Caso registrado em Bauru (SP) pode se tornar referência em ações com teor semelhante em todo o país
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (8) o julgamento sobre um pedido de habeas corpus (HC) feito pela defesa de um homem negro preso por tráfico de drogas com 1,53 g de cocaína, em 2020 na cidade paulista de Bauru. Os policiais que prenderam o homem reconheceram que só fizeram a abordagem por conta da cor da pele dele.
Apesar de se tratar de um julgamento sobre um caso concreto, relativo a um episódio específico, a votação é acompanhada de perto por organizações do movimento negro, já que pode criar jurisprudência sobre a legalidade ou não de provas obtidas a partir de decisões racistas dos agentes nas ações policiais pelo país.
Até o momento, quatro ministros do Supremo já votaram no caso. O relator, Edson Fachin, defende que as provas sejam consideradas ilegais, o que anularia a condenação do homem na Justiça. Os ministros André Mendonça, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli tiveram entendimento diferente, e até o momento a votação está em 3 a 1 para a manutenção do valor das provas.
Apesar dos votos discordantes, todos os ministros que já se posicionaram sobre o tema concordaram que o perfilamento racial (ou seja, ações a partir de generalizações baseadas na cor da pele) deve ser abolido da atuação policial em todo o país. Apesar disso, Mendonça, Moraes e Toffoli avaliam que o entendimento não se aplica ao caso em questão. Os votos dos outros sete ministros ainda são aguardados.
“Fundada suspeita”
Para Fachin, os autos do processo não têm elementos concretos que caracterizem fundada suspeita (um conceito previsto no Código de Processo Penal) para busca pessoal. Ele complementa destacando a ilicitude de busca realizada com base em cor da pele ou aparência física.
A fundadora e coordenadora do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, acompanha ansiosa o andamento das discussões sobre o caso no Supremo. Mãe do gari Edson Rogério Silva dos Santos, assassinado pela polícia aos 29 anos em 2006 em Santos (SP), ela afirmou em entrevista ao Brasil de Fato que “o padrão do enquadro” é sempre o mesmo: “o menino negro, pobre, morador de favela e de periferia, com boné, chinelo de dedo, bermuda”.
“Se existem leis, se [os policiais] são treinados para dar essa fundada suspeita só em bairros periféricos, em negros e pobres, então nós temos que mudar esse modo. Um negro de terno e gravata também é suspeito por causa do padrão da cor. Ele pode estar de terno e gravata, ele continua sendo suspeito. É um padrão que tem, de controle da população pobre e negra nesse país, e a gente não pode aceitar”, afirmou.
A advogada Agatha Miranda é coordenadora de Incidência Política no Instituto de Referência Negra Peregum e integrante da Coalizão Negra por Direitos, duas instituições que participam desse julgamento no Supremo na condição de amicus curiae, ou seja, fornecem subsídios e informações à Corte para tomada de decisão. Ela explicou ao Brasil de Fato que as organizações trabalham para convencer os ministros sobre a tese do perfilamento racial.
“É de extrema importância que o Supremo consiga tratar sobre a legalidade dessa dinâmica que tem se instaurado na atuação policial. Até aqui nos parece que há uma resistência de reconhecimento do Supremo sobre o tema, sobre a relevância dessa temática, principalmente sobre o caso concreto”, destacou.
Miranda afirma que o objetivo dessa discussão no Supremo é reabrir o debate sobre a licitude de provas colhidas a partir de abordagens com viés racista, bem como a validade de prisões e das provas que dão sustentação a elas. É possível, portanto, que o tema tenha impacto no encarceramento em massa.
“A racialização da operação das polícias e do sistema de justiça criminal, isso está muito presente dentro desse tema do perfilamento racial. Por isso uma decisão positiva dos ministros e das ministras do Supremo nesse sentido pode contribuir para impulsionar uma jurisprudência a nível nacional, um impacto em decisões dos tribunais inferiores”, disse.
Marco na história judicial
A advogada não hesita ao dizer que a votação desse caso é histórica no sistema judiciário brasileiro. “O reconhecimento da atuação de uma instituição tão importante como a polícia ter um viés racial, principalmente nessa atividade específica das buscas pessoais, é um marco”, afirmou.
Débora Maria da Silva afirma que tem muita expectativa sobre o julgamento no Supremo, e confia que os demais ministros vão mudar o rumo da votação, garantindo a criação de jurisprudência relevante nos casos de abordagem policial com componentes raciais. Mas, para ela, isso não é suficiente. É preciso mudanças profundas na forma de atuação das polícias no país.
“É muito bonito as leis no papel, mas não tem uma vigência, não tem um controle, não tem um olhar diferenciado de quem está com a caneta na mão. Quem está com a caneta na mão tem mais responsabilidade do que quem está com o fuzil. A caneta é mais perversa, porque ela arquiva as impunidades perpetuadas por essa instituição chamada segurança pública, que não ‘segura’ a maioria da população brasileira pagadora de seus impostos”, concluiu.
Fonte: Brasil de Fato