José Maschio, mais conhecido como Zé Ganchão, ou simplesmente Gancho, de profissão repórter, é meu amigo há pelo menos três décadas. Conheço a figura de tempos memoráveis e, nesse conhecer, posso afirmar aqui nesta Folha o que já disse em seminários, palestras, entrevistas e papo de boteco: Gancho é o maior dos jornalistas investigativos que conheci em quase quarenta anos de profissão.
Engajado e conhecedor de literatura e história, escreveu um belo livro que eu recomendo (No tempo do cigarro sem filtro) e com ele convivi em meio a cervejas geladas e tragédias pessoais nossas, sempre cada um em seu quadrado: ele investigando eu defendendo as pessoas de quem ele resenhava jornalisticamente.
Participamos dos mais diversos e distintos momentos profissionais que misturavam nossos interesses e, por este motivo, chegamos a tratar de um caso trans nacional em Montevidéu. Eu representando o denunciado que lá fora preso, ele querendo noticiar o ocorrido. Após a coletiva imensa, fomos molhar a palavra no mercado municipal, onde vencemos várias Patrícias, uma belíssima cerveja uruguaia.
Ao longo de nosso convívio profissional, de mais de três décadas (torno a lembrar) jamais ouvi ou presenciei qualquer coisa que desabonasse ou comprometesse sua carreira. Gancho sempre foi e seguiu sendo meu grande modelo profissional de jornalista investigativo, também e muito pelo grandioso caráter que lhe identifica.
Por estas voltas que a vida dá, assisti de longe Gancho enfrentar o maior fantasma da vida de um pai que é enterrar um filho. Não pude (não consegui) confortá-lo e isso me dói sempre que nele penso.
Vida que segue, Gancho permanece vivo e segue noticiando, reportando, discutindo o país, como sempre foi de seu feitio, em um blog onde, em sete de setembro de 2021, colheu e reportou uma informação de evidente interesse público, publicando a foto de uma juíza de direito que atendendo ao certame convocatório daquele sete de setembro histórico, compareceu a avenida paulista e se deixou fotografar ladeada de pessoas que ostentavam faixas de ordem que reproduziam o comando convocatório da data.
‘Supremo é o povo’, dizia um dos cartazes que reproduzia ofensa gratuita e irracional que, à época, a extrema direita espraiou em suas redes sociais, para desgastar e mitigar desvalor institucional ao Supremo Tribunal Federal, em ordem a criar um ambiente de pressão nos Senhores Ministros, em desfavor da democracia e do estado democrático de direito.
Por noticiar um fato verídico e sem tecer qualquer comentário alusivo à magistrada, esta investiu criminalmente contra Gancho, ofertando notícia crime em seu desfavor, por em tese ter atentado contra a sua honra. Pediu na polícia civil de Londrina, em um inquérito policial, o indiciamento do repórter, por ter postado sua foto no ato convocado com intuito e caráter golpista, pelo mito em pessoa.
Foi prontamente atendida pelo delegado que, em minha presença, ouviu e indiciou o repórter, em que pese ele tenha dito que nunca atacou a honra da juíza, apenas reportou a sua presença no ato golpista de sete de setembro de 2021, em atenção a convocação pública promovida pelo próprio messias.
Ao saímos do interrogatório na subdivisão policial, a imprensa (esta Folha) estava presente e nos questionou, enquanto patrono de Gancho o que faríamos na sequência. Ali respondi que nada. Que aguardaria a marcha do inquérito e esperava um juízo de valor, primeiro do ministério público (para ver se o parquet se sujeitaria a oferecer uma qualquer denúncia diante de tamanho absurdo que se pronunciava) e, em caso de se aventurar, em segundo lugar, se o juiz de direito receberia uma denúncia nestes termos…
Pois bem. O tempo caminhou e o juiz de direito arquivou o inquérito, pela decadência do direito, naquilo que, a seu entender, por se tratar de uma ação penal condicionada à representação da suposta vítima, a juíza da foto deveria em até seis meses ter ofertado representação contra o Gancho, a fim de viabilizar ao ministério público o exercício de um juízo valorativo sobre os fatos. Como ela não representou, o feito foi arquivado e isso encerrou a aventura policial única de meu amigo Maschio.
Não vou me manifestar sobre estes fatos procedimentais e muito menos tecer qualquer consideração acerca da bem posta decisão de arquivamento que sepultou a hipótese de discutir se Gancho, de fato, invadiu e ofendeu a esfera privada da juíza, mas vou, sim, registrar que Zé Ganchão não está mais sujeito a ser processado criminalmente por exercer o seu ofício.
Vida que segue, aguardo o dia em que uma cerveja gelada possa molhar nossa palavra e me permita dizer, em uma mesa de boteco e apenas para ele, o que penso do que passou.
Valeu Gancho, sua história segue precedendo suas circunstâncias.
Tristes trópicos, onde quem noticia um fato aguarda por quase dois anos o resguardo de sua memória.
João dos Santos Gomes Filho
Advogado e amigo do Gancho
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.