No Dia do Orgulho Internacional LGBTQIA+, Anuário Brasileiro de Segurança Pública, demonstra que registros de lesão corporal, homicídios dolosos e estupros aumentaram no estado no último ano
Orgulho de ser quem é
Em todo o mundo, junho é considerado o Mês do Orgulho LGBTQIA+. A data rememora lutas como a conhecida “revolta de Stonewall”. Isto porque, na noite de 28 de junho de 1969, policiais protagonizaram uma abordagem violenta no bar Stonewall, espaço historicamente frequentado pela comunidade LGBTQIA+, mulheres, negros, entre outros grupos subalternizados nos Estados Unidos. Em resposta à repressão, as ruas de Nova York foram tomadas denunciando abusos de autoridade e demais preconceitos sofridos pelo coletivo.
O levante também deu origem a primeira marcha do Orgulho Gay, realizada em 1970. Porém, é importante lembrar que no mesmo período, em outros países, a exemplo do México, Argentina e Brasil, também foram organizadas manifestações em prol dos direitos da população LGBTQIA+. Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), no livro “História do Movimento LGBT no Brasil” publicado em 2018, recupera as especificidades das articulações em território nacional, visto que sob a vigência da ditadura civil-militar (1964-1985), as denúncias de violações e conquistas de direitos tornavam-se ainda mais difíceis. Mas elas existiriam e a população LGBTQIA+ constituiu segmento imprescindível, inclusive, para a supressão dos anos de chumbo e redemocratização da sociedade brasileira.
A dimensão política da data também é lembrada pela estudante de Geografia na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Raffaela Rocha. Mulher transexual, ela chama atenção para o entendimento de que mais do que datas comemorativas, dias como do Orgulho LGBTQIA+, da Visibilidade Trans, constituem “marcos históricos” e representam, sobretudo, lutas encampadas cotidianamente pela comunidade. Rocha critica, ainda, a exploração exclusivamente comercial da data. “É muito importante trazer visibilidade, mas é algo que tem que ocorrer nos demais 11 meses do ano também”, adverte.
A expressão “Pink Money” ou “dinheiro rosa” tem sido popularizada para caracterizar campanhas de marketing de empresas que, em face de datas como o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, criam produtos e serviços voltados especificamente para o público LGBTQIA+. A estratégia é polêmica e divide opiniões, já que como afirma Rocha, pode configurar cooptação das pautas existenciais pelos interesses econômicos de grandes marcas. Pesquisa Perfil e Satisfação de Público Parada LGBT+ 2022, realizada pelo Observatório do Turismo da cidade de São Paulo, identificou que o gasto médio por pessoa no evento foi 7,5% maior do que 2019, atingindo R$132,30.
Ursula Brevilheri, mulher trans não-binária, licenciada em Ciências Sociais pela UEL, ativista no Coletivo Trans Não-Binárie e Articulação Brasileira Não-Binárie (Abranb), estudiosa da neolinguagem, entre outros assuntos relativos à população trans, além de lembrar o caráter combativo da data, evidencia também a alegria de ser quem é. Para ela, alcançar reconhecimento e vivacidade é preponderante, pois em face das múltiplas violências enfrentadas, no imaginário social pessoas LGBTQIA+ tendem a ser associadas a estigmas e tristezas somente. Ouça:
A violência por ser quem é
Segundo informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicizadas nesta terça-feira (28), registros de violência sexual contra pessoas LGBTQIA+ cresceram 88,4% em 2021 em comparação ao ano anterior, 2020. A taxa de homicídio doloso, quando a intenção de matar, cresceu 7,2%, totalizando 179 casos. Ocorrências de lesão corporal também aumentaram 35,2%, saltando de 1.271 casos em 2020 para 1.719 em 2021. Ainda, as queixas de crimes de injúria por homofobia ou transfobia (enquadrados no crime de racismo) subiu 147,4%, a cada 100 mil habitantes.
