Ataques com mortes em escolas não são comuns, mas fazem parte de um cenário de violência cotidiano que vem sendo negligenciado
Apesar do aumento dos casos e dos efeitos de longo alcance sobre a população e a comunidade escolar, incidentes extremos com mortes em estabelecimentos de ensino são raros e considerados a ponta mais proeminente de um conjunto bastante extenso de ocorrências violentas que prevalecem muitas vezes ignoradas na rotina de estudantes e professores.
Levantamento mais recente feito pelo governo dos Estados Unidos a partir de bases estatísticas dos departamentos de Educação e de Justiça contabilizou 77 ataques com tiros em escolas públicas e privadas de ensino elementar (equivalente ao fundamental brasileiro) e médio do país entre 2019 e 2020. O número engloba situações em que houve apenas feridos e também as que resultaram em mortes, e chegou a ser o segundo maior da série histórica, iniciada nos anos 2000. Embora preocupantes e tratados com devida prioridade pelas autoridades, os registros fatais fazem parte de um cenário de violência escolar muito maior. No mesmo ano letivo, os ataques com armas de fogo foram relatados paralelamente a 1,4 milhão de ocorrências envolvendo algum tipo de crime apenas nas escolas públicas norte-americanas.
No questionário aplicado pelo órgão de pesquisa em crime e segurança do Departamento de Educação dos Estados Unidos, 77,2% das unidades públicas de ensino responderam sim para ao menos um episódio criminoso nas dependências da escola entre 2019-2020, sendo que em 25,4% delas foram constatadas situações seriamente violentas, à parte de casos de ataques, como estupros ou tentativas de estupros, agressão sexual, ataques físicos ou brigas com armas, ameaça a ataques físicos com armas e assaltos com ou sem armas. Considerando todos os tipos de crimes tratados pelo levantamento – incluindo brigas, posse de armas e explosivos, vandalismo e consumo de drogas, por exemplo – a taxa chegou a 29 situações a cada 1 mil estudantes.
Os dados dão força ao entendimento de que a violência que ocorre dentro e ao redor das escolas está dissolvida no dia a dia da rotina de alunos e professores e, portanto, propostas de soluções para o enorme desafio tecido pela temática também precisam colocar sob o holofote outros casos que perturbam o ambiente escolar.
“A gente não deve normalizar os outros tipos de violência nas escolas e não só porque não queremos que se chegue a esse extremo, mas porque não queremos que a violência cotidiana continue ocorrendo e, por isso, é preciso pensar em estratégias para combatê-la desde cedo”, diz Sara Badra de Oliveira, doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A instituição divulgou recentemente levantamento inédito, coordenado pela docente Telma Pileggi Vinha, que mostra que, em 21 anos, o Brasil já registrou 23 ataques em escolas – sendo 9 deles (39%) nos últimos oito meses e maior parte (19) em instituições públicas.
Pesquisadora do Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas (PODHE), vinculado ao Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), Oliveira explica que os diferentes tipos de violência relacionados às escolas – seja contra alunos; entre a comunidade escolar; ou contra as unidades de ensino e aquilo e que elas representam – são situações que se retroalimentam e expandem os riscos à medida que negligenciados.
“São violências que estão localizadas num continuum. Em um dos extremos temos pequenos casos de agressão cotidiana que alunos promovem contra alunos, contra professores, e que professores promovem contra alunos. E quando eu falo agressão não falo só agressão física, mas várias formas de desrespeito aos alunos e às suas identidades, várias formas de ferir os direitos humanos dos alunos, que muitas vezes também são cometidas pela instituição escolar, mesmo que, de forma alguma, a escola seja a única responsável por isso”, afirma a especialista. “Então esse é o primeiro passo, e que muitas vezes a gente, sim, normaliza, mas também não tem ferramentas, tempos e espaços para lidar com isso num cotidiano extremamente conturbado das escolas, em que surgem mil demandas o tempo todo, em que os professores estão exaustos e tendo que apagar incêndios o tempo todo, até quando chega na outra ponta que é quando tudo escala e culmina em desfechos fatais”.
Violência nas escolas no Brasil
Sejam extremos ou com impactos pontuais, há um hiato hoje no Brasil sobre dados específicos de ocorrências de diferentes tipos violência e crimes relacionados ao ambiente escolar. Não existem relatórios governamentais públicos sobre a questão – localmente, o Paraná também não o faz –, apesar de alguns estudos independentes já terem tentado esboçar a realidade enfrentada no país.
Segundo estudo de 2019 do Instituto Locomotiva e do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), 54% dos professores da rede confirmaram ter sofrido algum tipo de violência nas escolas. Em 2017, a taxa era 51% e, em 2014, 44%. Já entre os estudantes, 37% disseram ter sido vítimas (em 2014 eram 38%, e 2017, 39%). O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) de 2018, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), revelou que 29% dos alunos brasileiros já enfrentaram alguma situação de bullying – uma das práticas mais comuns de violência escolar.
Nos Estados Unidos, pesquisa de 2019 do Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, sigla em inglês) concluiu que 20% dos alunos de ensino médio do país relataram ter sofrido bullying dentro da escola naquele ano. A proporção é bem maior do que outros tipos de violência compilados: 8% relataram envolvimento em brigas físicas e 7% sofreram ferimentos ou ameaçados por alguém com arma (revólver ou faca).
O ataque em escola de maior repercussão no Paraná até agora teria partido justamente por causa do bullying. Em setembro de 2018, um adolescente de 15 anos entrou armado no Colégio Estadual João Manoel Mondrone, em Medianeira, na região Oeste, e atirou contra colegas. Uma vítima em estado mais grave ficou com uma bala alojada na coluna, e o agressor afirmou ter agido porque estaria sofrendo humilhações frequentes.
Relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de 2020 apontou quase um terço dos estudantes do mundo já foram intimidados desta forma, “com consequências devastadoras no desempenho acadêmico, abandono escolar e saúde física e mental”. “A violência escolar é perpetrada por alunos, professores e outros funcionários da escola. No entanto, as evidências disponíveis mostram que a violência perpetrada por pares é a mais comum.
O posicionamento da entidade é que um ambiente escolar seguro depende, entre outros pontos, de monitoramento e coleta de dados sobre violência nas escolas e de um treinamento de professores para a resolução pacífica de conflitos. E as propostas para garantir salas de aula sem distúrbios devem levar em conta a busca por respostas “abrangentes e incluir uma combinação de políticas e intervenções”, baseadas no empoderamento de alunos, em um ambiente psicológico e físico seguro e em uma estrutura robusta para lidar com os casos. No Paraná, por exemplo, governo Ratinho Jr. adotou contra a recente onda de ataques nas escolas medidas concentradas na segurança policial, ainda que a literatura sustente controvérsias em relação a mecanismos focados na figura de agentes policiais.
A pesquisadora do NEV concorda sobre a necessidade de providências mais complexas. Para Oliveira, as diferentes frentes de violência nas escolas demandam estratégias de enfrentamento capazes de compreender o problema não como mera consequência de um ambiente de permissividade social, mas como reflexo da estrutura histórica da sociedade brasileira, acostumada a normalizar a violência em vários espaços e instituições.
“[Propostas para enfrentar a questão da violência nas escolas] vão pedir estratégias de enfrentamento mais complexas e que vão, necessariamente, incitar responsabilidades coletivas. Qualquer estratégia que responsabilize um único ator ou uma única instituição da sociedade está necessariamente fadada ao fracasso”, diz.
Fonte: Jornal Plural