Dados da Pnad demonstram reflexos do racismo e das desigualdades de gênero já na infância
De acordo com dados levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2019, havia 1,8 milhão de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos em situação de trabalho infantil, representando 4,6% da população nesta faixa etária. O número indica um recuo face a anos anteriores. Em 2016, o contingente era de 2,1 milhões.
Porém, para a assistente social, Nayara Pires, o decréscimo deve ser olhado com cautela. “É preciso lembrar que o estudo foi realizado antes da Covid-19. É sabido que a pandemia agravou a crise econômica, aumentou as desigualdades sociais. Então, a taxa de crianças e adolescentes submetidas a trabalho infantil para complementar a renda das famílias mais empobrecidas pode ser ainda maior”, ela avalia.
Ainda, segundo a investigação, naquele período meninos negros com idade de cinco a 13 anos correspondia a maioria (66,1%) das crianças e adolescentes condicionados a algum tipo de trabalho infantil no país. Chama atenção também que existiam aproximadamente 706 mil menores exercendo funções classificadas como “piores formas de trabalho infantil”, ou seja, 45,8% do total de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos estavam expostos à escravidão ou práticas análogas como aliciamento para fins de exploração sexual comercial, produção de pornografia, recrutamento para atividades ilícitas, a exemplo do tráfico de drogas e conflitos armados.
“O trabalho infantil possui diversos prejuízos para crianças e adolescentes que têm o direito à infância violado. Uma das consequências mais apontadas é a evasão escolar, já que muitos deixam de estudar para conseguir cumprir as demandas impostas, reproduzindo um ciclo de desigualdade, pois é notório que, a maior parte de menores explorados é de crianças e adolescentes negros. Além disso, eles estão desprotegidos, sem qualquer amparo por parte do estado. A Constituição determina que menores de 16 anos não podem trabalhar, exceto em casos de aprendizagem profissional a partir de 14 anos”, alerta Pires.
A profissional pontua também que o governo Jair Bolsonaro (PL), em 2020 e 2021, zerou os recursos destinados à implementação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Criado em 1996, a iniciativa possui apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Entre 2016 e 2017, foram investidos R$ 143, 5 milhões na medida. Em 2019, já sob a gestão do atual presidente da República, apenas R$ 4,7 milhões foram destinados aos estados e municípios para que pudessem criar ações de combate ao trabalho infantil.
“Temos vivenciado um desmantelamento das políticas focalizadas na erradicação do trabalho infantil no Brasil, embora o país tenha firmado este compromisso junto as Nações Unidas. O documento assinado garantia que até 2025, não haveria mais nenhuma criança e adolescente subordinado a trabalho infantil em território nacional, mas o enfraquecimento das legislações, corte de financiamentos demonstram que será muito difícil cumprir esta meta”, analisa.
Trabalho doméstico
A investigação identificou, ainda, que 84 mil crianças e adolescentes de cinco a 17 anos exerceram alguma modalidade de trabalho doméstico em 2019. Eles desenvolveram, majoritariamente, cuidados de outras crianças (48,6%) seguido de afazeres voltados à limpeza e organização das casas (40,3%). Destaca-se também que a maioria das crianças e adolescentes nestas atividades era composta por meninas (85,2%), sendo majoritariamente negras (70,8%).
Os menores dedicaram 22, 2 horas por semana ao trabalho doméstico e a remuneração média era de R$ 3,10 por hora. Ademais, enquanto a média nacional de trabalho doméstico infantil sem remuneração era de 1,7%, na região Norte o índice chegou a 9,9%.
“Podemos observar que a desigualdade de gênero já inicia na infância, sendo as meninas as principais responsáveis pelos cuidados domésticos, seja em suas próprias casas ou trabalhando para terceiros. Além disso, identificamos o racismo estrutural que destinam os trabalhos com menor prestígio social à população negra e, mais especificamente, os serviços de limpeza às mulheres negras. Há evidentemente uma perpetuação da raiz escravocrata sob a lógica do trabalho mesmo o infantil”, explica.
Para a pesquisadora, é urgente a proposição de políticas públicas interseccionais, ou seja, que contemplem marcadores sociais como renda, pertencimento étnico-racial, localização geográfica, pois “quando pensamos em infâncias e juventudes, temos que considerar a pluralidade de experiências e opressões específicas as quais crianças e adolescentes estão submetidos. Ser uma criança negra, em uma sociedade marcada pelo racismo não tem o mesmo significado que ser uma criança branca. É fundamental também o reconhecimento das diversidades, a valorização de todas as culturas para que eles se vejam representados e pertencentes”, indica.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.