Pelo menos 17.000 pessoas já morreram em mais de 60 dias de ataques na Faixa de Gaza
“Entre 1947 a 1951, 88% da população palestina foi expulsa de seu território para a criação do estado de Israel. A maior limpeza étnica conhecida na história. Hoje nos aproximamos, em uma grandeza proporcional, de 80% da população deslocada” – esse foi o tom usado por Ualid Rabah, presidente da FEPAL (Federação Árabe Palestina do Brasil), durante o evento “Ato/Debate em defesa da Palestina”, ocorrido no último dia 7, no Anfiteatro de Morfologia da UEL (Universidade Estadual de Londrina).
Organizada pelo jornal A Nova Democracia, curso de Jornalismo da UEL, Centros Acadêmicos de História e Ciências Sociais, Corrente Proletária na Educação e Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, a palestra buscou informar e conscientizar o público sobre o contexto do atual genocídio promovido pelo estado de Israel.
As pessoas da comunidade árabe de Londrina e demais interessados no assunto, assistiram Ualid Rabah explicar sobre o contexto histórico de criação de Israel e a consequente expulsão dos palestinos do território no Oriente Médio. Ele também discorreu sobre o papel dos interesses imperialistas na região – especialmente do Império Britânico no século XX e dos Estados Unidos da América atualmente e sobre a situação enfrentada hoje pelo povo palestino, tanto em Gaza como na Cisjordânia.
Desde o dia 7 de outubro, após um ataque do grupo Hamas contra israelenses, matando cerca de 1.200 pessoas e sequestrando outras 260, a Faixa de Gaza sofre com constantes ofensivas de Israel. Os bombardeios de Israel já mataram mais de 17.000 pessoas, sendo que 41% das mortes são de crianças.
Além dos ataques aéreos, Israel promove em Gaza um ‘bloqueio total’, impedindo o fornecimento de luz elétrica, água, comida e remédios. Essa medida, considerada como crime de guerra desde 1977 pela ONU (Organização das Nações Unidas), pode elevar ainda mais os números de mortes.
“A falta de saneamento básico, a falta de água, segundo um informe da ONU, pode ser a causa da morte de mais 17.000 pessoas, além das que já morreram por ataques a mísseis. Se isso acontecer, representará três vezes mais mortes por dia do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial”, enfatizou.
Em entrevista após o evento, Ualid Rabah falou sobre a sua expectativa em relação ao futuro do conflito e dos palestinos. “A nossa leitura é de que todos os argumentos, tanto de Israel como dos EUA (Estados Unidos da América) se esgotaram, caíram por terra. A humanidade já está farta disso. Sob o ponto de vista político e eventualmente bélico, os EUA estão mantendo uma guerra de extermínio para manter sua posição atual, de domínio das bases energéticas e das conectividades para seus interesses. Isso também está em colapso. Até que ponto os EUA conseguiram sustentar isso? Acredito que está em declínio. O mundo será multilateral”, adverte.
Ainda sobre a interferência dos EUA, o presidente da FEPAL também avaliou que só haverá alguma resolução na região após a saída dos agentes externos. “É preciso que essa interferência acabe, tanto dos EUA como de seus aliados que estão espalhados pelo Oriente Médio, com presença na Síria, no Iraque, no Iêmen. As bases militares que estão nesses países prejudicam toda a região. Por isso que os países lá também querem o fim do conflito. É isso que os EUA querem evitar, mas não conseguiram”, declarou.
“Porque nós nos importamos com o apartheid na África do Sul? Por que nos importamos com o fim da matança no Vietnã? Porque nos escandalizamos com a Segunda Guerra Mundial? Por que nos ofendemos com as bombas atômicas lançadas no Japão? Porque são crimes de lesa a humanidade. O genocídio e apartheid contra os Palestinos também são crimes de lesa a humanidade tipificados por resoluções internacional”, afirmou Ualid ao argumentar sobre a importância do evento que acontece a milhares de quilômetros de distância de Gaza.
“O Brasil tem condicionantes próprias, além de ser signatários dessas resoluções, temos no artigo 4º da Constituição, dez princípios que orientam a nossa política externa. Todos esses princípios colidem com as ações tomadas por Israel contra os palestinos. Então, essas são razões suficientes para estamos aqui nessa sala e aqui no Brasil falando sobre isso”, ressalta.
As histórias estão bem próximas
Uma das pessoas que estavam na plateia é Amani Said, nascida no Brasil, filha de uma mãe palestina. Em 1978, o avô de Amani foi assassinado por Israel, Abdul Tahman Abdullah, que era combatente da Revolução Palestina e lutou na Síria, Jordânia e Líbano. Na época da morte de Abdul, a mãe de Amani, tinha dez anos e, junto de mais três irmãos, passou a viver com familiares escondidos em países da região. A morte do avô foi um evento determinante para a vinda da mãe de Amani para o Brasil.
“Minha mãe se casou com 15 anos de idade, algo comum na região e naquela época, algo não muito diferente do que acontecia no Brasil a poucos anos. Logo quando casou veio ao Brasil, o que talvez não aconteceria se meu avô Abdul Rahman estivesse vivo, tamanho apreço e amor tinha por seus filhos”, conta.