Dentre os estados, o Paraná lidera o crescimento de lesões corporais contra a comunidade LGBTQIA+. Em 2020, foram identificados 17 registros, aumentando para 101 casos no estado em 2021, ou seja, variação de 494,1%. O número de homicídios dolosos vitimando a população LGBTQIA+ também saltou no Paraná, passando de nove ocorrências para 14, aumento de 55,6%. Já os crimes de estupro no estado contra pessoas LGBTQIA+ em 2021, totalizaram 15 ocorrências.
Raffaela Rocha declara que já sofreu diversas violências como abuso sexual, também teve corrida recusada por motorista de aplicativo. Ainda, destaca opressões vivenciadas no ambiente acadêmico que para ela é um dos mais violentos. “Ser tirada do banheiro da universidade, sofrer assédio, perseguição, transfobia estrutural todos os dias”, afirma. A estudante cita casos de amigas, também mulheres trans, que foram assassinadas em Londrina nos últimos anos. Um exemplo é Natasha Galvão, morta na avenida Leste Oeste em 2021.
Rocha também argumenta que desde 2018, com o avanço de governos autoritários e fortalecimento de uma agenda antigênero em diversas regiões do mundo, sente que tornou-se ainda mais difícil ser uma pessoa LGBTQIA+ no Brasil. Para ela, um dos maiores desafios postos é ultrapassar o empoderamento de movimentos religiosos fundamentalistas, a ausência de políticas públicas e efetivação de direitos.
Ursula Brevilheri também indica a variedade das violências sofridas: “Acho que seria difícil você pegar alguma pessoa LGBTQIA+ no Brasil que não tenha vivenciado algum nível de violência. A gente pode falar desde questões institucionais que envolvem dificuldades de acesso que são violências e precisam ser consideradas como violências porque ferem o nosso lugar no mundo, mas também experiências cotidianas, desde você se apresentar para uma pessoa, como aconteceu comigo recentemente, e a pessoa falar “isso não é nome de gente”. E as violências físicas que a gente passa muitas vezes. Nunca sofri uma violência de ser agredida de forma explicita, mas já levei empurrões, já fui assediada, já fui ameaçada duas vezes. Acho que é importante entender que não é culpa nossa, mas entender que é uma realidade que a gente precisa sobreviver e resistir”.
A tentativa de não deixar que seja quem é
No começo deste mês, o Ministério Público Federal (MPF) do Acre, acionou a Justiça para que perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero fossem inseridas no Censo Demográfico. A pesquisa desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em todo território nacional, tem como principais finalidades contabilizar a população e identificar características da sociedade brasileira com base em marcadores sociais, a exemplo de pertencimento étnico-racial, renda, adesão religiosa, entre outros, a fim do estabelecimento de políticas públicas.
“A verdade é que não existem políticas públicas para pessoas LGBTQIA+ no Brasil, para pessoas de identidade de gênero que fujam ao padrão e isso é uma violação constitucional. Mas a não identificação destes sujeitos, a subnotificação, a dificuldade de produzir dados sobre essas pessoas cada vez mais faz com que elas sejam jogadas nesse limbo, que eu também não acho que seja só um limbo, mas também um projeto de dizer que a gente não existe ou que as nossas demandas não são válidas”, afirma Brevilheri.
O desembargador José Amilcar Machado, presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília, suspendeu decisão que obrigava o IBGE a incluir no Censo Demográfico de 2022, questões sobre orientação sexual e identidade de gênero. Para o magistrado, ratificando nota emitida pelo IBGE, não há tempo hábil para inclusão das perguntas no formulário, visto que a aplicação está prevista para iniciar em agosto. Com isso, teria que adiar novamente o estudo.
Entretanto, a recomendação é que em pesquisas futuras, haja a inclusão das perguntas sobre identidade de gênero e orientação sexual. “Além de produzir dados sobre violência, queremos produzir informações sobre a vida. A gente quer viver. A gente precisa discutir a morte dos nossos, das nossas, é evidente, mas a gente também precisa de qualidade de vida que não se paute apenas numa lógica de sobreviver, mas ter uma vida digna, respaldada por valores constitucionais e direitos humanos”, avalia Brevilheri.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.