Intenção é valorizar ações emancipatórias desenvolvidas nas periferias da cidade por colaboradores e entidades
“Heróis sem capa” é assim que Lua Gomes, coordenadora regional da CUFA (Central Única das Favelas) no Paraná e fundadora do Conexões Londrina, coletivo que organiza a Semana da Favela Londrina 2023 juntamente com o corre.social, aplicativo londrinense que privilegia negócios e artistas locais, nomeia os 20 homenageados que receberão o Troféu Luiz Gama na noite desta terça-feira (7).
A honraria referencia o advogado e poeta negro, antirracista, defensor do fim do trabalho escravizado no Brasil, Luiz Gama. Como é recorrente na histórica oficial – branca e eurocêntrica – o intelectual brasileiro foi vítima de apagamento por mais de um século, mas aos poucos seu legado vem sendo resgatado. Em 2015, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) o reconheceu como advogado. O título foi concedido 133 anos após sua morte.
Nascido na Bahia, em 1830, filho de Luiza Mahin, mulher negra, escravizada que participou de levantes de povos africanos trazidos à força para o Brasil, Gama foi para o Rio de Janeiro aos 10 anos após ser vendido pelo pai, um invasor português, para pagar uma dívida. Sete anos depois, ele conseguiu sua libertação. Aos 20 anos, tentou frequentar o curso da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, hoje da Universidade de São Paulo (USP), mas foi impedido por ser negro. Então, frequentou as aulas como ouvinte e o conhecimento adquirido permitiu que ele atuasse na defesa de negros escravizados, contribuindo para liberdade de pelo menos 700 trabalhadores.
A premiação, que será entregue nesta terça-feira a partir das 19h, no Salão Social do SESC Centro (Rua Fernando de Noronha, nº 264) integra a programação da Semana da Favela Londrina pela primeira vez. Os homenageados serão distribuídos em dez categorias que vão desde trabalhos que reconhecem tradições e autoestima a esporte e transformação (confira listagem completa abaixo).
A intenção do troféu é valorizar ações emancipatórias desenvolvidas nas periferias da cidade por colaboradores e entidades, conforme explica Lua. “O objetivo do Troféu Luiz Gama é que a gente consiga reconhecer e identificar iniciativas, pessoas, sonhos e construções reais que são emancipadoras. E quando a gente fala sobre emancipar, estamos falando de liberdade, sobre a construção de uma nova narrativa na vida das pessoas. Existem sonhos que se tornam atividades e pessoas que se tornam referências ao longo deste caminho. Foi pensando nestas pessoas, sonhos e construções, que resolvemos listá-las. A maioria delas, heróis sem capa, como gostamos de chamar, pessoas que são anônimas para muitas, inclusive, para as que são beneficiadas pelas lutas”, conta.
A liderança reforça a importância de tais ações para a superação das múltiplas desigualdades. “Festejar um movimento de lutas, popular, periférico, o povo preto, de favela, que se ama e se fortalece, as pessoas que estão inseridas dentro de um movimento de igualdade, respeito e, sobretudo, de justiça social porque não se trata de um dualismo entre cor, credo, é mais do que isso, na realidade, é uma coalizão de forças em prol de justiça social”, diz.
Projeto “Rango” é um dos homenageados
Entre as iniciativas escolhidas está o projeto “Rango”, idealizado por Poliana Santos. Poli como é mais conhecida, é educadora, integrante da diretoria da APP-Sindicato – Núcleo Londrina e participa de diferentes coletivos dedicados à defesa de direitos de mulheres, comunidade LGBTQIA+ como o Luiza Mahin e Movimento Construção.
Ela conta que o projeto “Rango” surgiu em maio de 2020, período no qual a cidade passou por um inverno rigoroso, afetando, sobretudo, camadas mais vulneráveis da população como as pessoas em situação de rua. “Em uma destas noites de inverno passando pelo centro da cidade, fiquei me autoquestionando sobre as dificuldades que as pessoas em situação de rua estariam passando, haja vista que eu estava dentro do meu carro, com ar quente, toda uma proteção e mesmo assim com frio. Então, eu pensei por que não somar aos esforços de outras pessoas, instituições, inclusive, do poder público de Londrina, mesmo com alguns apontamentos críticos que temos ao trabalho e fazer algo em prol destas pessoas que estão nas ruas sem abrigo, sem uma condição digna de viver”, assinala.
