Em regiões mais empobrecidas do país, a vulnerabilidade é ainda maior. Em 2016, a taxa de contribuintes chegava a 40%
Investigação, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), identificou que o número de trabalhadores por aplicativo cresceu no Brasil nos últimos dois anos. Do final de janeiro de 2021 até setembro de 2022, mais 200 mil pessoas passaram a integrar a categoria. Com isso, há pelo menos 1,7 milhão de trabalhadores associados a plataformas online em todo o país.
A quantidade pode ser ainda maior visto que se trata de um mercado com altos índices de informalidade, ou seja, muitas vezes os serviços são por demanda, prestados de forma temporária, o que dificulta a identificação e diálogo com os trabalhadores.
Não à toa, ainda segundo o estudo, somente 23% da categoria contribuem para a previdência social nesta ocupação. Logo, a maior parte de trabalhadores por aplicativo estão desprotegidos, sem acesso a direitos como auxílio-doença, aposentadoria por tempo de contribuição, descanso remunerado, 13º salário.
O índice demonstra uma queda em relação a 2016, quando aproximadamente 40% dos trabalhadores por aplicativo eram contribuintes. A pesquisa também evidencia a desigualdade regional entre o setor: enquanto no Sul, 37% recolheram para previdência social no período, no Norte, o percentual foi de 10%.
Fausto Augusto Júnior, diretor-técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) defende que é necessário debater a tributação das empresas que contratam funcionários através de aplicativos e ao mesmo tempo exigir a regulamentação da profissão respeitando a diversidade das relações trabalhistas, isto é, considerando diferentes regimes de contratação como assalariado e autônomo.
“A gente precisa fazer uma discussão neste país, sobre quanto de impostos o conjunto da sociedade paga e quanto estas empresas devem pagar. É importante a gente lembrar que quando estamos falando de seguridade social estamos falando de financiamento. Quem paga a seguridade social? O Estado tem um orçamento, um recurso que vem das empresas, da população em geral. Então, este debate precisa ser feito, estas empresas empregam uma quantidade bastante grande de trabalhadores e precisam contribuir para a seguridade social com base no espaço que elas ocupam. Em sua maioria são empresas grandes, internacionais, monopolistas”, observa.
Ele também pontua que a discussão dos direitos trabalhistas não interessa apenas a esta parcela de trabalhadores já que a plataformização do trabalho tem adentrado outras áreas para além do transporte e entrega de alimentos. Empresas que ofertam serviços de saúde, educação também têm utilizado aplicativos para contratar mão de obra.
“A questão quando a gente fala dos aplicativos, de alguma forma, eles cooperam para desregulamentar trabalhos formalizados. Vamos lembrar que uma boa parte dos trabalhadores por aplicativos hoje, eram, antigamente, taxistas, entregadores de motocicleta, os ‘motoboys’, que tinham formalmente carteira assinada e eram entendidos como trabalhadores assalariados com CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]”, indica.
Júnior chama atenção para a urgência de um debate amplo com a participação do Ministério Público do Trabalho, associações de trabalhadores por aplicativo, centrais sindicais e empregadores a fim de avançar na garantia de direitos já que não tem sido incomum a tentativa de tais empresas burlarem as políticas de seguridade social nos países em que se instalam. Ele aponta também que é necessário compreender qual é a natureza destas marcas, pois apenas uso de plataformas não define a caracterização do segmento.
“Estas empresas são afinal de contas de que ramo? Empresas de tecnologia? Empresas de entrega? Empresas de transporte? É preciso entender que há uma mudança na estruturação do mercado de trabalho, inclusive, nas necessidades e demandas dos trabalhadores. E também no processo de regulamentação dos trabalhadores de aplicativo não abrir possibilidade para que outros setores sejam precarizados”, adverte.
Aliança Nacional
No final de 2022, foi criada a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos (ANEA), um coletivo que busca congregar representantes da categoria de todo o país. Na última segunda-feira (13), a entidade enviou uma carta ao governo Lula (PT) com reivindicações dos trabalhadores que atuam na área. Ao todo, foram 12 pontos contemplados, entre eles: formalização da relação de trabalho, acesso à previdência social, responsabilidade por custos e equipamentos e seguro de acidentes de trabalho. Acompanhe a íntegra da carta divulgada pela ANEA:
Trabalho digno e uma carta de direitos para os entregadores
O trabalho precário e vulnerável a que são submetidos os chamados trabalhadores de aplicativos é uma das principais mazelas do mercado de trabalho brasileiro. Vivemos sob a tirania de um trabalho mal remunerado, com a ameaça permanente de exclusão, sem direitos trabalhistas mínimos e sem reconhecimento. Durante a pandemia, este quadro de precariedade se agravou.
No Brasil, somos cerca de 1,5 milhão de trabalhadores, entregadores de comida e mercadorias, que ocupam a paisagem urbana das cidades. Uma categoria heterogênea, com experiências ocupacionais distintas, mas que, em comum, experimentam a insegurança e degradação dos direitos básicos. É preciso passar da exploração para a proteção e chegou a hora de uma intervenção pública para garantir condições justas de trabalho para estes trabalhadores.
