Há algo que une todas as principais religiões do Brasil, e não estamos falando do amor a Deus ou a deuses, seja qual for sua crença. Aliás, amor não tem qualquer espaço aqui. A transfobia é uma fístula que lacera relações sociais em múltiplas casas de fé, do terreiro à igreja.
Mesmo religiões tidas como trincheira contra o preconceito com pessoas LGBTQIA+ têm um histórico de marginalizar transgêneros, apontam cinco deles às vésperas do Dia Nacional da Visibilidade Trans, comemorado neste domingo (29).
A modelo Ariadna Arantes, 38, primeira trans no Big Brother Brasil, fez um desabafo no dia seguinte à data que celebrou a causa em 2020. “Estou sofrendo intolerância dentro da própria religião.”
Havia acabado de ser iniciada no candomblé. Virou notícia: a ex-BBB de saião, blusa e turbante brancos. Mas muita gente, inclusive nos terreiros, torceu o nariz. Se a biologia não lhe fez mulher desde sempre, ela não podia se vestir como uma, alegavam.
“Vocês são o que, professores de anatomia?”, Ariadna esbravejou. Luyza Nogueira dos Santos, 24, já viu esse filme antes, e passou por maus bocados antes de conseguir seu final feliz.
Ela conhece o preconceito desde pequena. Andou com fé primeiro numa igreja pentecostal, e depois na Igreja Católica, onde chegou a fazer a primeira comunhão. Voltou a ser evangélica porque os católicos lhe pareciam mais certinhos, e ela “sentia falta do transe”.
Até que se descobriu médium ao receber no templo o Caboclo Laço de Ouro, uma entidade da umbanda, diz. Os fiéis em volta se horrorizaram. “Acordei lavada de óleo de unção dos pés à cabeça.”
Foi aí que Luyza encontrou a religiosidade afrobrasileira, mas sem se encontrar por completo nela, não num primeiro momento. Tinha uma tia de santo, uma parente espiritual, que apanhou com sandália da avó de santo porque havia chegada maquiada na casa.
“Era travesti declarada, mas dentro do terreiro a tratavam pelo nome morto [o que recebeu ao nascer], e vestia roupas ditas masculinas”, conta.
Luyza ainda não havia feito a transição de gênero e vivia sendo amolada para se assumir gay. Mas ela era uma mulher, não um homem homossexual. E se sentia desconfortável com regras como não poder baixar entidades femininas. “Até que uma pomba-gira pegou minha cabeça, a Maria Navalha do Cabaré.”
Conta que recebia ameaças, inclusive físicas, toda vez que aparecia com trajes femininos, como tranças de cabelo ou uma saia.
Para Ronan Gaia, 28, que escreveu uma tese de mestrado sobre mulheres trans no candomblé, a religiosidade afrobrasileira não está isenta de preconceitos que encharcam toda a sociedade.
“Em alguns terreiros, sobretudo os mais tradicionais, apenas mulheres dançam o xirê, ritual que antecede a evocação dos orixás. Mulheres trans são excluídas desse processo, e homens trans, inseridos”.
E esse é só um exemplo. O corpo é fundamental para o rito candomblecista, diz Gaia. Daí um destaque maior para a biologia, como se os orixás só compreendessem o gênero a partir do sistema reprodutor com que a pessoa nasceu.
Para o pesquisador, ainda que reproduzam dinâmicas transfóbicas, os terreiros são redes importantes para acolher a população trans.
É como a reverenda trans Alexya Salvador, 42, vê muitas das chamadas igrejas inclusivas. Elas, ao contrário da maioria do meio evangélico, não percebem a identidade LGBTQIA+ como pecado. O problema é que esses templos não discriminam o fiel trans, mas nem sempre o aceita na liderança, diz.
Vide a amiga Jacque Chanel, que escolheu seu nome mesclando Jackie Kennedy com a grife de luxo. Após ter sua ordenação como pastora negada por uma igreja que se dizia livre de preconceitos, ela abriu a Séforas, pioneiro templo trans.
Hoje líder na Igreja da Comunidade Metropolitana, Alexya cresceu na Igreja Católica. Fora dela, era saco de pancadas de colegas. Piores que os hematomas na carne, só os deixados na alma por padres que excluíam os LGBTQIA+ da “obra de Deus”.
A psicóloga e pesquisadora Cris Serra, 49, é católica praticante. E diz mais. “Foi justamente a minha experiência de sagrado a partir da sacralidade do meu corpo que permitiu que eu compreendesse minha experiência para além dessa norma cis-heterossexual tão dominante”, afirma.
Ela hoje usa o pronome feminino para se referir a si, mas gosta “quando a fronteira fica confusa” e lhe tascam o masculino. Cris se define como pessoa não binária. Entende-se portanto como trans, sem se identificar com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento.
Sabe da longa ficha corrida do Vaticano na transfobia. Recentemente, um post nas redes sociais ilustrou bem do que Cris está falando: lamentava “ver travecão comungando” nas missas modernas.
Papa Francisco, nesse sentido, emite sinais dúbios. Na quarta (25), declarou que a homossexualidade não é crime, mas é pecado. Imagina então o que acham deles, se perguntam os transgêneros.
Em 2016, o pontífice disse que a teoria de gênero, “grande inimiga” do casamento tradicional e da família, quer propagar a “colonização ideológica”. Alas conservadoras da Igreja vibraram.
O mesmo Francisco já recepcionou um homem trans em audiência e lavou os pés de uma travesti numa Quinta-Feira Santa. “Para além de encarar com otimismo ou pessimismo gestos do papa”, diz Cris, “trata-se de construir uma Igreja com ênfase mais no acolhimento pastoral e menos em teologias normativas e descoladas das realidades concretas das pessoas”.
Lembra de dom Luciano Bergamin, bispo-emérito de Nova Iguaçu (RJ). Certo dia, veio até ele o pai de uma jovem trans, “muito atordoado com a situação da filha, chamando-a várias vezes pelo nome morto, masculino”. O bispo, “com bom humor, perguntou como era o nome dela e, rindo e alegando estar surdo, fez o grupo todo repetir o nome [feminino] várias vezes, cada vez mais alto”.
Ser homossexual, em casos extremos, já rendeu pena de morte em nações de maioria muçulmana. Não que trans sejam plenamente aceitos, mas a transfobia pode ser mais branda a depender do país, aponta a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, coordenadora do Gracias (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos), da USP.
O Irã permite a cirurgia de redesignação sexual desde 1983. Há inclusive relatos de gays pressionados a mudar de sexo para escapar da execução pelo Estado, isso porque as autoridades religiosas toleram a ideia de que uma pessoa nascida no corpo errado, mas não de relações homoafetivas.
Já os pares religiosos de Lilyth Ester Grove, 31, se incomodava menos “quando eu era bicha”, segundo essa antropóloga judia. Até ela perceber que não era um homem gay e fazer a transição de gênero. Aí já era demais.
No fim, a comunidade judaica reflete a sociedade como um todo, diz Lilyth. “Sobre o Brasil em particular, a visão da travesti é muito precarizada. Somos vistas como apenas trabalhadoras de sexo, barraqueiras. É mais aceitável ser um homem gay do que uma pessoa trans.”
Para Alexya, a pastora evangélica, a força maior que transgêneros podem mostrar “é que nossos corpos também são templos de Deus”. Os incomodados que se mudem.
Fonte: Folha de São Paulo