A partir de conversas com amigos próximos, o grupo iniciou a doação semanal de alimentos a pessoas em situação de rua. Em um primeiro momento, a iniciativa distribuía marmitas, atualmente garante sanduíches e bebidas a aproximadamente 50 pessoas. “Nós iniciamos com marmitas, fazíamos semanalmente para distribuir para população em situação de rua, mas percebemos que estava chocando com outros projetos que também faziam o mesmo trabalho e a população em situação de rua não tem uma maneira saudável de armazenar esse alimento e acabava que corria o risco de estragar, se perder pelo excesso no dia. Então, de um ano e meio para cá, temos feito sanduíches, que sempre entregamos com uma bebida, seja um refrigerante, chá gelado, água que é uma demanda que eles pedem muito por incrível que pareça ou suco”, pontua.
“Fazemos um percurso que inicia na região conhecida como semáforo da Bratac, passamos pela região próxima a Leste Oeste conhecida popularmente como “hotel tijolinho” e subimos, passando pela Praça Tomi Nakagawa, marquise da Sonkey e descemos para o Centro POP”, ela complementa indicando que projeto já andou por outros trajetos, atendendo, inclusive, ocupações.
De acordo com Poli, é difícil dizer quem são os participantes, porque trata-se de um “projeto de travessia”, porém, o Centro Juvenil Vocacional (CJV) tem sido um parceiro desde o primeiro momento. “São voluntários e voluntárias que o tempo todo nos procuram e se colocam para participar e nesses três anos alguns ficaram mais tempo, outros menos. Basicamente quem compõe desde o início sou eu e o Márcio, que é coordenador do Centro Juvenil Vocacional no Shangri-lá, que é também o que nos dá todo suporte institucional para realização do projeto porque no CJV temos acesso a uma cozinha grande, industrial, com utensílios, panelas. Também através do CJV, temos neste ano a participação de estagiários da PUC [Pontifícia Universidade Católica] que também desenvolve, entre outros projetos, essa parceria com o “Rango” para participar da confecção, entrega”, observa.
Poli compartilha que recebeu a notícia da premiação com surpresa. “Me deixa extremamente lisonjeada e até um pouco tímida diante da situação por reconhecer que existem muitas pessoas e projetos que também são altamente capacitados e fazem um trabalho muito bom, principalmente, visando esta população mais vulnerável, periférica, sem acessos mínimos para sobrevivência digna”.
Expressa, ainda, a alegria pelo reconhecimento do trabalho. “No sentido de entender que o projeto Rango apesar de não ser grandioso e a gente ainda alcançar a cidade toda como sempre foi o nosso sonho, mas que ele faz sim diferença na vida dessas pessoas em situação de vulnerabilidade. Por mais que o número não seja tão grande como a gente gostaria, mas é uma experiência que faz a gente acreditar em uma sociedade melhor, mais justa, com pessoas com empatia, reflexão social, porque este projeto não é feito só pela Poliana ou Marcio, mas por pessoas que já passaram e ainda passarão e isso me deixa muito feliz”, relata.
Associação Londrinense de Circo também é premiada
Outro grupo que receberá o Troféu Luiz Gama é a Associação Londrinense de Circo. Sérgio Oliveira, artista circense, arte educador e um dos responsáveis pela gestão da entidade, recorda que a unidade foi criada em 2001, após a realização de diversas oficinas de circo no final da década de 90. “Nós fundamos a Associação Londrinense de Circo para legitimar todo esse processo político pedagógico que já vinha sendo feito com as oficinas de circo que aconteciam a cidade”, afirma.
Já em 2004 foi fundada a Escola de Circo. Depois de uma década localizada na área central, hoje, a Escola está sediada na Avenida Saul Elkind, nº 836-872 – Zona Norte, e oferta atividades em diferentes modalidades. ” O projeto não atende mais só o circo, integramos outras linguagens, principalmente, do hip-hop como break, grafite, artesanato, música”, acrescenta.