Desde 2019, convocados por diversos coletivos e novas representações emergentes dos entregadores, realizamos mobilizações nacionais por melhores condições de trabalho das empresas e, ao mesmo tempo, contribuímos com o debate para a intervenção legislativa. Em dezembro de 2022, criamos a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos (ANEA), uma representação nacional que congrega trabalhadores organizados em coletivos e associações para a defesa e representação coletiva dos trabalhadores. Um dos objetivos da ANEA é ativamente contribuir com o debate público sobre a regulação das plataformas no Brasil.
Como princípio, a ANEA defende a necessidade de construir um pilar, com uma carta de direitos para os entregadores, a fim de reverter o impacto negativo do modelo de negócio das plataformas digitais sobre os trabalhadores, como a baixa remuneração, a jornada excessiva, a ausência de benefícios previdenciários e a insegurança no trabalho.
À semelhança de muitas formas de trabalho que foram transformadas e precarizadas nas últimas décadas, somos formalmente considerados autônomos ou empreendedores pelas plataformas, mas, na prática, sofremos controle, avaliação e competição por tarefas. Nossa liberdade é limitada ao poder escolher quando nos conectar ao aplicativo, e essa liberdade termina ali, quando somos guiados pelo algoritmo e temos que assumir todos os riscos do trabalho.
Um verdadeiro trabalhador autônomo tem liberdade para definir o preço de seus serviços, escolher a organização de seu trabalho e como prestá-lo, sempre tendo a opção de recusar serviços sem sofrer penalidades. Pela nossa experiência cotidiana no trabalho, constatamos que a autonomia é aparente e não existe, pois há mera flexibilidade de horários.
Sem reconhecer a relação de trabalho entre a plataforma e seus trabalhadores, estes trabalhadores ficam sem direitos às proteções básicas previstas por lei, (como seguro contra acidentes de trabalho e direito às férias). Além disso, as plataformas mantêm poder absoluto para despedir ou banir trabalhadores sem justificativa, o que gera uma insegurança constante.
Defendemos uma carta de direitos trabalhistas e previdenciários, combinados com flexibilidade (e autonomia), para que os trabalhadores escolham os dias, horários e plataformas de trabalho. Temos reivindicações por regulação das peculiaridades do trabalho nas plataformas, como jornadas flexíveis, mas não acreditamos que devemos ter direitos depreciativos distintos.
É preciso, portanto, construir uma proposta de intervenção legislativa para proteger os direitos dos trabalhadores em plataformas digitais. Entre os pontos básicos de uma lei protetiva, defendemos uma carta de garantias e direitos que inclua, entre outros: garantia de renda mínima, (limite de jornada diária e semanal) com liberdade de horários, direito a descanso e desconexão, férias, seguro contra acidentes de trabalho e doenças ocupacionais. Além disso, a lei deve garantir aos trabalhadores proteção contra demissão abusiva por parte das plataformas, condições de trabalho dignas, com normas de proteção à saúde e segurança.
Outro aspecto importante é o acesso dos trabalhadores à previdência social, incluindo direito à aposentadoria, auxílio-doença e seguro-desemprego. A representação coletiva dos trabalhadores também deve ser garantida, com direito à negociação coletiva pela representação dos trabalhadores organizados em sindicatos ou associações.
Os algoritmos construídos e controlados pelas empresas têm o poder de definir padrões menos degradantes para os trabalhadores. Por fim, mas não menos importante, a transparência dos algoritmos utilizados pelas plataformas é outro aspecto importante, que deve ser garantido tanto aos trabalhadores quanto ao poder público, como o direito à informação.
Compreendemos haver um ambiente de disputas em vários países sobre modelos adequados de regulação para as plataformas. No entanto, a tendência é atribuir às plataformas a responsabilidade pela organização do trabalho e reconhecer a relação de emprego pelo critério da presunção, como na proposta de Diretiva aprovada no Parlamento Europeu em fevereiro de 2023. É falso argumentar que a presunção da relação de emprego inviabiliza as plataformas.
O desenho desta legislação, em um ambiente democrático, deve ser precedido por uma consulta prévia à representação dos trabalhadores. Por isso, reivindicamos a garantia de um espaço para diálogo e participação efetiva no debate público sobre o marco regulatório nacional. Ao longo dos últimos anos, a pluralidade do movimento dos trabalhadores construiu uma pauta de direitos e propostas básicas para um modelo de regulação.
Além das garantias e direitos, é necessário adequar aspectos importantes da legislação vigente sobre o registro, habilitação e profissionalização dos motofretistas, entregadores e seus veículos. Neste ponto, é preciso alterar a “Lei do Motoboy” de 2009 (Lei n. 12.009, de 29 de julho de 2009), que define condições e taxas de regularização excessivas, sendo uma das causas da informalidade e vulnerabilidade deste trabalho.
Assim, a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos (ANEA), compreendendo a importância do diálogo institucional, manifesta publicamente seu interesse e disponibilidade para participar no processo de elaboração normativa da regulamentação das plataformas digitais de trabalho, apresentando pontos para uma plataforma básica de discussão.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.