Para professora, decisão é fundamental para combater violências de gênero
Utilizar a tese da “legítima defesa da honra” em julgamentos de crimes de feminicídio (Lei nº 13.104) é inconstitucional. Esta foi a decisão tomada, por unanimidade, pelo STF (Supremo Tribunal Federal) na última terça-feira (1º). A Corte entendeu que o uso do argumento contraria os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.
“O argumento da ‘legítima defesa da honra’ é uma tentativa da defesa de feminicidas, ou seja, de homens que assassinaram mulheres para dizer que se encaixaria na hipótese de legítima defesa a proteção da sua imagem perante a sociedade. Era uma forma de tornar culpada a mulher que morreu ou quase morreu nas mãos de um homem”, explica Eneida Desiree Salgado, professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e vice-presidenta da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini no Paraná.
Segundo o Código Penal, age em legítima defesa quem, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
O entendimento é resultado de uma ação movida pelo PDT (Partido Democrático Brasileiro). De acordo com a docente, a motivação do coletivo foi afirmar que a tese contraria a Constituição em vigor e reproduz preconceitos e violências contra a mulher.
“Encaixar a ‘legítima defesa da honra’ como uma possibilidade de defesa significa afirmar que a honra de um homem é mais importante do que a vida de uma mulher. Então, o PDT pediu que houvesse o reconhecimento que sob a Constituição de 1988 não seria possível utilizar esta linha de defesa. É importante lembrar que não há em nenhum lugar esta possibilidade, a não ser no tempo do Brasil Colônia”, acrescenta Salgado.
Para ela, a decisão é importante, pois é um despertar para que as repressões de gênero sejam desnaturalizadas. “A decisão pode servir para que a sociedade se dê conta que não é possível deixar de punir de maneira severa, como determina a lei, homens que agridem mulheres, homens que levam mulheres a perder a vida, homens que desprezam a existência de mulheres. Talvez isto seja insuficiente para mudar a mentalidade, mas certamente é um bom começo”, observa.
Caso Ângela Diniz e a persistência da misoginia
O feminicídio de Ângela Diniz, em 1976, na cidade de Búzios, é considerado um dos marcos para o emprego da tese da “legítima defesa da honra” nos Tribunais do Júri do Brasil. Através dele, os advogados do assassino Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido por Doca Street, com destaque para Evandro Lins e Silva, considerado um dos grandes juristas do país, conseguiram trazer Ângela para o banco dos réus, transformando a vítima em culpada pelo próprio assassinato.
Mais de quatro décadas depois, o argumento continua presente nos julgamentos. “O assassinato de Ângela Diniz e a punição recebida por Doca Street: 18 meses, foi um acinte já há quarenta anos. Mas mesmo depois deste tempo todo e a Constituição de 1988, ainda existem pessoas que pensam deste modo. Ainda há defensores que fazem esta linha argumentativa e ainda há corpo de jurados que aceita, de uma maneira direta ou indireta, a ideia da ‘legítima defesa da honra’. Então, é essencial que se declare, determine que ela não é mais aceita”, adverte.
Poder Judiciário reflete machismo
Para Salgado, a persistência do argumento no sistema judiciário brasileiro foi possível pela cultura misógina que permeia a sociedade brasileira e sob a qual as violações dos corpos e direitos das mulheres são tolerados. “A tese perdurou por tanto tempo, porque infelizmente, nós ainda vivemos em uma sociedade em que não há igualdade e não há respeito às mulheres”, ressalta.
“Quem compõe o poder Judiciário é reflexo da sociedade. Então, há também uma repetição de uma visão machista, de desigualdade. Tanto é assim que o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] aprovou há pouco, um protocolo para julgamentos com perspectiva de gênero, exatamente para mudar esta leitura do direito que serve para apenas uma parte da sociedade: homens brancos, proprietários, heterossexuais, cisgênero, com a exclusão das demais camadas da sociedade que ficam à margem da aplicação da lei. O STF fez história na semana passada, esperamos, no entanto, que não seja apenas um hiato, mas o início de uma grande transformação”, finaliza.
Em 132 anos de história, STF teve, até o momento, 168 ministros homens e apenas 3 mulheres.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.