Sérgio aponta que, atualmente, a equipe é formada por aproximadamente 32 profissionais, considerando administração e arte educadores. Entre as ações desenvolvidas, está a oferta de um curso avançado em circo, que propõe a formação de artistas circenses profissionais. Também a manutenção da Vila do Circo que é uma vila cultural, alocada no mesmo endereço da Escola, e onde acontece atrações como carnaval, apresentações de teatro, música, entre outras.
“No campo da educação, atendemos o projeto “Circo nas Escolas”. Hoje, estamos dentro de 13 escolas municipais, sendo sete delas em distritos rurais, atendendo cerca de 600 crianças que participam de oficinas regulares”, destaca.
De acordo com Sérgio, cerca de 1.300 pessoas são atingidas pelas atividades promovidas, sendo que grande parte advém de grupos marginalizados como pessoas em situação de rua e mulheres vítimas de violência.
Para ele, a premiação significa um incentivo ao trabalho da Associação bem como a possibilidade de integração com outros coletivos que também defendem mudanças sociais em prol de uma sociedade mais justa. “Para nós tem uma importância muito grande e serve para valorizar e dar força para que a gente possa continuar nesta trajetória, buscando transformação social através das artes aqui dentro da cidade de Londrina e, principalmente, se juntar com outros coletivos que também tem este mesmo ideal, a busca da transformação social dos nossos bairros periféricos”.
Economia invisibilizada
Sérgio evidencia o papel da Semana da Favela para movimentar a economia local e gerar renda para trabalhadores de diferentes áreas. Setor este que, embora nem sempre reconhecido, só no último ano movimentou cerca de R$ 202 bilhões, segundo levantamento do Instituto Locomotiva.
“Muitas vezes essa economia não é observada pelo poder público, pelas pessoas que incide nas políticas publicas, então, a Semana da Favela dá essa possibilidade de abrir diálogo entre o poder público e a comunidade, para fortalecer esse tipo de economia que muitas vezes não é formalizada”, avalia.
Contra o apagamento
Para Poliana Santos, a Semana da Favela poderia ser um “ano”, isto porque, ela entende que a discussão incessante das lutas e potencialidades das periferias é urgente a fim de retirar da invisibilidade as reivindicações e feitos das comunidades. “Uma das coisas que sofremos, e quando digo sofremos, as pessoas em situação de vulnerabilidade e aquelas que tentam trabalhar e fazer algo para combater isso, é a invisibilidade, o apagamento do trabalho”, avalia.
Assim, para romper com preconceitos e a perspectiva de tutela, o debate da realidade das quebradas é fundamental. “A gente sabe o quão difícil é, nada para fazer sozinho, coletivamente que são alcançados resultados, mas é importante que pelo menos em um determinado espaço de tempo haja esta reflexão, debate, um discurso que realmente chame a atenção da sociedade para as mazelas que ainda vivemos, mas também das vitórias que alcançamos combatendo estas mazelas”, ela sugere.
Esta é a terceira edição da Semana da Favela Londrina. A primeira, em 2021, ocorreu no São Jorge. A segunda no Vista Bela. Neste ano, o evento conta com apoio institucional da Prefeitura de Londrina e patrocínio do Banco24Horas.
Confira a listagem completa de agentes e associações selecionados:
- Iyalorixá Cláudia Ikandayo
- Projeto Rango
- Rita de Cássia Lemos, Projeto Alices
- Marcio Teixeira Primo
- Adriana Marcolino Cordeiro Camilo, Projeto Amigas do São Jorge
- Vasco Perez Giufrida
- Cristiane de Mattos Sabino
- Cornelia Wendel
- Associação Londrinense de Circo
- Leandro Palmerah
- Cia Clac de Teatro
- Thiago Fagner de Souza Ramalho
- DJ Damião Milianos
- Teresa Mendes de Souza
- Cassia Regine Nogueira Guimarães
- Débora Maria Proença
- Natália Alves Mafiosa
- Felipe Augusto Gandolfo da Silva
- Ismael Giachini Frare
- Rede Lume de Jornalistas
Serviço:
Troféu Luiz Gama – Semana da Favela Londrina 2023
Local: Salão Social do SESC Centro (Rua Fernando de Noronha, nº 264)
Horário: 19h
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.