Servidores ambientais e indigenistas desobedeceram ao comando das lideranças e agiram às escondidas para dar continuidade ao trabalho de órgãos como Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) durante o governo Jair Bolsonaro (PL), revela estudo de pesquisadora da FGV (Fundação Getúlio Vargas) com cerca de 400 profissionais públicos.
Na época, eles incentivaram protestos contra a gestão, denunciaram em anonimato irregularidades ao Ministério Público e mantiveram reuniões não autorizadas com comunidades afetadas por políticas ambientais.
Planeta em transe
A atuação dissidente foi motivada, segundo o estudo, pelas dificuldades impostas pelo governo ao trabalho desses profissionais. Servidores não conseguiam fazer viagens de campo para atender povos indígenas, manter a fiscalização do desmatamento e ter acesso a apoio logístico para as atividades. Para contornar a situação, eles passavam por cima da autorização das lideranças.
Procurados, a equipe de Bolsonaro e o deputado Ricardo Salles (Novo), ex-ministro de Meio Ambiente, não responderam aos questionamentos até a publicação desta reportagem.
O trabalho divergente dos servidores foi detectado na tese de doutorado de Mariana Costa Silveira, 38, atual pesquisadora de administração pública na Universidade de Lausanne (Suíça). Ela aplicou um questionário para 339 profissionais, além de ter entrevistado mais 82 pessoas que atuam nessa área no governo federal, para entender o que motivou esse comportamento. O objetivo dos servidores era cumprir a missão institucional dos órgãos, o que respalda as práticas adotadas por eles, segundo a pesquisa.
“Servidores fizeram o possível ao dar corda para grupos externos pressionarem o governo. Era comum que compartilhassem dados e informações para subsidiar denúncias, que fizessem relatos anônimos ao Ministério Público e uma série de práticas para afetar os tomadores de decisão no alto escalão”, diz Silveira.
A pesquisadora é doutora em administração pública e governo pela FGV-SP, mestre em ciência política pela USP e teve período de doutorado sanduíche na Universidade Harvard (EUA).
Gustavo Vieira, 46, especialista em indigenismo na Funai que preside a associação de servidores INA (Indigenistas Associados), diz que, no governo Bolsonaro, a principal dificuldade era conseguir autorização para fazer viagens de campo, sobretudo para visitar terras indígenas ainda não homologadas.
Na época da Covid-19, o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou que o governo federal combatesse o avanço da pandemia em territórios de povos originários. Foi essa decisão que permitiu a continuidade do trabalho do órgão, na avaliação de Vieira.
“Usamos forças-tarefas para a Covid como uma solução para seguir trabalhando, indo para bases e fazendo assembleias”, diz. “As regras de segurança de saúde foram cumpridas, mas aproveitamos para fazer indigenismo real.”
Além de reuniões secretas, servidores continuaram produzindo notas técnicas e relatórios sobre demarcação de terras, na contramão do que pediam as lideranças. Segundo Gustavo, os processos não iam para frente, mas a continuidade desse trabalho permitiu que eles tivessem projetos inteiros de demarcação prontos para serem entregues no governo Lula (PT).
Na gestão Bolsonaro, havia temas que eram vetados pelas chefias, de acordo com o estudo de Mariana Silveira.
Parcerias com ONGs, processos participativos, viagens a unidades de conservação ou terras indígenas e “decisões baseadas em evidências” deveriam ser evitados em relatórios, notas técnicas e atividades de planejamento e orçamento.
“Indicados políticos ficavam atentos para barrar coisas que consideravam impróprias ou desalinhadas com os objetivos deles. Mas nem sempre percebiam tudo”, afirma ela.
No caso do Ibama, por exemplo, os servidores identificavam um foco de desmatamento e solicitavam uma visita na área. Como era difícil conseguir autorização para impedir a derrubada de árvores, eles diziam às chefias que a viagem seria dedicada à fiscalização de madeireiras, segundo servidores consultados pela reportagem.
Quando chegavam ao local, desviavam da função informada e procuravam maquinários usados no desmatamento para destruí-los. Só então voltavam a fiscalizar as madeiras.
Lá e nos demais órgãos afetados, os profissionais também vazavam informações para entes externos, como membros do congresso e a imprensa. Isso porque, em 2020, uma portaria do Ibama restringiu o contato entre servidores e jornalistas.
Um dos fatores que motivaram a ação dissidente foi o apoio de associações de servidores e sindicatos, de acordo com o estudo.
Na época, essas entidades contrataram assessorias para acompanhar o movimento no Congresso e passaram a ampliar contatos com ONGs e movimentos sociais, além da imprensa. A Ascema (Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente) foi uma das envolvidas nessa mobilização.
Wallace Lopes, 39, diretor-adjunto da entidade e também agente de fiscalização ambiental no Ibama, afirma que, além das dificuldades de fazer viagens de campo, os profissionais temiam pela própria segurança, sobretudo em áreas dominadas pelo garimpo.
A proteção aos servidores é responsabilidade da Força Nacional ou de polícias estaduais, que, em campo, ficam sob a autoridade do coordenador operacional, vinculado ao Ibama. No entanto, a depender do objetivo da fiscalização, eles não conseguiam autorização para andar com essa equipe.
“Conseguimos executar algumas atividades sem o apoio policial, embora isso não seja o ideal, porque há uma imprevisibilidade grande nessas ações”, diz Wallace. “Mas sem a atuação velada dos servidores, teríamos um cenário muito pior de desmatamento.”
O governo ampliou a presença de militares nas chefias de órgãos ambientais e indigenistas. Para Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (rede de ONGs ambientalistas), essa mudança foi proposital, com a intenção de impedir o trabalho dos servidores.
“A estrutura militar não é questionadora, mas, sim, executora. Como as ordens eram questionáveis, era preciso ter uma estrutura que não fizesse perguntas”, avalia.
Fonte: Folha de São Paulo