A avó e os tios de Amani só conseguiram vir para o Brasil em 1994. Casada e mãe de dois filhos, que também estavam no evento, Amani se entristece por não ter conhecido a terra onde sua família viveu. “Eu sempre tive o sonho de conhecer a Palestina, a Mesquita de Al Aqsa, a história de Jesus, um símbolo para nós muçulmanos, bem como as inúmeras paisagens e locais históricos e toda a paz que inspira o local. Para mim, em especial, imagino que me é permitido apenas sonhar. Mesmo que um dia eu consiga visitar, já que sou brasileira nata, teria percalços já no aeroporto por conta da minha descendência”, pontua.
Ela também contou que após trinta anos, sua mãe pode visitar os parentes que ficaram em Gaza. “Minha mãe pode retornar uns três anos atrás, diferente da minha avó, que nunca conseguiu voltar, nem mesmo quando sua mãe, minha bisavó estava em seu leito de morte. O passaporte que minha avó tem é Palestino e não tem validade no Brasil e sua naturalização ainda consta em análise aqui no país”, observa.
“Ontem um pouco antes do evento tomei conhecimento que a casa de amigos foi bombardeada. Graças a Deus não estavam em sua residência. Ex-colegas de quarto quando estudávamos religião em São Paulo, hoje repatriados por Gaza, são amigos muito queridos e precisam lutar para se manterem vivos em mais de 60 dias de guerra, sem água potável, sem comida, sem luz elétrica. Um desses amigos me relatou ainda que uma cartela de ovos está a preço de ouro, banho nem sabem mais quando será o próximo, estão a míngua sem remédios. Sei de casos de mulheres que passaram a tomar remédios para cortar a menstruação, tamanha a situação indigna que vem vivendo. Cada número apresentado por nosso colega Ualid Rabah ontem no evento era como uma flecha em meu coração, cada morte de uma criança nos dói na alma”, lamenta.
“O fato das crianças darem depoimentos dizendo que sabem que os palestinos dificilmente chegam a maioridade, e que há mais de 60 dias todos os dias acordam e colocam seus nomes em seus membros para que possam ser reconhecidos com facilidade quando forem assassinados e que sua família tenha a dignidade de poderem lhes enterrar numa cova rasa, pois são os enterros mais dignos que seus entes podem lhe dar”, continua Amani.
Em relação a palestra, ela evidencia a importância do evento para a sobrevivência do povo palestino. “Agradeço cada um que também se faz presente e talvez suas vidas tem poucas relações com o povo palestino, mas quando estão ali, e estão lutando por nós, estes também se tornam palestinos, e cada vez mais daremos trabalho ao Estado de Israel, pois o povo palestino é o mais forte e resiliente que essa humanidade já viu e quando um último viver nós não nos deitaremos sob os pés de Israel, seguiremos denunciando e fazendo o mundo lembrar das atrocidades que esse povo sionista que se acha o povo escolhido de Deus”, assinala.
Entenda
A área entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo é ocupado por diferentes povos, incluindo os árabes, por séculos. Após a Primeira Guerra Mundial e a extinção do império Otomano, a região passa a ser controlada pelo Império Britânico, com anuência da Ligas das Nações (predecessora da Organização das Nações Unidas). Nessa época, é criada a Declaração de Balfour – mencionado por Ualid no evento – que oficializa o apoio britânico à causa sionista, uma ideologia que reivindicava as terra de Jerusalém (onde viviam os palestinos) ao povo Judeu.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o sionistas ganham ainda mais apoio internacional devido a revelação do horrores do holocausto. A ONU então propôs a divisão do território em dois estados, Israel e Palestina. Os palestinos contestam a divisão feita pela ONU, alegando desproporcionalidade no território proposto, além de que Israel ficaria com a maioria das terras férteis. A proposta da ONU também colocava Jerusalém sob administração internacional. A revelia do povo árabe. A ONU vota a Resolução 181 em 1947 e assim cria o estado de Israel.
Poucos meses depois, já em 1948, Israel se declara como uma nação soberana, provocando a imediata reação dos países árabes em volta, como Egito, Síria, Jordânia, Iraque e Líbano. Após o fim desse primeiro embate, o que resulta é o que os árabes chamam de Nakba ou “tragédia”, quando mais de 700 mil palestinos são expulsos de suas casas após Israel tomar mais de 77% de seu território.
Ao longo das décadas, vários outros conflitos ocorreram e progressivamente Israel passou a controlar cada vez mais terras. Hoje, 2 milhões de palestinos vivem em assentamentos na estreita Faixa de Gaza e Cisjordânia. Desde o início do atual massacre, em outubro, mais de 80% da população de Gaza teve que se deslocar de suas casas devido ao bombardeio israelense. Elas passaram a se aglomerar na região sul da faixa de Gaza e são impedidas de ir e vir, já que todas as fronteiras estão fechadas.
Além disso, a Comissão para as Questões dos Prisioneiros Palestinos disse à AFP (Agence France-Presse) que estima que haja mais de 10 mil palestinos presos em Israel, incluindo crianças. Sem acusação formal, muitos deles estão presos mesmo antes do ataque do Hamas.
*Matéria do estagiário Lucas Worobel sob supervisão.