das bets.
“A questão vai além da regulamentação. O Brasil enfrenta uma dificuldade histórica de lidar com jogos de azar. Se as bets estão drenando recursos das famílias, sem um sistema de apoio e de regulação mais rígida, as empresas de apostas online não serão apenas um problema econômico, mas um problema de saúde pública que afetará uma geração inteira de brasileiros”, alerta o advogado.
“O dinheiro que deveria ir para as contas da casa, como água e luz, acabava indo para o jogo”
Maria Vitória, que viu a vida da prima ser destruída pelo vício, conta que a familiar começou a jogar após ser incentivada pelo marido, acreditando que as apostas poderiam ser uma saída rápida para as dificuldades financeiras.
No entanto, o que começou como uma tentativa de escapar das preocupações financeiras logo se transformou em um problema. A vítima chegou a vender móveis e objetos de valor, incluindo uma geladeira de alto custo, para sustentar as apostas.
“Ela não tinha renda, estava afastada pelo INSS, e o marido mostrou o Tigrinho [um dos jogos de apostas online] para ela. No começo, era só diversão, mas logo ela começou a se afundar. Chegou a vender uma geladeira de 8 mil reais para continuar jogando. Ela pegava dinheiro de todo mundo, da família, dos amigos, até de agiotas. Achava que iria ganhar e devolver tudo, mas só perdia. Foi ficando cada vez mais desesperada”, conta Maria.
Os danos não pararam nas perdas materiais. Prestes a se mudar para a Inglaterra com o marido, a mulher gastou o valor das passagens em apostas, o que agravou ainda mais o desespero. Em certo ponto, passou a cogitar o suicídio, incapaz de lidar com a pressão financeira e emocional.
O psicólogo Walter Winer de Paula, aponta que a busca pelas bets, pode partir de motivações racionais, como a necessidade de um dinheiro extra para um projeto, ou de motivações emocionais, como ansiedade ou medo de um futuro incerto.
“Primeiro é um processo de negação, a pessoa não admite o problema, pode acontecer ansiedade por conta das apostas, pode se desenvolver um processo de depressão por conta da perda do dinheiro e do que isso acarreta. Às vezes, a vítima está apostando o único recurso que possui, e quando perde tudo, isso pode gerar uma sensação profunda de desesperança e até medo em relação ao futuro”, explica.
A história de Jorge segue um caminho similar. Ele começou a apostar influenciado por amigos do trabalho, e no início, chegou a ganhar um dinheiro extra. No entanto, a sensação de vitória logo se transformou em um ciclo de perdas e brigas dentro de casa.
“O dinheiro que era para pagar as contas da casa, como água e luz, eu gastava no jogo. Minha esposa descobriu e aí começaram as discussões. Minha esposa teve que assumir todas as contas. Eu só pensava em recuperar o dinheiro, mas nada dava certo. A situação saiu do controle, e os meus filhos começaram a sofrer com isso também”, relata.
À medida que as dívidas aumentavam, ele tentava recuperar o que havia perdido apostando ainda mais.
“Ver meus filhos nessa situação foi o pior. Eu me sentia um pai falhando. As apostas são um ciclo sem fim, você ganha uma vez, mas perde muito mais, e sempre acha que pode reverter. Não consegue parar”, desabafa Jorge.
Segundo Walter, o sinal mais aparente de que uma pessoa está desenvolvendo um vício é a “incapacidade de resistir à tentação de apostar”. O psicólogo explica que “o indivíduo não tem controle sobre quando começa, quando para, na frequência e intensidade com que aposta”. Essa perda de limite acaba tomando espaço nas várias áreas da vida, desde relacionamentos até o desempenho no trabalho.
“O dependente pode, por exemplo, demorar para almoçar porque está apostando, ou até esquecer de fazer coisas corriqueiras, como colocar o lixo para fora, escovar os dentes ou dormir. Deixa o cônjuge ou os filhos de lado, negligencia tarefas no trabalho e passa horas dedicadas a pesquisas sobre novas formas de apostar”, alerta Walter.
Golpes
Para o especialista em direito digital, Pedro Maciel Filho, o principal problema dos cassinos online ilegais é a ausência total de regulamentação. Sem uma licença para operar no Brasil, essas plataformas atuam sem responder a nenhum órgão regulador, deixando o jogador em uma posição completamente vulnerável.
“Se algo der errado — e em muitos casos dá —, o consumidor simplesmente não tem a quem recorrer. Muitas dessas empresas estão localizadas fora do Brasil, dificultando ainda mais qualquer tipo de fiscalização ou responsabilização legal”, critica Maciel.
Cassinos online ilegais são utilizados para movimentar dinheiro sujo, oriundo de atividades ilícitas. Isso não é novidade no cenário internacional, mas no Brasil a falta de regulamentação torna o ambiente ainda mais propício para esse tipo de crime.
A Polícia Federal, com o Ministério Público, realiza operações para tentar desarticular esses esquemas, mas a ação é limitada devido à complexidade de enfrentar empresas que operam do exterior.
“A verdade é que o Brasil não tem capacidade plena de fiscalizar esses cassinos online ilegais, e os jogadores acabam se tornando cúmplices involuntários de atividades criminosas, como a lavagem de dinheiro,” alerta o especialista.
Aqueles que caem nos golpes dessas plataformas raramente conseguem recuperar seu dinheiro. Maciel explica que, para iniciar qualquer tipo de ação judicial, é necessário reunir uma série de provas, como registros de transações e comunicações com a plataforma. No entanto, mesmo com provas em mãos, os consumidores enfrentam um longo e difícil caminho, especialmente quando a empresa está localizada fora do país.
“Empresas ilegais usam uma série de artimanhas para evitar responder judicialmente no Brasil. Muitas se escondem atrás de jurisdições que dificultam a execução de qualquer ação legal. Mesmo que você consiga processar a empresa, as chances de recuperar seu dinheiro são baixíssimas”, enfatiza.
Ao se cadastrar nesses sites, os jogadores estão expondo seus dados a pessoas que podem utilizá-los para roubo de identidade, fraudes financeiras e até chantagem. Os criminosos podem vender essas informações, o que causa um prejuízo muito maior do que apenas perder dinheiro no jogo.
“O uso de senhas fortes, autenticação em duas etapas e o cuidado ao fornecer dados sensíveis são medidas essenciais, mas, em última instância, a maior proteção é simplesmente evitar esses cassinos online ilegais”, recomenda o advogado.
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**Os nomes das vítimas foram alterados para preservar suas identidades, uma vez que optaram por não se identificar.
Matéria dos estagiários Jader Vinicius e Joyce Keli sob supervisão.